Henrique Fendrich (Crônica de São Bento)
Jornalista são-bentense residindo em Brasília/DF
Ou eu muito me engano ou na semana passada eu comecei a contar as minhas desventuras por ocasião da última visita que fiz ao Otto – o Bismarck das Araucárias. De fato, não posso dizer que essa visita tenha sido das mais agradáveis, apesar dos doces que comi e dos outros mais que a dona Johanna fez questão que eu levasse para casa. A questão foi, vocês devem lembrar, que eu apresentei uma foto da futura senhora Fendrich e o Otto pareceu não gostar do fato de ela ser morena, quase negra. Disso resultou uma discussão em que o Otto chegou a invocar até mesmo “a maldição que Noé jogou em cima desses povos”. Tomado de cólera, eu apenas consegui dizer “Mentes! Mentes”. Assim terminamos na semana passada.
O primeiro pensamento que me veio à mente, logo depois daquele que me dizia para quebrar a cara do Otto, foi o de surpresa ao constatar que Otto tentava citar um episódio bíblico. Ora, todo são-bentense sabe que o Otto vai à igreja todo domingo, precisando ou não. É católico, sobretudo porque o seu pai fora católico, e antes dele o seu avô, e também o pai do seu avô. Se todos os homens da família fossem mórmons, Otto seria mórmon sem tirar nem por – até deixaria de beber cerveja. Mas calhou que a tradição na família fosse a de ser católico, e só por isso é que Otto é católico – nunca soube que lesse a Bíblia, e por isso o meu espanto.
Como eu não sou de todo ignorante nessas questões, eu sabia que essa história de maldição aos negros é mentira – apesar do que andou dizendo por aí o Marco Feliciano. E, depois de me acalmar, foi o que tentei mostrar ao Otto, pegando emprestada uma Bíblia muito bonita, embora um tanto empoeirada, que o Otto deixa de adereço em uma mesinha. Vamos resumir a história: Noé plantou uma vinha, bebeu do vinho e ficou bêbado, tão bêbado que chegou a ficar pelado. Um dos filhos de Noé, chamado Cam, viu o pai nesse estado e, em vez de cobri-lo, foi contar a seus irmãos. Estes sim, foram lá e cobriram a nudez do pai. Quando voltou a si, Noé ficou sabendo da história e jogou uma maldição, não sobre Cam, mas sobre o filho deste, chamado Canaã. Deu a entender que seus descendentes seriam oprimidos por outras nações.
Bolas, os filhos de Cam foram para a África, mas não Canaã. Os descendentes de Canaã foram para um lugar conhecido, vejam só que coisa, como Canaã – ali na região de Israel. Anos mais tarde eles seriam exatamente expulsos pelos israelitas, cumprindo ali a tal da maldição. Mas claro, ao longo da história sempre foi bastante conveniente associar essa maldição aos negros, pois isso justificaria que continuássemos os explorando – legitimados pela palavra do Senhor! Tentei explicar tudo isso ao Otto, mas tenho certeza que ele não acreditou em coisa alguma – é sempre muito difícil usar a razão para convencer quem já se convenceu sem ela.
Devolvi a Bíblia à sua mesinha, não sem antes sugerir ao Otto que pare de achar que Deus é o sujeito que diz amém aos seus pensamentos. Otto pareceu arrependido por ter entrado em assunto tão espinhoso e, como para fazer as pazes, disse que ia me pagar uma rodada de iogurte. Não sei por que, mas acho que aos poucos o Otto vai me entendendo.