Henrique Fendrich (Crônica de São Bento)
Jornalista são-bentense residindo em Brasília/DF
Guerra com as baratas
Estou em guerra com as baratas. Devo dizer que só cheguei a esse ponto depois que todas as tratativas de paz fracassaram. Elas simplesmente não consideraram os meus insistentes apelos para que deixassem de caminhar feito baratas tontas pela minha casa. Foi quando decidi promover aquilo que o governo americano chamaria de intervenção militar. Primeiro, utilizei os métodos naturais: folhas de louro, por exemplo. As baratas adoraram. Roeram pedaços e levaram para os seus esconderijos, onde provavelmente prepararam um chazinho para aliviar a digestão.
Decidi então descumprir todas as resoluções da ONU e partir para o único tipo de ataque realmente eficaz: as armas químicas. Existe uma especialmente letal para elas chamada ácido bórico. Não há barata que sobreviva, e caso existisse ela provavelmente se suicidaria ao olhar ao redor e ver o genocídio provocado pelo produto. Saí então para comprar o veneno. Entrei numa farmácia e fui avisado que o ácido bórico estava proibido pela Anvisa. Acho graça. A Anvisa deixa vender pinga, cigarro e refrigerante, que matam pessoas, mas não deixam vender um ácido que mata baratas. Senti-me naquela piada: - Isso aqui é bom pra barata? - Não, isso as mata.
Preparei então um banquete mais modesto: açúcar + bicarbonato de sódio. Minha expectativa era que as baratas cedessem às tentações da carne e se embriagassem nos pecados da gula. Foi o que aconteceu. As baratas decretaram feriado e se esbaldaram de comer. Mas sobreviveram, o que me fez voltar à busca pelo ácido bórico. Acabei encontrando numa casa de química. Tive que assinar muitos papéis e jurar pela minha mãe, com a mão na Bíblia, que eu não iria misturar o ácido à cocaína. Espalhei-o em tampinhas com açúcar e deixei pela casa. Nos dias seguintes eu encontrei baratas rastejando. Mal conseguiam se mexer. Pediam misericórdia e clemência. Deixei que morressem. Conclui então que a única coisa capaz de sobreviver a uma guerra nuclear é o ácido bórico.
Estou sempre lidando com biografias. Mas biografias de gente morta há muito tempo, tanto que normalmente já não existem herdeiros identificáveis. Por isso posso reconstruir suas histórias sem enfrentar os constrangimentos, até certo ponto compreensíveis, causados pelos familiares de uma pessoa – ou por ela mesma. Essa comodidade não torna menos trabalhosa a atividade do biógrafo, que continua tendo as mesmas obrigações quanto à veracidade das informações e ao respeito pelos seus personagens. Esse cuidado talvez precise ser ainda maior, já que não há testemunhas para comprovar ou desmentir pontos obscuros. Com muitas incertezas e vazios provocados pela distância do tempo, cria-se o esboço de uma vida.
A julgar pelos recentes posicionamentos de artistas, este talvez seja o único tipo de biografia possível. Quando Roberto Carlos, Caetano Veloso e Chico Buarque forem desconhecidos artistas de um século ultrapassado, alguém escreverá com maior isenção sobre a vida deles, sem a preocupação de lhes ser agradável. E, se assim for, esse biógrafo possivelmente mencionará que no início do distante século XXI eles decidiram ter para si o controle daquilo que se escrevia a seu respeito.