Henrique Fendrich (Crônica de São Bento)
Jornalista são-bentense residindo em Brasília/DF
Caminhava e não via, caminhava e pensava em não sei quais amenidades, se é que realmente eram amenidades, porque talvez fossem preocupações, aquelas preocupações banais da vida cotidiana, mas o fato era que eu, naquele começo de noite, caminhava e não via. Nem por isso se pense que eu cometia alguma imprudência, mas era apenas instintivamente que eu seguia as normas de trânsito no que se refere aos pedestres, e era também de forma automática que eu escapava das arapucas planejadas para todos aqueles que se locomovem a pé. Não via, portanto, nenhum dos carros que corriam loucamente ao meu lado, desejosos de chegar em casa o mais breve possível, pois era preciso descansar, para repetir tudo no dia seguinte.
E chegariam muito antes, se não precisassem parar a cada instante em um semáforo, pois há uma série de pessoas que também estão voltando para casa, e não é de se pensar que alguma delas cedesse a vez em um cruzamento por vontade própria. Eu passava justamente ao lado de um desses semáforos, e não sei que motivo, força ou lei da física quântica fez com que naquela hora eu olhasse para a fila dos carros que aguardavam ansiosamente pelo sinal verde. Olhei, na verdade, para um carro em especial, no qual encontrei um par de olhos voltados para mim.
Era uma mulher, uma mulher que eu absolutamente não conhecia, sentada no banco de trás do carro e que, por algum motivo, olhava fixamente para mim e, como se não bastasse, olhava com certa doçura. Não sei quanto tempo ficou nessa posição, mas deve ter sido uma pequena eternidade, embora não o suficiente para que eu saísse dos meus devaneios e me desse conta do que acontecia. Antes que eu encontrasse uma explicação para aquele olhar, antes que eu pudesse reagir e, quem sabe, até impedir, o sinal abriu e ela endireitou o tronco, virando-se para frente, na mesma direção em que o carro, rapidamente, miseravelmente, sumiu.
Só então é que percebi a experiência pela qual havia passado, embora não atinasse com a sua motivação. Quis rever aquela mulher e perguntar: mulher desconhecida de dentro do carro, o que foi que lhe chamou a atenção naquele momento em que se voltou para mim? Falemos a verdade, eu não sou o tipo de pessoa que se destaca em termos de beleza, pelo menos não positivamente, e quem se detiver sobre a minha triste figura há de perceber uma série de im-perfeições que, se não repugnam ao olhar, certamente também não justificam a expressão de candura com que fui presenteado. Ou será que você nem reparou suficientemente em mim, apenas descobriu alguma coisa que a fez lembrar de outro homem, de uma história que você guarda com especial carinho? São hipóteses que avento para fugir do angustiante pensamento de que houve uma mulher sinceramente interessada em mim que me escapou para sempre.
Talvez eu devesse ter chamado um táxi e falado “siga aquele carro”, mesmo sabendo que ele já estava irremediavelmente longe, mas eu explicaria ao taxista que era um carro diferente de todos os outros, um carro em que havia uma mulher no banco de trás e essa mulher se voltava para me olhar enquanto o sinal estava fechado. Talvez eu devesse, no mínimo, ter anotado a placa. Ou talvez eu devesse apenas não ter olhado.