Henrique Fendrich (Crônica de São Bento)
Jornalista são-bentense residindo em Brasília/DF
Terreno baldio
Já andei 26 horas dentro de um ônibus até Brasília, mas essa distância é uma ilusão: estou mais perto de São Bento do que, digamos, Rio Natal. Outro dia, saí do meu trabalho em pleno Plano Piloto e dei as caras na 25 de Julho. Isso se chama Google Street View. Hoje em dia, o sujeito não pinta um portão, não troca uma cerca, sem que o mundo inteiro fique sabendo. Pois eu fui ver então que tal estava a rua que morei em São Bento até meus 13 anos.
A primeira mudança, já sabida, foi o asfalto – iniciado assim que nos mudamos de lá. Encontrei também um ponto de ônibus exatamente em frente à minha antiga casa. Bem se vê que éramos nós que estávamos travando o desenvolvimento do lugar. Mas não foi isso que mais me chamou a atenção. Foi essa terrível verdade: não há mais terrenos baldios por lá. Em quase todos os lugares onde antes havia um campinho improvisado, um atalho de bicicleta, ou apenas um punhado de terra para brincar de carrinho, existe agora uma casa – uma grande e gorda casa.
E o mais inacreditável é que, apesar disso, continuam morando crianças lá. O mundo inteiro concorda que elas passam tempo demais dentro de casa, mas a verdade é que não existe mais nada para elas fazerem lá fora. Contentem-se com a garagem de casa – isto é, de algumas casas, pois em boa parte delas o espaço é pequeno demais para se jogar bola. Será preciso ir atrás de alguma quadra, uma dessas de concreto, em que você não pode sequer se jogar ao chão, e que ainda por cima são longe demais, e nem sempre se tem disposição ou meios para ir até lá.
Um lugar inútil
Não posso crer no desenvolvimento sustentável de um país que não tenha terrenos baldios. No meu delírio, imagino um Projeto de qna Câmara dos Deputados prevendo a obrigatoriedade dos terrenos baldios em áreas residenciais. Movimentos sociais se mostrariam indignados, pois, com tanta gente sem ter onde morar, como é que o governo se daria ao luxo de reservar um lugar para que nele não fosse construído e nem produzido rigorosamente nada? Com tanta gente querendo demarcação de terras, como justificar um lugar inútil? Argumentariam que criança brinca em qualquer lugar, e defenderiam um parquinho na praça do bairro. E se ainda assim o projeto fosse aprovado no Congresso, começaria a campanha “Veta Dilma”.
Mas pelo menos as casas da minha rua ainda estão parecidas com casas. Aqui em Brasília muitas delas não passam de caixas de fósforo, cercadas por lanças pontiagudas em muros tão altos que nem mesmo o morador é capaz de ver o que acontece no lado de fora. Estou vendo o dia em que haverá um rio com jacarés e uma ponte levadiça entre o portão e a casa. Tudo isso numa arquitetura torpe, que seria suficiente para fazer o Niemeyer desvincular o nome dele da cidade. E os terrenos baldios, também aqui, limitam-se a quadras de esportes, para sempre vazias.
Nelson, o Rodrigues, dizia que certas verdades só são ditas num terreno baldio, à meia-noite, sob a luz de archotes, e na presença de, no máximo, uma cabra vadia. Saí do Google Street View com a nítida impressão de que certas verdades atrozes não poderão mais ser ditas, por pura falta de espaço. E nem mesmo a cabra terá um cenário para comer.