Henrique Fendrich (Crônica de São Bento)
Jornalista são-bentense residindo em Brasília/DF
Meio contra a minha vontade, acompanhei duas amigas a uma loja de sapatos no shopping. Uma delas queria trocar o presente que ganhou de amigo-secreto. O sapato servia direitinho, mas sabe como são as mulheres: havendo a possibilidade de trocar por um mais bonito, elas trocarão. Pois deixei que ficassem entretidas comparando sapatos e, sorrateiramente, escapei para a livraria mais próxima do shopping, que por sorte ficava no mesmo andar.
Ah, aquele era o meu habitat! Eu passaria horas ali dentro apenas olhando as prateleiras, puxando livros pela lombada, lendo a orelha, a contracapa, os trechos selecionados ao acaso, eventualmente consultando o preço, e quase sempre achando caro demais. Mas quando eu consigo comprar um livro, que delícia que é. Às vezes tenho a sensação de estar enganando a livraria. Imagine, por umas poucas notas de papel eles deixam que eu leve o livro para casa, que ele passe a ser meu, exclusivamente meu, por tempo indeterminado. Principalmente quando eu conheço o autor e sei que o livro será bom. O caixa acha que aquilo que ele está colocando para mim dentro de uma sacola é só mais um livro no meio de tantos outros livros. Mas o que eu estou levando mesmo, a preço de banana, é um punhado de felicidade.
Nessas horas eu sou como a menina Clarice Lispector diante das Reinações de Narizinho: finjo que não tenho o livro, só para depois me assustar ao perceber que tenho. Dou-me ao luxo de fazer coisas aborrecidas apenas para depois me lembrar: “É mesmo, eu tenho um livro bom pra ler”. E dá vontade de ler mais devagar, de fazer com que “estar lendo um livro bom” seja uma ação bem demorada. Leio um pouco, paro, olho a capa, folheio de novo, procuro novos detalhes - só não costumo cheirar, mas acho totalmente compreensível que se cheire também.
Tudo isso justifica que, quando minhas amigas saíram da livraria e me acharam no meio dos livros, eu tenha apontado para as prateleiras e dito a elas:
- Esses aqui são os meus sapatos.
À uma mulher dentro do carro
Eu caminhava pela calçada quando um carro parou no sinal e dentro dele eu encontrei os olhos de uma mulher voltados diretamente para mim. Olhava-me fixamente e olhava com candura. Mas, antes que eu me desse conta de qualquer coisa, o sinal abriu e ela virou-se para frente, na direção em que o carro, miseravelmente, sumiu.
Mulher desconhecida de dentro do carro, o que foi que lhe chamou a atenção em mim? Não sou nenhum tipo que, se destaca positivamente em termos de beleza. No entanto, alguma coisa em mim despertou interesse suficiente para que você se voltasse a fim de ver melhor – e por Deus que não era o olhar de quem contempla um animal exótico. Conseguiste com isso me perturbar, pois é só isso que pode me trazer um desejo impossível de realizar, como este se tornou no instante em que aquele carro acelerou.
Há nesta cidade dois milhões e meio de pessoas e não creio que seja possível voltar a lhe encontrar algum dia desses. Talvez eu devesse ter chamado um táxi e falado “siga aquele carro” – porque uma chance dessas não se desperdiça. Talvez eu devesse, no mínimo, ter anotado a placa.
Ou talvez eu devesse não ter olhado mesmo.