Henrique Fendrich (Crônica de São Bento)
Jornalista são-bentense residindo em Brasília/DF
Considerando que a única coisa que temos em mente é a satisfação dos nossos prazeres mais imediatos; que estamos dispostos a trocar valores e virtudes por todo o prazer que o consumo nos oferecer; que a publicidade e o comércio ditam até os nossos sentimentos; que toda tecnologia nos seduz a ponto de esquecermos da realidade; que nada nos preocupa mais do que como parecemos ser; que para salvar as aparências cometemos as maiores falsidades; que somos extremamente severos ao avaliar os outros; que cobramos dos outros a coerência que não temos; que estamos sempre prontos para nos justificar; que defendemos o nosso ponto de vista até a morte; que alimentamos desavenças; que temos uma sede imensa de competir e derrotar; que achamos a violência justificável em determinados contextos; que somos capazes de matar independente do contexto; que somos indiferentes a tudo o que não nos diz respeito; que buscamos exclusivamente a salvação da nossa própria alma; que somos cristãos sem necessidade de fazer o bem; que amamos o próximo mas não estendemos a mão para pegar um folheto na rua; que chamamos todos os que pedem dinheiro de vagabundos; que temos o dinheiro como única coisa verdadeiramente sagrada; que somos extremamente criativos para descobrir meios de conseguir mais dinheiro; que somos tolerantes com as injustiças que nos beneficiam; que usamos as circunstâncias para levar vantagem; que para sobreviver aceitamos enterrar os nossos talentos; que nos embriagamos com o poder; que elogiamos com segundas intenções; que confundimos paixão com amor; que somos impulsionados pelo sexo e sempre caímos; que temos filhos sem condições de termos filhos; que somos carentes formando novas gerações de carentes; que adiamos a palavra amiga, o gesto franco e acolhedor; considerando tudo isso, deve ser então simplesmente pelo trânsito que subitamente se abre para que uma ambulância passe o único motivo pelo qual Deus ainda não acabou com tudo.
Vizinhos mais disponíveis
Sabrina veio conhecer o quarto que estava para alugar. Viu, gostou e acertou os detalhes da mudança. Vinha do Espírito Santo e tinha como objetivo na vida passar num concurso público para o Itamaraty. Passava os dias estudando e um dia a encontrei esparramando toda a história da humanidade em cima do meu vizinho. Gostava de conversar e isso era o que mais lhe feria em Brasília, que dizia ser uma cidade difícil em que cada um preferia ficar no seu canto.
Matava a solidão conversando ao telefone com a sua tia. Certa vez eu voltava para casa sem saber o que jantar. Deus, que eu não precise comer aqueles sanduíches naturais do supermercado. Cheguei em casa e, sem saber de nada, Sabrina me ofereceu dois pedaços de pizza – foi quando concluí que pizza vem de Deus. Pude retribuir a gentileza num dia em que precisou de um carregador de notebook. Mas não foram muitos os contatos que tivemos.
Sabrina havia-me dito que a chamasse de Sassá, mas nunca achei intimidade para isso. E nem acharei, considerando que ontem ela foi embora – sem se despedir de mim. Mas era só o que faltava querer que ela se despedisse de você, hein, Henrique? Espero que agora ela tenha vizinhos mais disponíveis.