Henrique Fendrich (Crônica de São Bento)
Jornalista são-bentense residindo em Brasília/DF
É justo que o acontecimento mais emblemático do século XX também tenha sido o tema da melhor reportagem daquele século. O impressionante esforço de pesquisa de John Hersey para reconstruir o dia 6 de agosto de 1945 na vida de seis personagens faz de “Hiroshima” o relato mais aproximado e humano daquilo que foi a tragédia japonesa. Os pequenos detalhes coletados pelo autor sobre o dia do ataque da bomba atômica e os que se seguiram dão a dimensão do horror a que fomos capazes de chegar. Hersey não precisou apelar para as frases de impacto ou para os adjetivos que arrastam: sob a sua escrita, a simples descrição dos fatos já conduz à emoção.
Como ficar indiferente à tentativa de sobrevivência dos personagens e ao drama dos que não conseguem? Como não se comover com os gestos de solidariedade em meio às tentativas de salvação individual? O que pensar diante da mulher que permaneceu com a filha morta no colo e já em estado de decomposição por quatro dias, à espera do marido, um homem tão bom que merecia ver a criança ao menos mais uma vez, mas que provavelmente também já estava morto?
A reportagem tem histórias significativas o bastante para serem evocadas em qualquer conflito internacional – e, convém dizer, não apenas naqueles em que a ameaça provém de armas químicas. O relato de Hersey é constrangedor para a humanidade e deveria ser suficiente para que nunca mais nos metêssemos em guerras de qualquer natureza.
Só que infelizmente não é. Aqui estamos nós, russos e ucranianos, responsabilizando uns aos outros pelo abate de um avião comercial com 300 passageiros que pouco se importavam com o problema do separatismo na região. É quase o mesmo número de mortos pelo confronto entre israelenses e palestinos na Faixa de Gaza – só nos últimos dias. E, em tudo, ainda temos os americanos sempre dispostos a promover uma barbárie do bem.
Com nossas justificativas e nossas retóricas, estamos dizendo o seguinte: o testemunho de Hiroshima não nos basta.
Doze itens
Nos supermercados, uso com frequência o caixa-rápido, que, como o nome sugere, é um dos que mais demora. Em parte porque existem pessoas que levam mais do que os dez itens permitidos. Ah, com que rancor nós, no fim da fila, olhamos para a cesta de compras das pessoas à nossa frente, calculando mentalmente se a quantidade de produtos ultrapassa ou não o limite permitido. Outro dia uma senhora armou um escândalo porque a mulher à sua frente não levava dez, mas doze itens. Disse que aquilo era uma falta de respeito, será que você não leu a plaquinha, que vá para outro caixa e deixe esse para quem precisa.
Mas a mulher dos doze itens não era de levar desaforo para casa e respondeu que poderia até tirar dois itens da sua compra, mas ir para outro caixa ela não iria, na minha frente a senhora não vai passar, era só o que faltava. A senhora se assustou um pouco com a reação, mas nem por isso baixou o tom e lá ficaram as duas discutindo – enquanto isso, a fila atrás delas só aumentava.
Àquela altura eu já havia levado meus dez itens ou menos para um caixa normal. Gosto bastante quando as normas são respeitadas, mas gosto mais ainda quando consigo me livrar de uma fila sem esperar muito.