Henrique Fendrich (Crônica de São Bento)
Jornalista são-bentense residindo em Brasília/DF
Fiquei sabendo que a coluna da semana passada não foi lida pelo Otto – o Bismarck das Araucárias. Eu já esperava. Otto não costuma ler jornais brasileiros. Aliás, ele não costuma ler nada. Um dia soube que Goethe era um escritor alemão. Passou então a citá-lo como o seu autor favorito. Minto: de vez em quando, Otto lê a “Veja”. E não mais que isso. Portanto, foi uma grande coincidência ele ter me procurado mais uma vez.
Senti que Otto, o alemão de quatro costados, não havia ainda se recuperado do baque de não conseguir a cidadania europeia. E foi exatamente o que ele me disse. Tentei consolá-lo, falando que a cidadania europeia havia perdido um pouco da graça depois da Reforma Ortográfica. Ele sorriu amarelo, e logo me contou por que estava me procurando de novo: queria, ao menos, descobrir o brasão de sua família.
Suspirei. Perguntei por que queria o brasão. “Para mostrar o valor da minha família, dos imigrantes que vieram pra cá fugindo da guerra”. Tive então um pequeno espasmo. O velho mito dos imigrantes que fogem da guerra. Eu estava de mau-humor, e fui sincero como um boleto bancário: “Otto, teus antepassados eram uns pobretões”. Ele recuou, espantado. Mais calmo, disse a ele toda a verdade: não há, não existe, nunca haverá, brasão de família – pelo menos não da forma que pensamos.
Procurei então nos meus papéis a fotografia de um brasão dos Fendrich. Mostrei a ele. Em seguida, mostrei um brasão de outra família, os Friedrich. “Mas são idênticos!”, exclamou. De fato, eram os mesmos. Eis o que lhe expliquei: um brasão não pode servir para todos os Fendrich na face da terra – ou qualquer outro sobrenome. Os brasões são símbolos de nobreza que só podem ser ostentados pelos descendentes de quem o recebeu por primeiro. Se você é um Pscheidt, um Schreiner, um Grossl, e encontra um brasão com o nome da sua família, isso não quer dizer que ele serve para você.
Servirá apenas se você conseguir provar que é descendente do primeiro portador do brasão. Sem essa comprovação, o brasão, quando verdadeiro, é apenas uma figura decorativa que mostra a coincidência que há entre você a pessoa que foi agraciada com ele – ambas com o mesmo sobrenome. É como se eu resolvesse colocar na parede do meu quarto um disco de platina do Rainhard Fendrich, aquele popular cantor austríaco. Temos o mesmo sobrenome, afinal. “Você há de concordar, Otto, que eu não tenho mérito algum na conquista do Rainhard”, concluí. É claro que nos brasões de internet isso não é avisado.
Mas vamos imaginar que alguém está disposto a encontrar uma ligação genealógica que justifique o uso do brasão. No caso dos imigrantes de São Bento, é quase impossível. Nossos ancestrais eram honrados plebeus, acostumados com a pobreza, explorados pelos patrões. Não são o tipo de pessoas de quem se esperaria ancestrais nobres.
Vendo o desespero estampado na fisionomia de Otto, consolei: “Garanto que há na história da sua família coisas suficientes para deixar você orgulhoso. Talvez não tão visíveis quanto um brasão. Mas elas te oferecem o seu passado, um legado que não depende de autorização do rei”. Como sempre, Otto então me deixou após um palavrão em alemão.