Henrique Fendrich (Crônica de São Bento)
Jornalista são-bentense residindo em Brasília/DF
Ou eu muito me engano ou na semana passada deixamos Otto, o alemão de quatro costados, embasbacado diante da descoberta de que uma de suas bisavós era brasileira, mais paranaense do que o barreado. Sorumbático, Otto caminhou até a janela, voltou e parou diante de um quadro na sala de estar que retrata a Guerra das Sete Semanas. Esta foi uma guerra em que o Reino da Prússia derrotou o Império da Áustria, e Otto não sabe, nem eu tive coragem de lhe dizer, que os seus ancestrais estavam do lado austríaco. Estava nesse estado lamentável de contemplação quando entrou o filho do Otto.
Bolas, já falei aqui: o filho do Otto nasceu sem passado. Recusou abertamente toda e qualquer informação genética que seu pai tentou lhe transmitir através da reprodução. Pois o filho do Otto entrou e quis saber o que houve. Contei que agora ele tinha uma antepassada brasileira e o seu rosto se iluminou: “Brasileira? No duro?”. Brasileiríssima. E foi como se eu contasse que ele seria pai. De repente, não havia mais sete bisavós de origem germânica, mas uma única bisavó de origem brasileira. E, por conta dessa única e escassa bisavó, o filho do Otto parecia disposto a se reconciliar com toda a História Mundial.
Começou então a fazer algumas perguntas: “Ela era escrava? Ao menos negra? Ou era índia? Judia, talvez? Homossexual?”. Ao ouvir isso, entendi tudo: a História, para o filho do Otto, só tem sentido se for para vingar as minorias. Ou seja: ele seria um dos nossos alunos mais brilhantes nas Faculdades de História. Mas eu me aborreci com essas perguntas e fui sincero como um pardal: “Provavelmente a bisavó do teu pai era alva como a neve. Submissa como uma mulher do Antigo Testamento. Católica como Santo Agostinho. O pai dela era um fazendeiro, cheio da grana, usava serviço escravo”. E o filho do Otto então saiu resmungando.
Pioneiro é quem pode
Esses fazendeiros realmente estiveram entre os primeiros moradores de Campo Alegre, onde exerceram seu domínio na vida social e política. No final dos anos 70, criou-se o brasão de Campo Alegre, e nele há uma estrela de cinco pontas: uma para cada pioneiro da cidade – apenas homens influentes.
Não é preciso muito esforço para saber que os pioneiros não foram cinco, e que, portanto, houve uma escolha. José Affonso Ayres Cubas, um escolhido, tinha escravos em sua fazenda, e eles devem ter chegado ao mesmo tempo – logo, são tão pioneiros quanto o seu dono.
O brasão homenageia também um Munhoz, o Raimundo, que na melhor das hipóteses era uma criança quando veio a Campo Alegre. O prefeito Bento Martiniano de Amorim foi outro escolhido, embora não apareça em nenhum registro antigo da cidade – logo, não há pioneirismo. Francisco Teixeira de Freitas, esse sim, esteve desde cedo em Campo Alegre, mas acompanhado de uma multidão, que não teve a sua atuação política e influência. O mesmo vale para o prefeito Francisco Bueno Franco. Veio acompanhado de gente que não conseguiu a sua fama. Gente anônima, que não vai entrar para a história de Campo Alegre, assim como não entram para a história de São Bento.
E eu não contei nada disso ao Otto, apenas divaguei enquanto ele caminhava tristemente para lá e para cá.