Henrique Fendrich (Crônica de São Bento)
Jornalista são-bentense residindo em Brasília/DF
Foi pura coincidência: quando a mesquita foi inaugurada, em 1972, ainda não havia a feirinha do Largo da Ordem aos domingos pela manhã (ela começou no ano seguinte). Depois a feira cresceu e cada vez mais pessoas passavam diante do templo muçulmano em Curitiba. Por que não convidá-las a entrar? Chego exatamente no momento em que estão abrindo para visitação. Já há pessoas tirando foto da fachada, mas todo mundo receoso de se aproximar. Ninguém sabe, afinal, que tipos de ritos são feitos lá dentro. Na verdade, exigem apenas que você tire os sapatos e, se for mulher, que também coloque um véu.
Resolvo entrar e a minha primeira reação como cristão ocidental é perguntar onde estão os bancos. Não há, apenas uma sala enorme com bonitos tapetes e um púlpito à esquerda (é a parede virada para Meca). Aos visitantes, uma exposição com fotos horríveis sobre a guerra na Faixa de Gaza, coisas que “a mídia sionista” não mostrou. Na própria entrada da mesquita havia uma bandeira da Palestina com dizeres contra Israel. Vejo dois cartazes com as referências a Maria no Alcorão. Eles também reconhecem o Pentateuco, os Salmos, o Evangelho – embora não haja nenhuma distinção para Jesus.
Outro cartaz mostra os horários das orações em julho, definidos de acordo com a posição do sol em relação à terra. Seis orações por dia, a primeira às 05h38. No Ocidente, tamanha disciplina só seria compreendida se tivesse como objetivo emagrecer ou ficar com o corpo melhor definido. Há um rapaz explicando tudo para nós. Olho para ele e me lembro de que não comeu nada hoje, pois ainda é o Ramadã. Vejo livros em árabe, leio as mensagens escritas no teto da mesquita, observo um senhor que lê o Alcorão, e me deixo ficar lá dentro, sem saber exatamente o que fazer, apenas intuindo, talvez, que ainda falta um bocado de coisas para que eu compreenda o que acontece no mundo.
Quando eu saio de lá, todo mundo já perdeu o medo: a mesquita é uma das barraquinhas mais concorridas da feira.
Consertando a bicicleta
Chego à uma oficina para consertar a bicicleta com que faço exercícios regulares – a cada seis meses – sempre que estou na casa da minha mãe. O homem vem ver qual é o problema com ela. Não parece nada muito sério, apenas um desajuste no eixo. E eu queria também que trocasse os pedais, pois estou andando só com uns toquinhos. O homem vai concordando, gira o pneu, logo descobre do que se trata e leva a bicicleta para dentro da sua oficina.
Entro atrás. Nunca contei a esse homem da admiração que tenho por ele. Imagine só, consertar bicicletas em vez de ficar enfurnado em uma sala o dia todo. Não quer estabilidade, não quer passar em concurso público: quer consertar bicicletas. Vejo em cima do balcão um cartãozinho que diz “Desde 1975”.
Enquanto ele trabalha, assisto a TV. Passam notícias da Faixa de Gaza. Ele pega o gancho, começa a falar sobre o quanto aquela guerra já virou uma coisa normal. E da guerra ele passa à ditadura, lembrando coisas antigas do tempo em que morava no norte do Paraná. Conclui que as coisas mudaram bastante. Devolve-me a bicicleta, diz que era só uma coisinha solta e não me cobra nada, apenas os pedais. Estou liberado para o meu exercício semestral.