Henrique Fendrich (Crônica de São Bento)
Jornalista são-bentense residindo em Brasília/DF
Os irmãos não chegaram a um acordo. Queriam os dois levar adiante o negócio que um dia havia sido do pai. Agora o pai estava morto, mas não totalmente: ainda permanecia o ofício que um dia havia ensinado a dois de seus filhos. Seriam ambos sapateiros, como sapateiro foi o pai, desde o tempo que era um aprendiz em Viena e se encantava toda vez que via o imperador passar. Quando veio ao Brasil, encontrou uma outra realidade, feita de roça e mato. O cenário exigia botas até o joelho, e muitas devem ter sido fabricadas na sua oficina. Dividia o tempo entre a sapataria e a escola, onde improvisou-se professor – cuidava dos pés à cabeça. Vieram os filhos, cresceram os filhos, e agora era uma atividade familiar. Até o dia que o pai morreu e os irmãos discutiram entre si.
O mais moço decidiu: iria sair da cidade, montar a sua própria sapataria em outro lugar. Nunca mais volto a pisar aqui, chegou a dizer. E se foi para a capital, onde vivia outro irmão, um que não se interessou por sapatos e queria ser açougueiro. Ninguém sabe se realmente abriu uma sapataria por lá, apenas que um dia ele tornou a pisar na terra de onde saiu.
O irmão mais velho, aquele que ficou com a sapataria do pai, teve sucesso nos negócios. A sapataria cresceu, chegou a contar com dez funcionários, e um dia ela se transformou em loja de calçados – a primeira da cidade. Quando ele faleceu, já havia deixado também o seu próprio herdeiro para continuar à frente do negócio. Era a terceira geração de sapateiros e seria a última, pois o neto não teve filho homem que levasse adiante.
Esta é a história que contam, estes são os sapateiros da minha família. Olho para os meus próprios pés, que raramente vestem um sapato – apenas em ocasiões muito formais. Sei que se um deles descosturar ou descolar eu não procurarei ninguém para consertar: jogarei fora e comprarei um novo. São outros tempos, tento me desculpar. Mas não deixo de achar que alguma coisa essencialmente boa se perdeu no caminho.
Bicicletas, carros e ônibus
A exemplo das maiores cidades do mundo, como Amsterdam, na Holanda, e Toledo, no Paraná, também Brasília conta agora com um serviço de empréstimo de bicicletas. Vez ou outra poderei ir pedalando ao trabalho. Fará bem à minha saúde, mas também roubará o meu tempo de leitura dentro do ônibus. Isso para não falar no meu trabalho de prospecção de temas literários, sempre abundantes no transporte coletivo.
Em relação a automóveis, não pretendo ter um. Não me sinto em condições de manter carros, cachorros e o que quer que se atribua como o melhor amigo do homem. As autoescolas sabem dessa minha resistência e todo dia me entregam ao menos três panfletos diferentes mostrando que nunca foi tão fácil tirar a carteira. Mas desde os 18 anos que venho tentando respeitar aqueles anúncios de concessionárias que dizem “não compre carro hoje”.
É verdade que, no transporte público, eu estou sujeito ao descaso do governo, à superlotação, à má qualidade, à quebra e ao atraso dos ônibus, além de nunca saber quando será a próxima greve que me deixará na mão. Mas não deixa de ser uma forma de vingança saber que, enquanto me confinam em péssimas condições, eu estou lá me instruindo.