Henrique Fendrich (Crônica de São Bento)
Jornalista são-bentense residindo em Brasília/DF
O resultado dessa história de não parar muito tempo no mesmo lugar é que raramente o meu título eleitoral coincide com a cidade em que estou. Como quero votar nas próximas eleições, e como é possível que eu continue na mesma cidade, estou querendo transferi-lo para Brasília. Isso não deveria trazer a menor dificuldade, se eu ao menos tivesse um comprovante de residência. Mas a verdade é que eu não tenho conta alguma no meu nome. Nem água, nem luz, nem telefone, nem fatura do cartão, nem carnê do IPTU ou do IPVA. E, no entanto, parece-me que moro em Brasília.
Tudo o que tenho é um recibo de aluguel, bastante informal, e no qual a Dona Lúcia (já velhinha) sempre escreve o meu nome errado, tendo inclusive o cuidado de jamais repetir a mesma maneira de errar. Eu deveria ter também algumas cartas, se houvesse continuado a correspondência iniciada pela minha amiga Ana. De maneira que liguei para o cartório para me certificar de que aquele tosco recibo poderia mesmo ser usado como comprovante. Depois de ficar terrivelmente chocada (“Você não tem NENHUMA conta?”), a atendente admitiu que o recibo serviria. Assim, se tudo der certo, em pouco tempo estarei apto a escolher os meus candidatos.
Coisa que faço questão, aliás. Comecei a me interessar por política muito cedo, e houve um dia em que cogitei ser cientista político. Isso provavelmente me daria mais embasamento para descrer de tudo. Mesmo assim, já fui capaz de perceber que o voto é principalmente uma questão de fé, com bem pouca participação da razão. Propostas não interessam muito. Em geral se escolhe um candidato tão logo surjam os nomes. Estamos a um ano das eleições e muita gente já sabe em quem votar, sem campanha nenhuma. Escolhe-se por coerência, e não como conclusão de uma busca pela verdade – não se busca a verdade, embora se propague que ela foi encontrada. É para participar mais efetivamente dessa busca por um milagre que estou transferindo meu título para cá.
Esse cidadão comum
Testemunho uma briga de casal na rua. Ela está munida de um pedaço de pau e discute em voz alta com um homem que diz: “Vagabunda! Você é uma vagabunda!”. A mulher, para provocá-lo, responde: “Sou mesmo! Quem foi que disse que eu não sou? Sou vagabunda sim”.
Mas o homem não escuta nada do que ela fala e apenas insiste: “Vagabunda! Você é uma vagabunda!”. A mulher responde as mesmas coisas, e ambos parecem dispostos a continuar assim até o fim da vida – e não seria surpresa se fosse mesmo o fim da vida para um deles, pois o homem poderia avançar sobre a mulher e receber em troca uma paulada fatal.
São mortes assim que dominam os números difíceis de admitir que o Caco Barcellos tem apresentado pelo Brasil. Em cidades como o Rio e São Paulo, cerca de 5% das mortes violentas são causadas por assaltantes, 20% são causadas pela polícia e 75% são causadas pelo cidadão comum. Esse cidadão de bem que um dia sente um ciúme incontrolável, que se enfurece com uma fechada no trânsito, que discute com o vizinho por causa do som alto, que se cansa de cobrar uma dívida. Mas que no dia a dia paga os seus impostos, tem um bom emprego, é admirado e respeitado. Um perigo, esse cidadão comum.