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Sentimentos - Fernando Coimbra dos Santos

passageirodachuvagmail.com

"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".

 


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ATÉ METADE DO CAMINHO PARA AS ESTRELAS

Quarta, 27 de setembro de 2023

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Seu coração ficou em algum ponto do caminho,

onde nossos sonhos sobem até a metade do caminho para as estrelas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Índice

Intróito – Pág. 1 

 

Capítulo I – Pág. 3 

Cap. II – Pág. 8 

Cap. III – Pág. 11 

 

Cap. IV – Pág. 15 

Cap. V – Pág. 19 

Cap. VI – Pág. 24 

 

Cap. VII – Pág. 28 

Cap. VIII – Pág. 33 

Cap. IX – Pág. 37 

 

Cap. X - Pág. 41

 

Final – Pág. 47

 

Dedicatória – Pág. 49

 

O autor – Pág. 50  

 

Bibliografia – Pág. 50  

I

Por um momento ficou imóvel. 

Deixou o olhar perder-se ao longe, não se detendo em nada de especial. Seu pensamento, de uma maneira estranha, deixara de trabalhar conscientemente. Passou as mãos pelo rosto, como se assim pudesse sair daquele torpor em que estava mergulhado. 

Recomeçou a andar, passos lentos. Surpreendeu-se imaginando o que estaria acontecendo no interior das casas assinaladas pelas pálidas luzes à distância. Em toda aquela miséria, o que estaria acontecendo de bom? E de ruim? 

Não, não importava realmente, nem se deu ao trabalho de sacudir os ombros. Não importava, nada importava. 

Caminhava no silêncio das ruas escuras e sem vida. O vento frio açoitava tudo e, como num delírio, quase podia ver as próprias paredes dos melancólicos edifícios estremecerem sob as lufadas. 

Colocou as mãos nos bolsos do casaco procurando aquecê-las um pouco. Os saltos de seus sapatos ecoavam lugubremente pelas calçadas das ruas vazias. 

Ao virar uma esquina deparou-se com um toco de árvore que jazia quase junto à sarjeta. Surpreendeu-se falando consigo mesmo, uma exclamação inconsciente, inesperada e inexplicável diante da constatação: 

-  Ali mora o espírito de um gato. 

Como se confirmando seus pensamentos, um grande gato cinzento se materializou, olhou-o fixamente por alguns momentos como se o avaliasse, e sorriu para ele. Como se aprovasse o que via nele. Como se, enfim, tivesse encontrado alguém por quem esperara a vida inteira. 

Então, inconcebivelmente, disse com suavidade ao homem: 

-  Um pássaro não é guiado pelo vento e sim por suas próprias asas. Para onde? Para onde ele desejar, basta querer. 

Ele, atônito, não soube o que dizer. O gato continuou, até de maneira implacável, inquestionável: 

-  Agora você sabe o que acontece quando não fazemos o que esperam de nós. 

O homem seguiu seus sentimentos, era o melhor a ser feito. 

- Há momentos em que se deve apenas ficar calado - disse para si mesmo.

E acrescentou, como que secretamente: 

- Talvez eu devesse ressurgir das cinzas... 

O gato o olhava fixamente, tinha nos lábios algo parecido com um sorriso.  Ou um meio-sorriso, talvez, como saber? Então, como se monologasse, acrescentou:

 

- Há coisas que são assim. A gente fica mais velha e as esquece, pensamos que as esquecemos, mas a cada vez que nos lembramos delas experimentamos uma tristeza profunda. A lembrança nunca vai embora, fica só oculta e aparentemente esquecida por um tempo. 

O homem estava estarrecido, incapaz de dizer qualquer coisa àquele gato que parecia saber seus pensamentos e sentimentos mais secretos.  - Às vezes é preciso confiar nas pessoas. Às vezes é preciso confiar em pessoas que não são confiáveis. É possível que uma pessoa ruim nos surpreenda e faça alguma coisa boa. Ninguém é imperfeito.  Como se saísse do torpor, o homem enfim conseguiu também dar um sorriso e retrucar: 

- Não seria “ninguém é perfeito”? 

O gato parecia estar se divertindo com a confusão deliberada que provocara. Então devolveu: 

-  Saiba que é indelicado fazer uma pergunta como esta. 

Pareceu se alhear por alguns momentos, começou a lamber uma das patas. Então a apontou para o homem e afirmou: 

-  Você é uma pessoa estranha. Você tem princípios e se ajusta a eles. São princípios esquisitos, mas são princípios. Admiro isso. Você é uma pessoa melhor do que se poderia esperar. Você é idiota, burro, teimoso e inconsequente, mas no final das contas acho que isso tudo é o que torna uma pessoa boa. O único modo de se redimir é ser uma pessoa boa. 

Como se só então respondesse o que fora questionado, explicou:  - As palavras são ambíguas, tem duplo sentido. Muitas vezes entendidas não como são, mas segundo nossas conveniências. Na verdade, só escutamos o que queremos escutar. Não é assim? 

O homem o avaliou, por sua vez. 

-                     Gostaria de entender. Se você puder parar de ser sarcástico por cinco minutos. Nem posso acreditar que estamos tendo esta conversa. Talvez eu não seja um caso totalmente perdido. Sei que comecei do lado dos mocinhos. Mas não tenho certeza de estar acabado desta forma.  Ele se perguntou se realmente acreditava nisso. Não acreditava, mas mentiu. A gente tem que dar esperança às pessoas. Às vezes, a nós próprios. O gato era dado ao humor negro e tinha uma maneira carinhosa de zombar dos outros. Plena de ternura, teve que reconhecer. 

-                     Houve um tempo em que quase tive certeza de estar entre os mocinhos, não entre os bandidos. Quase. Isso parece ter acontecido há muito tempo.  Tinha que aprender ainda a deixar de lado o que gostaria que fosse verdade e a encontrar o que é realmente verdade.

 

Talvez devesse se tornar um monge budista. Talvez ser um desses bons sujeitos, fazer alguma coisa pelo mundo, fazer uma coisa boa. Realmente boa. Mas combatera veneno com veneno e provavelmente se envenenara neste processo, que era a única forma de fazer isso. Como já tomara o veneno, podia agora muito bem lamber a colher. Gostava de acreditar que o mal é castigado e o bem, recompensado. Que o amor derrete o ódio, a verdade derrota a mentira e cada um recebe o que merece. Mas não é preciso ser muito cético para olhar o mundo ao redor e ver que as coisas não são bem assim. 

De tempos em tempos encontramos pessoas que nos fazem crescer como seres humanos. Ou alguma coisa. Seria o gato uma delas? - perguntou-se. 

O gato continuou: 

-  Um homem não pode fazer o certo numa área da vida enquanto está ocupado fazendo o errado em outra. A vida é um todo indivisível. 

Ele viu-se inexplicavelmente na defensiva. Então murmurou:  - Adoraria ter alguma coisa da qual me orgulhar, mas... O que me incomoda, o que realmente me destrói, é que não confio mais em mim mesmo. Estou tentando fazer as pazes com o passado. A vida está lá fora, creio. Talvez isto aqui seja só uma fantasia. Agora estou vagando num cemitério, não é mesmo? Num cemitério de sonhos mortos. 

-  É por isso que você precisa dar uma chance à vida. 

-  E quando ela deu uma para mim? 

O gato riu, bondosamente. 

-                     Você é um homem adulto, uma alma gigante, um homem bom, um homem de verdade. Ou tenta ser. Nunca se esqueça disso. Acredita em você? 

-                     Se eu acredito em mim? Mas que valor poderia ter minha resposta positiva ou negativa? O que importa é saber se os outros acreditam em mim. Consegue entender isso? As pessoas, de inicio, não gostam de mim. Sou rápido para sofrer, para sentir as coisas. Mas se você pudesse entrar dentro de meu coração, veria o quanto eu posso me emocionar. E esconder meus sentimentos. Viver uma vida falsa, uma vida que não é minha? Uma vida emprestada? Algumas coisas nunca mudam, não é mesmo? As coisas não mudam. Vai ficar tudo bem. Espero. Sempre sinto amor por coisas aladas: pássaros e borboletas. E sonhos.  - E onde você acha que está voando agora? - questionou o gato.  - Onde vou? Vou me encontrar com os fantasmas. Eu sempre tenho um encontro com os fantasmas da minha vida. Preciso de alguém que me ensine o que é ser um homem honrado. Que me ensine a defender o que é certo. Que me ensine a reprimir as forças das trevas. É preciso fazer a diferença entre o Mal e o Bem. Minha vida não é grande coisa, mas não estou pronto ainda para jogá-la fora. 

O gato o olhou com mais cuidado. 

- Você é uma pessoa estranha. Antes eu achava que era só mais um perdido. 

E então, como se explicasse a si próprio: 

- Moro em todos os lugares e em nenhum ao mesmo tempo. É certo que não passo de um viajante, um peregrino nesta terra. Mas, e você, seria mais? 

O homem levou um momento para responder, pensativo. 

- Deixo as janelas abertas. Mas minha angústia nunca voa para fora. Por mais estranho que pareça, tenho valores. Coisas em que acredito e que me fazem seguir em frente. A vida não segue os sonhos de um homem.

Ou será o contrário? Eu não vivo. Perdi a mim mesmo. 

O gato o fitou, como se ponderasse sobre o que responder.  - Não há nada pior que ter um sonho morto. Você se lembra de seus sonhos? 

O homem evitou seus olhos. 

- As folhas das árvores e o vento fazem uma sinfonia. As conquistas pessoais nem sempre estão no currículo. Sou impaciente com coisas demoradas. Como, por exemplo, ser feliz. 

O gato o olhou, até com pena. 

-  Eu compreenderia se você nunca se perdoasse por isso... 

-  Não sei explicar, você tem que vivenciar... - retrucou sem amargura.  - Por que não vemos estrelas de dia? Às vezes precisamos apagar a luz para ver alguma coisa. Como quando fechamos os olhos para ver nossos sonhos. 

O homem não sabia como lidar com o assunto, por isso não disse nada de imediato. Mas então pareceu chegar a um acordo consigo mesmo:  - Algumas lembranças se movem e nos ajudam a viver. Outras ficam estagnadas. Se não as pusermos em movimento de novo, elas nos consomem. Tenho a necessidade de imaginar que o que desejo está em outro lugar. Qualquer lugar, menos aqui. É como se eu tivesse aberto uma porta que agora não posso fechar. Estou numa jornada de busca, e preciso de remos para viajar. Acho que estive tanto tempo sofrendo que não sei mais como ser feliz. Talvez, se eu pudesse recomeçar... 

O gato foi bondoso: 

- Um novo começo não significa nada se carregamos sentimentos antigos.  - Eu me lembro de ter pensado... talvez a felicidade seja algo que sempre se procura mas que talvez nunca se ache, por mais que se tente.

 

O gato demonstrou entende-lo. 

- O que é que nos faz voltar àquele lugar vazio para o qual continuamos voltando? 

O homem o olhou, surpreso com a empatia. 

-  Eu preciso descobrir o que sou. Estou só tentando me salvar. Há pessoas que são atraídas pelo desastre. Algumas coisas não se pode esquecer. Por mais que se tente. Não importa o quanto eu tente, não consigo esquecer o passado. Ainda estou procurando respostas, mesmo que não me lembre mais das perguntas. Fica-se cansado de viver sempre sob uma nuvem sombria. As coisas não precisam ser fáceis, mas têm que valer a pena. Às vezes me surpreendo com a frequência que me vejo de volta ao ponto de partida. 

-  E?... 

-  Não gosto da maneira com que olham para mim. 

-  O que isso significa? 

-  Significa que não sei se um homem consegue fugir do que ele é. 

-  E você acha que sabe o que é. 

-  Eu achava que sabia. 

-  Você é responsável pela vida que você escolheu. 

-  Eu não a escolhi. Fui me tornando bastante cético. Tinha ficado um tanto frio, e quando se começa a ficar indiferente é muito difícil reverter a situação. Todos nós erigimos uma barreira psíquica a nosso redor para convivermos com emoções desencontradas e tentar manter o controle.  Depois de uma vida inteira de buscas infrutíferas, a gente fica meio insensível. Pelo menos, é o que achamos. Só percebi o quanto aquilo era enganoso quando estava me queimando por dentro. Quando já era tarde demais. O preço de não morrer é alto. 

O gato se levantou, começou a caminhar para o toco. Virou-se e disse:  - Vamos nos encontrar outras vezes... Às vezes é preciso sonhar com a lua brilhando e vagando nas profundezas de um céu escuro. Você não vai para casa? 

- Estas ruas são a minha casa - respondeu, amargo. 

O gato então disse: 

- Este lugar pode ser bom para morar, mas precisa de uma alma. E uma alma é a única coisa que não se pode comprar. 

Desapareceu, deixando o homem incerto quanto à estranha conversa que não sabia se realmente tivera ou se fora uma alucinação.

 

II

Anos atrás olhara em torno, atordoado. Não sabia bem como faria o que decidira fazer. Também não sabia bem o real motivo. Se é que havia um.

Que fosse, ao menos, incontornável. 

Achava que entendia o que faria, mas alguém que deixa alguém numa janela esperando por sua volta pelo resto da vida, não entende nada.  - Por que as pessoas fazem o que fazem? - perguntara-se vezes sem conta, sem chegar a qualquer resposta. 

Largou a pequena maleta junto à porta, voltou-se para a pequena filha de cinco anos, abraçou-a e lhe disse com voz entrecortada: 

-  Estou indo embora. Seja sempre uma pessoa de bem.  A pequenina o abraçou sem compreender que era uma despedida definitiva. Estava acostumada com as despedidas semanais que levavam o pai para o trabalho longe dali. O pai que sempre retornava. Mas que nunca mais o iria fazer. 

Beijou-a com amargura, sabendo que jamais esqueceria aqueles olhos azuis que o fitavam com amor incondicional. 

Então levantou-se, pegou a maleta e saiu para a rua. Sem olhar para trás.  Com a filha um pouquinho mais velha foi mais fácil. Era fácil, necessário e conveniente culpar alguém, nunca a si próprio. Olhou-a severamente, e com voz dura lhe disse: 

-  Vou embora. Você conseguiu o que queria. 

Voltou-lhe as costas e forçou-se a seguir em frente, para nunca mais voltar. Dissera “vou embora” como se fossem se ver na semana seguinte, o que jamais aconteceria outra vez. Nunca mais. 

Deveria ter sentido, mas não sentiu uma culpa horrorosa. Dizer aquilo para uma criança de seis anos... Algumas palavras são uma sentença de morte. Para os outros, e para si próprio. Mesmo que não o soubesse, naquele momento. 

Uma coisa que iria aprender pela maneira mais difícil é que há um certo tipo de pessoa nesse mundo da qual é melhor se afastar. E ele era uma delas. 

Justificava-se. Considerava-se aquele cujo destino é um veneno. Pensava que se lembraria sempre de quem significava algo para ele. Mas seria o oposto. Nossos fantasmas são pessoas para quem significávamos algo que, talvez, nunca tivéssemos percebido em sua plena realidade.  Caminhou muito, tinha todo o tempo do mundo, seu ônibus só partiria à noite. 

Chegou próximo da casa da cunhada. De longe viu a esposa no portão, acenou mentalmente e urrou uma inumana, dolorosa despedida muda. - Boa sorte. Tenham o cuidado de ficar fora do meu caminho - murmurou. 

E seguiu em frente, para nunca mais voltar. 

Talvez as coisas fossem voltar ao normal. Talvez as coisas não tivessem como voltar ao normal. E daí, o que é o normal? 

A vida muitas vezes esconde uma falha, uma ferida. Pode até algumas vezes ficar longe de sua mente, de suas lembranças, mas estará sempre ali, num pano de fundo não tão fundo, a espreitar por trás de uma máscara. 

É apenas uma questão de tempo para que o passado nos alcance. E nos cobre um preço que normalmente nos é alto demais. E merecido.  Ao longo do tempo iria levar uma boa lição. Um castigo. Porque o abismo o tragaria para sempre. 

Às vezes uma única lembrança pesa como se fosse quinhentos quilos de lembranças. 

Mais que sentir, iria vivenciar isso de uma maneira incontornável. 

Não sabia, ainda, que acabara de cavar a própria sepultura. 

Algumas vezes achava que talvez fosse a hora de voltar para casa. Algumas vezes achava que poderia voltar para casa. Algumas vezes achava que deveria voltar para casa. Se tivesse uma. Estava cansado de estar sempre cansado. 

Amanhã todo mundo teria esquecido. Quer dizer, não é bem assim, mas ninguém falaria do assunto. Pelo menos, era o que esperava. 

Como o ser humano pode se enganar quanto a si mesmo... 

Procurava agora formas de se iludir, fugir da realidade. Falar isso para uma pessoa que está assim é como dizer para quem está no deserto que há um oásis lá no horizonte. Será que o desejava tanto que só via isso? 

Em sua alma, só solidão. E culpa. 

Mas viver inclui morrer... e muitas vezes de forma injusta, desnecessária. Mas há mortes piores. De vidas sem amor, sem alegrias, sem paixão, sem nada. Outras são mortes doces e tristes. 

Qual seria a que o estava aniquilando tão lentamente? 

Ele só tinha que sair da cidade. Assim pensava. Mas não saiu. Quando se deu conta que tinha que sair era da vida, era tarde demais. 

Há pessoas que se irritam com aquilo que não entendem. E outras que não querem entender o que as irrita. E ele vivia irritado. E infeliz. E...  Nunca admitiria certas coisas. Nem para si próprio. Isso só é bom para quem admite, faz com que você às vezes se sinta bem. Mas acaba com a vida dos outros. 

Há uma maneira certa, uma maneira perfeita. De fazer qualquer coisa. Boa ou ruim. Menos ser feliz. 

Homens como ele, até homens mais céticos do que ele, todos acabam acreditando nestas coisas. Todos fingem acreditar nestas coisas. Mesmo sabendo que nada disso é verdade. Todo o resto são apenas histórias.

Todo o resto são apenas lorotas ilusórias. 

Depois, ao longo de sua vida vazia e miserável, costumava pensar como ela teria sido. Se tivesse agido de outra maneira. Depois pensava sempre como a dos outros teriam sido. 

E a única coisa que tem certeza é que todas poderiam ser muito melhores do que a dele. Sem ele. 

Ao longo da sua vida vazia se iludiria sempre achando que se acreditarmos apaixonadamente em algo que ainda não existe, nós o criamos. 

O não-existente seria aquilo que não desejamos suficientemente? 

Felicidade é uma esperança, uma utopia? 

Ou pode ser tão real quanto o céu e a terra? 

Jamais o saberia. 

Mas, ao longo do tempo, ficara tarde demais. Na época ele não sabia como era horrível admirar alguém. Ser admirado por alguém. Admirar alguém cega as pessoas, você não vê o lado ruim e egoísta de quem você admira. E ele era admirado por sua família, que deixara para trás.  O que se pode mudar em um único dia? O que se pode mudar com uma única atitude? Tudo. 

Uma vida inteira. Ele teria anos para aprender isso da maneira mais difícil e sofrida possível. E sua irreversibilidade. 

Ingenuamente ainda esperava que alguma coisa acontecesse. Talvez, até mesmo, perdão. 

Se não de si próprio, ao menos dos outros que machucara tanto.  Todos os dias que se seguiriam constituiriam um bom dia para não morrer. Ele não se safaria tão fácil assim. Tinha muito que expiar.  O que fazia e faria sempre seria ter esperança. Já que não para si mesmo, ao menos para os outros. Pelo menos tentaria. Para a família que fora sua.  Heróis não passam de pessoas que não tiveram escolha. Foi o que lhe disseram um dia. 

Para ele, justo ele, que nem de herói podia ser chamado. 

Para ele, que tivera uma escolha e a fizera de maneira errada, a mais perversa de todas. 

Começou a questionar se tudo o que tivera e tinha como certo é mesmo certo. 

Teria a vida inteira para descobrir.

 

III

E agora estava de novo naquela esquina, diante do toco inimaginável. 

Haveria mesmo ali o espírito de um gato falante? E tão sábio?  Descobrira dolorosamente que pessoas que ele considerava bons amigos não eram afinal tão amigas, e que pessoas que ele julgava apenas conhecidos eram alguns dos melhores amigos que já tivera. 

Ou poderiam assim se tornar. 

Se ele deixasse. Se ele merecesse. 

Seria o gato uma delas? 

Foi surpreendido pela voz irônica que ansiava: 

-  Anda sempre pelas ruas numa cruzada? Apagando incêndios? 

Sua resposta surgiu fácil, rápida e apropriada: 

-  Não é de incêndios que eu vou atrás. É do próprio fogo. 

O gato riu. 

-  Talvez o fogo-fátuo que procura tanto está em você mesmo.  - Talvez seja eu a me consumir... - ponderou. - Fiz uma porção de coisas ruins na vida. Mas algumas coisas, fiz direito. Como ir embora. 

-  Tão direito que, agora, não há mais volta - afirmou o gato. 

O olhar do homem se tornou agoniado. 

-  Sinto falta de minhas filhas... Às vezes, quando estou caminhando, tenho a impressão de vê-las. Chego a ouvir as vozes delas. Mas nunca são elas... 

-  Você é perseguido por seus remorsos - afirmou o gato. 

-  Não. Talvez eu mesmo me persiga... 

-  Há um provérbio japonês que diz que o encontro é somente o começo da separação. 

-  Disso eu não achei graça. 

O gato deu de ombros. 

-  Não era para achar mesmo... 

Fez-se um súbito silêncio entre os dois. Então o gato continuou:  - Você achou que era para uma boa causa. O Bem contra o Mal. Você pensava que era o mocinho, Só precisava ter mais cuidado, acabou virando o bandido. Talvez seguisse uma espécie de código de conduta, ainda que moralmente falho. 

-  Como saber?... 

-  Ah, você sabia. Você devia saber. Não soube. E agora está pagando por isso. 

O gato o olhava nos olhos com a intensidade de uma navalha. O homem procurou evitar este olhar. 

- Não faça uma gracinha dessas de novo. De qualquer forma, a vida não vai permitir que você esqueça. 

O homem retrucou, verdadeiro consigo mesmo: 

- Se fizer isso, que tipo de homem eu seria? Nem seria um homem. Minha causa é digna da minha morte, se for preciso. 

O gato riu, impiedoso: 

-  Isso não soa um tanto dramático demais? 

-  Sei que não trarei Justiça para todo o mundo. Mas tenho que começar por algum lugar. Eu gostaria de ter tido algum tipo de estratégia. Um plano para minha vida. Mas não tenho. Gostaria de fazer promessas e... 

Foi interrompido pelo gato: 

-  Não faça promessas que não poderá cumprir. Não sabe quão perigosos podem ser os juramentos? Tudo tem seu preço, depois... você não poderá pagá-lo. 

Não teve o que contestar. Sabia, agora, que existem consciências assombradas. E a sua era uma delas. Sempre seria uma delas. 

O gato continuou, docemente: 

- Só fazemos alguma coisa bem feita quando a fazemos com amor. 

A voz do homem se tornou angustiada. 

-  Sei... e não o tenho em meu coração. 

-  Talvez agora o tenha... - disse o gato, bondosamente. 

-  Tarde demais. 

-  Nunca é tarde demais, moço. Tudo tem seu tempo, Tudo acontece no momento certo. 

-  Terei merecimento? - questionou-se, amargo. 

-  Isso não compete a você julgar. 

Fez-se silêncio entre os dois. Então o gato falou, como se fosse uma parábola: 

-  Jamais se desespere em meio às sombrias aflições da sua vida, pois das nuvens mais negras cai água límpida e fecunda. O que quero dizer com isso? 

-  Não sei... às vezes não o entendo... 

O gato riu: 

-                     Tem certeza? Está bem, vou dizê-lo com outras palavras: o que você faria agora, se pudesse? Qual a coisa que mais gostaria de fazer agora em sua vida?  - Se pudesse? 

-                     Pare de buscar fuga em palavras inadequadas. Diga-me: o que faria agora? O que gostaria de fazer? 

O homem o encarou, súplice: 

-  Gostaria? Poderia? 

-  Quero respostas, não perguntas. Diga-me.

Houve como um lampejo de dor no homem. Um dentre infinitos outros. O gato insistiu: 

-  Vamos, diga-me. O dom maior em alguém é ajudar as pessoas a ver o que elas mais querem ver. 

O olhar do homem se tornou distante, mas um pequeno sorriso arqueou dolorosamente seus lábios. 

-  Queria poder voltar atrás e reparar todos os meus erros. 

-  O que faria? 

-  Sabe, eu me angustio com as lembranças que carrego e me aniquilam merecidamente. O que eu mais queria é saber como minha família está agora. Mais precisamente, como minhas filhas estão agora. Será que se lembram ainda de mim? Será que me perdoaram? Será que poderão me perdoar um dia? 

Envolveu-se em seus braços, como se abraçasse a si mesmo, estremecendo. 

-  Estou com muito frio. 

O gato retrucou, zombeteiro: 

-  Talvez não seja frio, seja medo. 

-  Medo? 

-  De se enfrentar. De me responder o que tem para dizer. 

-  Não poderia me ajudar? - suplicou. 

O gato o olhou detidamente. 

-  Em primeiro lugar, talvez devesse começar pedindo desculpas. Não quero que você fique decepcionado. Não vou revelar nada que você já não saiba. Vou revelar para você o que você perdeu: seus sonhos mortos.  - E eu não o sei?... Às vezes eu sinto que eu... que sou um buraco negro. É uma coisa que... ele absorve tudo para si e destrói. Minha jornada em busca de paz é muito longa. Meu coração ficou em algum ponto do trajeto, onde nossos sonhos sobem só até a metade do caminho para as estrelas. 

-  O que você está fazendo agora? - questionou o gato. 

-  Pensando... 

-  Não é para pensar, é para sentir. Diga-me o que sente. 

-  Não havia e não há nada que eu possa fazer. Um dia haverá?  - O melhor presente é aquele que é inesperado - retrucou o gato. - Para você mesmo e para quem precisa dele. O que faria agora, moço? Sonhe. Amanhã será um dia magnifico. Absolutamente magnífico. Só depende de você sonhar. E, talvez, realizar. Para que seja assim. Para que se torne assim. 

A voz do homem se enterneceu diante das possibilidades que intuía.

-  Primeiro eu gostaria de me ajoelhar diante de minha filha mais velha e pedir perdão. Pela coisa pavorosa que lhe disse... e injusta... não sei como fui capaz de dizer aquilo a uma criança. 

-  Será que ela se lembra disso ainda? Será que ela o perdoaria?  - Como preciso disso, meu Deus... Não sei se ela me perdoaria. Sei que eu nunca me perdoarei. Quisera poder esquecer... já tentei tantas vezes...

Nunca vou conseguir fazê-lo. Talvez nem deva, é o meu castigo. 

-  Em segundo... 

-  Em segundo eu gostaria de abraçar minha pequenina mais nova. Mergulhar em seus olhos azuis e também pedir perdão. Por tê-la abandonado quando ela mais precisava de mim. 

-  Mas você nunca a esqueceu... 

A voz do homem se tornou ainda mais amargurada. 

-  E isso é suficiente? Isso repara o mal que fiz? 

-  E terceiro?... 

O homem pensou por alguns momentos. 

-  Talvez morrer? Acho que não há um terceiro. 

-  E sua esposa? 

-  O que tem ela? 

-  Não merece seu pedido de perdão? 

-  Não vou fingir e dizer que alguma vez concordamos em qualquer coisa.

Não estou aqui para pedir perdão porque eu não acho que o preciso. 

-  Ficou tão rancoroso de repente... O que ela lhe fez de tanto mal assim? 

Pensou por alguns segundos. 

-  Não sei mais. Talvez seja um caso de malquerer... 

O gato contestou: 

-  Isso não é malquerer. É ódio. 

-  Ódio? Se nem sei mais porquê... 

-  Então está só nomeando um culpado conveniente? 

-  Talvez esteja. Esta é uma das covardias da minha vida. Na verdade, de coração aberto, o grande e único culpado sou eu. Ninguém mais. 

O gato riu. 

-  Sabe qual é o seu problema? Você quer agir como um peregrino em busca de justiça, perdão e paz, mas ainda tem a atitude de um assassino. 

-  Não me importo com o que as pessoas pensam a meu respeito.  - Mas devia. Tenho agora a honra de incomodá-lo. Que tal pensar um pouco no que você pensa de si próprio? Do que fez com sua vida? Enfim, faça o que lhe der na telha. E pense em mim de vez em quando. 

-  Não, não vá embora... - implorou. 

-  Até outra hora, moço - despediu-se, irredutível.

IV

Em sua vida, você fica feliz com coisas comuns. Pelo menos, assim acha.

Porque coisas extraordinárias estão decididamente fora de seu alcance.

Ou talvez por falta de merecimento, como saber? 

Ele seguia inutilmente como um bebê, seguindo o instinto de buscar calor humano. 

Virava-se para a direita e para a esquerda, em todo lado nunca encontrava ou encontrara sinais de justiça, senso ou cuidado. Parecia-lhe que um homem é mau e todos os seus dias são cheios de sorte, elogios e alegrias. Outro é sempre bom: ele morre abandonado, um homem falido, esquecido e desprezado. 

Mas saber de uma coisa e prová-la são coisas totalmente diferentes.  Suas lembranças eram como se fossem uma história repetida muitas vezes tão arraigada em sua mente que às vezes não sabia se era imaginação ou realidade. 

O rugido de sua mente era sempre silenciado por uma infeliz necessidade de se auto preservar. Vivia sob o signo da desesperança. Vivia tentando ser feliz. Ao menos, tentando ter paz, por pouca que fosse. Mas na vida o que vale são os resultados, não o esforço, constatava. 

Em seu coração quebrado e pequenininho sentia que em algumas noites o luar formaria um caminho sobre a noite, ligando as ruas ao céu estrelado, como se pudesse caminhar sobre ele. Aonde o levaria? Aonde quisesse, era o que gostava de pensar. Aonde iria? Não sabia. Mas, fosse onde fosse, ele gostaria que não estivesse caminhando sozinho. 

Por mais que tentasse, nunca ultrapassava a metade do caminho para as estrelas. 

Sim, às vezes encontrava vidas boas e bonitas. Vidas que valiam a pena serem vividas. Antigas e belas vidas, como se fossem casas aconchegantes onde quase tudo fora construído com perfeição e empenho. E muitas vezes, depois, enterradas sob camadas de mofo, teias de aranha e sujeira. 

Como a que ele tivera e jogara fora. 

Quando um lar não é encontrado, ele precisa ser construído. Pode até ser moldado a partir do nada. Mas...  O dia despencou em seus ombros. 

Suas lembranças pareciam ser uma promessa de destruição da qual não conseguiria escapar. Então fechou os olhos e deixou se levar pelo desconhecido. 

Como consequência, vivia em um grau incomum de isolamento. Mas ele ainda ousava ter esperança.  

Ele não sabia, até então, quão sério era possuir um coração.

A vida é tão injusta, não? Nossos sonhos se destroem tão facilmente.  O dia se tornou mais difícil que a maioria dos dias. Não lhe faltava combustível para alimentar os próprios medos. 

Havia muito tempo que perdera a esperança de encontrar consolo neste mundo. Por suas próprias culpas, claro. 

Muito tempo atrás havia um plano para sua vida, esperanças planejadas que talvez pudesse realizar um dia. Entretanto, não tivera escolha senão abandonar aquele futuro sonhado, não muito diferente de uma criança renunciando um amigo imaginário até esquecê-lo. 

Às vezes queria desaparecer também. 

O sol brilhava de maneira nebulosa através das nuvens, como se pincelasse o momento com uma luminosidade difusa e dourada que o fez sentir-se como se tivesse finalmente entrado em um sonho bom. Ele mal podia controlar a necessidade de se aproximar e adentrar tanta beleza.  Uma brisa se movia pela rua, trazendo perfumes de flores indefinidas em sua direção, sentiu a fragrância inebriante profundamente em seus pulmões e lembranças, experimentando um raro momento de alegria inexplicável. 

Vezes sem conta ele orava para se encontrar. Mas esta oração também nunca foi atendida. 

O que é o tempo quando não há horas e estrelas para contar um dia, nem sóis para contar um ano? 

As algemas usadas por um sofredor muitas vezes não são vistas pelos olhos. Haveria como rompê-las? Era um pensamento sombrio.  Queria voltar desesperadamente no tempo, atingido repentinamente por uma necessidade assustadora de fugir daquele lugar, ansiava voltar para casa, cair aos pés de seus familiares e suplicar perdão. Mas, ainda assim...  Ele não queria perder a fé em seus sonhos, mas cada dor que enfrentava parecia exigir um pouco de suas esperanças em fragmentos.  Agora descobrira que podia ser impulsionado toda a sua vida por uma única emoção: raiva. De si próprio. 

Ele não tinha esquecido, jamais esqueceria. Apenas deixara de lado. Ou assim pensava. 

Por alguns instantes foi um dos poucos momentos nos últimos anos de sua vida que se sentiu ilusoriamente um pouquinho em paz consigo mesmo. 

É... nós somos todos hoje os fantasmas de amanhã. 

Então escolheu olhar uma faixa de paralelepípedos molhados que brilhavam sob a luz alaranjada dos postes. E nem estivera ou estava chovendo.

Sua dor era real, ainda que envernizada por uma fina camada de amargura. 

Caminhava calado, sempre calado. Era realmente bem versado na linguagem do silêncio, não gostava de reanimar os cadáveres que arrastava consigo para todos os lugares. 

Temia se debruçar sobre a própria tristeza por medo de se afogar naquele abismo sem fim. 

Vezes sem conta descia ao próprio inferno. E sempre emergia dele sem um único arranhão perceptível. Vinham todos em sua alma.  Certas lembranças demandavam um tempo agonizante: a busca de um sonho impossível. Era um sonho ao mesmo tempo simples e impossível, mas era algo que lhe dava conforto quando sua mente precisava escapar. 

Precisava escapar da própria mente, de sua vida estranha.  Algumas pessoas têm olhos em seus corações. Elas veem este mundo através destes olhos. Elas veem tudo através destes olhos.  Ele sempre buscava, em seus caminhos tortuosos, pessoas de bom coração. 

Como não podemos mudar a realidade, devemos mudar os olhos com os quais a vemos. Precisava encontrar alguém que lhe ensinasse como fazer isso. 

Andava agora tão perto das estrelas que pensava poder tocá-las.  Mas ao andar pelas ruas vazias à noite era preciso ter mais cautela do que nunca, pois conhecia bem o perigo que estranhos desesperados representam num encontro inesperado. 

Ah, Deus, por que não se dera conta de que haveria consequências com o que fizera? No fim, foi levado a isso: a escuridão. 

Sentiu uma pontada no peito. Seria um lampejo de consciência? Ora, logo ele?... 

Agora andava por uma escuridão tempestuosa, como se estivesse em transe. 

Solitário. Silencioso. 

Sim, ele era fechado. Mas uma pessoa não deve ser crucificada só por seu silêncio. 

Talvez devesse procurar aquele gato tão sábio e tão inconcebível. Talvez pudesse de alguma maneira aceitar suas imperfeições e tudo o mais lhe poderia ser perdoado. Talvez. 

Mas tinha medo de perguntar o motivo daquela empatia, daquela solidariedade a que se desabituara. 

Tinha medo, e ao mesmo tempo esperança, que o gato respondesse: 

- Porque eu entendo. Porque eu fui você.

Agora, como num delírio febril, vê-se caminhando por lugares que desconhece. Ou dos quais não se lembra mais. 

A orquestra que não existe começa a tocar uma música da sua infância que também não se lembra mais. 

Vê-se saindo de uma casa vazia como sua vida e sonhos. O sol brilha lá fora, mas não aquece seu coração. 

O céu está azul, muito azul, sem nuvens, um azul diáfano e suave.  Como se erguido para o infinito, um imenso guapuruvu se eleva para o inatingível. No alto, bem lá no alto, algumas andorinhas imóveis parecem olhar para ele antes de alçarem voo e desaparecerem na distância, asas rufando inaudivelmente uma despedida impossível. 

Começa a andar lentamente (para onde?) por um estreito caminho de areia branca ao longo de um pequeno riacho que desliza mansamente para o nada. 

Por um momento rápido e efêmero é atingido pelo perfume das flores brancas das ciosas que balouçam suavemente como se lhe dirigindo um adeus doloroso, cruel, irreal e atemporal. 

Vê-se caminhando através de um arvoredo sem fim que parece constituir um túnel esverdeado, em seus vãos os raios dourados do sol atravessam com dificuldade suas ramagens desenhando imagens difusas e imprecisas nos anteparos que encontra momentaneamente. 

Vê-se caminhando agora por um asfalto inconcebível, interminável, que se estende confinado por uma muralha de muros impessoais em ambos os lados, sufocando-o inapelavelmente. 

Dá-se conta, então, do que sente falta: a areia branca sob seus pés, o verde da mata, o colorido e o perfume das flores que havia em sua vida.  Caminha lentamente, como se também andasse para o nada. O que fazia sempre em sua vida vazia. Chega, enfim, a uma praia que não reconhece mais. 

Onde estão as ondas espumantes que se quebravam e se desfaziam num branco mesclado com o azul que se confundia com o céu trazido à terra por alguns momentos, como se fosse uma mágica maravilhosa e tão necessária há muito esquecida? 

Onde estão os pés de abricós com seus frutos amarelos que também lhe acenavam inconcebivelmente de algum lugar de seu passado? 

Aquilo seria uma pequena parte do céu? Teria sido? Teria sido seu sétimo céu, seu paraíso? Uma pequenina parte dele? Ou era isso o que pensava, se iludia, buscando um consolo que jamais atingiria? 

É, algumas pessoas esquecem depressa. 

Outras apenas fingem que não se lembram mais. 

V

-  Talvez você tenha uma necessidade grotesca de ser um herói - disse o gato. 

Ele se surpreende. 

-  Eu?... Com a covardia que tornei minha vida?... 

-  Lembra-se que eu lhe disse um dia que heróis são pessoas que não tiveram escolha? 

-  Ah, mas eu tive, eu tive. Sou um covarde, não um herói. Às vezes fico pensando se a minha vida não é apenas um sonho. Mau.  Sorriu. Mas com uma expressão de dor. Então acrescentou: 

-  Como sou talentoso - provocou-se suavemente com ironia. - Sou ótimo em fazer os outros sofrerem. 

O gato o olhou, pensativo. Então perguntou: 

-  O que tem? Do que seria capaz de abrir mão para mudar sua vida?  Seu coração se aqueceu com esta ideia. Então sorriu, sentindo um carinho complicado pelo gato. 

-  Às vezes imagino que as pétalas das flores poderiam ser arrancadas pelo vento e cairiam em um rio, perfumando a água. Minha família ainda está comigo. Embora apenas em minha saudade. Percebi tardiamente, muito tardiamente, que o que fiz vai ficar em minha mente para sempre. Sabe, não tenho mais propensão para contos de fada. 

Ele se estudava agora com um otimismo cauteloso. Embora considerasse que talvez fosse tarde demais para se deparar com alguma coisa boa. 

Então desatou a rir. Uma risada desesperada, insana, dolorosa. 

-  Queria ter tempo... 

Recomeça a rir desvairadamente, incontrolável, atordoado, desamparado.  - Tempo... tudo o que não tenho... o tempo deixa de ter qualquer importância quando não se tem mais para quem voltar. 

O gato aguarda silencioso, paciente, sabe que aquilo é necessário. 

O homem se recompõe, então recomeça a falar lentamente: 

- O que tenho?... Queria ser rico, muito rico, indescritivelmente rico, infinitamente rico. Queria uma fortuna imensurável para trocá-la com a coisa mais preciosa que existe no mundo: minha família de volta. 

O gato continuou silencioso diante daquele rompante. 

Era como contemplar uma rosa e notar apenas os espinhos, nunca a flor.  O olhar do homem se tornou distante, desfocado, como se ele visse alguma coisa com a qual só pudesse sonhar. Então, acrescentou:  - Talvez minha única defesa contra a crueldade de minha vida seja a imaginação Era uma vez... 

Nunca seus demônios o deixavam em paz.

O gato o ouvia como se parecesse estar ouvindo o tamborilar de uma chuva suave. Sabia e respeitava isso, que aquela dor, sem sucesso, estava disfarçada sob um insuficiente verniz de sarcasmo e de indiferença mal fingida. A dor torna as pessoas espinhosas, às vezes. 

-  Não tente me distrair com conversas paralelas - disse-lhe o gato, lutando contra um sorriso. - Quanto mais escura a noite, mais as estrelas brilham.  Talvez aquele breve momento seria relegado a um cemitério povoado por todas as recordações semiesquecidas. Ou talvez fosse uma possibilidade de redenção há muito procurada. 

-  O que quer dizer com isso? - perguntou o homem, surpreso. Defrontarase tanto com uma bondade inesperada quanto com uma crueldade assustadora. Na maior parte das vezes, com a indiferença. Seria o gato diferente? Poderia o gato ser diferente? Suas frustrações fervilhavam num lento fogo baixo e constante. E isso lhe provocava incerteza e medo. Mas, ainda assim... 

Sua vida lhe parecia tão sem sentido como atirar flechas nas estrelas. Este tipo de luz não se extingue tão facilmente, o que haveria para comemorar em uma vitória que só deixaria tudo ainda mais sombrio? 

Voltou a olhar mais uma vez para as sombras, tentando enxergar através dos véus da escuridão o que era a sua vida. 

Ainda assim a dúvida não o impediu de sonhar. E se?... 

Uma onda de incerteza o desorientou ainda mais por alguns momentos.  É bom forçar um pouco a verdade quando se está entrando em pânico.  - É bem aqui, entre zangado e irritado, que reside minha encantadora personalidade - disse inesperadamente ao gato. 

-  Ah, vá dar uma volta... 

O gato o olhou, pensativo. 

- E se eu adivinhar o que você vai me dizer? Você só precisa confirmar com um aceno de cabeça. Não? Isso me parece muito injusto... 

E acrescentou: 

-                     Sabe... - começou, tentando disfarçar um sorriso - com toda esta empolgação me esqueci de dizer algo bastante importante: a única forma de você retornar à sua vida feliz seria distorcer sua memória, o que exigiria manda-lo de volta no tempo. O que é excessivamente complicado, até impossível. 

-                     Você acha mesmo necessário acrescentar esta última parte?  - Ora, por favor, você faz exigências demais - debochou o gato. - Pode confiar em mim. Sou a discrição em pessoa.  O homem o olhou detidamente. Então devolveu: 

 

-                     Ah. agora estou sentindo uma dolorosa onda de constrangimento retroativo. Nem sei o que dizer... 

Uma estranha insanidade tomou conta dele. O que poderia dizer mais, se nem para si próprio admitia e confessava certos sentimentos?  Ele só sabia que seus sonhos estavam distantes desta terra mundana, muito acima dela, Inatingíveis. Irrealizáveis. 

Um medo rastejante tomou seu coração. 

Sabia que, às vezes, precisamos lutar sozinhos nossas próprias batalhas.

Porque uma barganha com o diabo é sempre sangrenta. 

Assustou-o a facilidade com que seu coração e mente se separavam.

Deixara simplesmente de sentir e pensar, num torpor agonizante.  Só naquele momento ele percebeu quanto ansiava para que o gato tivesse uma boa impressão sobre ele. O julgamento de seu caráter de alguma forma tornava isso crucial para o julgamento por si mesmo. 

Por anos ele se perguntava se alguém poderia recebê-lo novamente com carinho, ou olhá-lo como se fosse importante. E não era isso, exatamente isso, que encontrara naquele gato impossível? 

Ele se perguntava agora se seria pior saber o que sua vida poderia ter sido... ou saber e perder antes que fosse possível tê-la. 

Sem aviso foi atraído pelo sorvedouro de uma noite escura sem fim. 

Então, até para ganhar tempo e ordenar suas ideias, murmurou: 

- Essas são todas excelentes perguntas. Agradeço a sua sabedoria. 

O gato debochou: 

-  Verdade mesmo?... 

Um sorriso pareceu se refletir em seus olhos. Então acrescentou:  - Eu me ofendo com isso. Quero que saiba que fico muito ofendido com isso. Dignidade e honra são qualidades essenciais numa pessoa. Aceita me ouvir um pouco? 

-  Aceito. 

-  Você aceita? Mesmo? 

-  Aceito. Mesmo. 

-  Sem que eu tenha que implorar nem nada? 

O homem escondeu um sorriso. 

- Sem que você tenha que implorar nem nada. 

O gato foi até impiedoso: 

- Está precisando tanto assim? 

A voz do homem perdeu o tom de brincadeira com que se defendia. 

- Estou... por favor... 

O gato o olhou, inquisitivo.

 

-  Às vezes precisamos agir como se estivéssemos em um baile, não em um funeral. 

-  É o que eu estava fazendo - disse o homem. 

-  Estava mesmo? 

-  Acho. 

A voz do gato quase se tornou professoral. 

- As pessoas gostam de falar “antes de tal coisa”. A verdade é que você nunca sabe o que está acontecendo de verdade “antes de tal coisa”. As pessoas não são todas iguais. A imensa maioria não passa a vida tentando ver o que há por trás das cortinas. Não, elas gostam de cortinas. Se sentem estáveis, confortáveis, realizadas. Não vendo o que há atrás das cortinas elas se sentem seguras. Ao menos, mais confortáveis. 

O homem compreendeu. 

-  Sei, como quando varri meus sonhos e minha vida para baixo do tapete.  - Isso. Fazer o que é certo não tem nada a ver com força de vontade. Mas com o que está dentro de você. Se permitir que suas emoções erradas controlem sua mente, seu coração ficará vazio. Em nossas vidas precisamos de pessoas com quem criar e compartilhar histórias.  Fora um longo caminho tortuoso. Continuava sendo. Ele tornara-se uma pessoa degradada, pelo tempo. Quando morreu em vida, afundou-se numa profunda melancolia e desespero. 

Mas, agora havia, no fim das contas, uma estranha esperança em tudo isso, no silêncio que se seguiu. 

Teve o impulso inexplicável de encarar aquilo como se fosse um dever, um compromisso. Ou talvez devesse ter visto aquilo apenas como uma possibilidade de redenção, como saber?  - Você se assusta facilmente? - perguntou o gato. 

Ele foi tomado de surpresa; 

-  Você me insulta, perguntando isso - contemporizou. 

O gato riu. 

-  É mesmo? Então por que tem tanto medo de enfrentar o que precisa ser feito? 

-  E o que precisa ser feito? 

-  Diga-me você. 

O gato ficou silencioso, como se não tivesse escutado o desafio. O homem sentiu-se estranhamente desconfortável. 

-  O que tenho que fazer? - suplicou. 

-  Quando nossas raízes nos chamam, devemos atender seu chamado - respondeu misteriosamente o gato. - Devemos fazer o que precisamos fazer. Talvez seja exatamente isso que nos diferencie de muitos outros.

 

Quer conversar a respeito? Mesmo? 

O homem se retraiu, mesmo sem se dar conta do que fazia. 

A frase “precisamos conversar” geralmente vem antes de alguma coisa ruim. Mas, desta vez, intuía que seria algo bem pior. 

Dizem que tudo é mais vívido quando estamos morrendo. Você quer sentir, provar, amar. Ao mesmo tempo, esta situação é insustentável, impossível. 

O que tinha que fazer teria que vir de dentro dele, de suas mãos, de seus atos, de seu coração. 

Ele tinha que procurar sua luz num lugar sem luz. 

Olhou para o gato, tremendo, súplice: 

-  Não sei se consigo fazer isso. 

-  Isso não vai acabar até que você o faça. 

-  Mas não sei se consigo fazer isso. 

-  Está na hora de você fazer alguma coisa realmente boa com a sua vida.

Isso é o que você tem que fazer. Não há como alguém fazer isso por você. 

-  Não tenho a força para dar a outra face. 

-  Mas precisa fazê-lo, não há outro meio. Está tudo bem. Vai ficar tudo bem. 

Ele suspirou. 

-  Minha vida parece ser é uma comédia. Mas não é, É uma tragédia. 

-  Só enquanto você o permitir. Até quando quer que seja assim? 

-  Quero?... Consigo?... 

-  Tenho medo por você, consigo ver a expressão em seus olhos - disse o gato. - Medo que não tome a decisão acertada. Não dá para medir a vida. Quanto tempo acha que ainda tem para acertar as coisas que precisam ser acertadas? Todos temos que pagar nossas dívidas. Enquanto há tempo. 

-  Ajude-me... o que faço?... 

-  Você sabe. Nada dura para sempre. Você está no meu coração agora, até que você não esteja mais. Mas esteja em outros corações, e desse jeito não morrerá nunca. E alguma coisa permanecerá para sempre.  

O homem vacilou: 

-  O que você quer dizer com isso? 

-  Que se não enfrentar seus fantasmas, você estará assim para sempre. 

-  Mas, e se não me perdoarem?... 

-O gato imitou sua entonação: 

-  Mas, e se você não se perdoar? 

-  Como fazer, então? 

-  Simplesmente isso: vá, faça o que tem que ser feito. Não fuja mais de você mesmo.

 

VI

- Este lugar ainda parece ser o mesmo - murmurou para si mesmo.  Encontrava-se em uma ruazinha de uma cidade do interior, rua da qual não se lembrava mais nem o nome. Apenas o instinto o levara até ali. 

Parecia que nada mudara quando tantas coisas haviam mudado.  Viu o mesmo muro descascado, o mesmo portãozinho carcomido pelo tempo, a mesma descida do barranco onde foram escavados os degraus na terra que levavam até a pequena casa lá embaixo. 

Fechou os olhos e cobriu o rosto com as mãos, tentando entender se o medo que sentia era fruto de sua criação ou se havia nascido com ele. Ficou pensando qual criação é pior para um ser humano. O tipo em que a pessoa é amada e protegida a ponto de só perceber a crueldade do mundo quando é tarde demais para que desenvolva as habilidades necessárias ao enfrentamento, ou o tipo de criação que teria tido. A pior versão, cujo aprendizado é o enfrentamento, era o que estava fazendo agora. 

Hesitou, mas acabou batendo palmas. Tão baixinho, que parecia não querer ser atendido. Mas foi. 

Um desconhecido. Lógico. Os sogros teriam trezentos e cinquenta e nove anos cada um, transcorrido tanto tempo. 

Perguntou sobre a família que procurava, ninguém ali sabia deles. Tempo demais. Agradeceu. 

Foi de casa em casa, perguntando, perguntando, perguntando... Com medo de conseguir respostas. Mas precisava saber. 

Encarava os próprios pés, cabisbaixo, como se tivesse sido repreendido.  Até que conseguiu uma indicação. Talvez uma das filhas fosse encontrada numa distante cidade do interior, onde teria uma lojinha. Talvez.  Era como acordar com fome e ficar pensando inutilmente que encontraria um alimento que não estava ali. Mas, e se?...  É, nossos sonhos se destroem tão facilmente. 

Encara o horizonte escuro, um ou outro relâmpago irrompe no céu sombrio. Parece que há uma tempestade a caminho ameaçando extinguir a luz da tarde. Extinguir a luz de sua esperança. 

Fica observando o dia que começou tão promissor pouco a pouco se transformar em trevas. Ou seria impressão? 

Talvez ele devesse fazer um transplante de personalidade. 

Porque, às vezes não entende os humanos, a começar por si próprio. E ferve de raiva quando vê um traficante na esquina. Odeia isso, pois se pega desejando que toda a humanidade sofra só mais um tantinho do que já sofre. Para que todos paguem suas dívidas, seus pecados, e se igualem a ele. 

Vivenciara que quase todo mundo que morreu com menos de cinquenta anos morre por causa do vício de drogas. Que tipo de vício não importa, todos levam à morte. 

Sabia que haviam sido gente que acaba trabalhando em qualquer coisa até morrer por dentro. Aí alguém oferece uma dosezinha para que a vida pareça uma pista de dança e em dois tempos a pessoa não consegue mais passar um segundo de vida sem uma dose atrás da outra. Então a pessoa morre por acidente, quando tudo o que ela mais queria era escapar de tanta desgraça. 

Nunca se envolvera com drogas. Mas, a droga da sua vida... 

- O que te deixa feliz? - talvez lhe perguntasse o gato. 

Precisa desviar o rosto antes que alguém veja o seu semblante, pois honestamente não sabe o que o deixa feliz. Também tem curiosidade de saber. Passou a maior parte de sua vida só tentando sobreviver.  Quando se é uma pessoa horrível como ele, imagina que buscar o que há de horrível nos outros seja uma espécie de tática de sobrevivência distorcida. Levar o foco à obscuridade alheia na esperança de mascarar a própria obscuridade. É assim que muitas pessoas vivem a vida inteira.

Sempre buscando o pior em todo mundo. Ou ansiando por isso. 

Como se, ao encontrar alguém pior, talvez se sentisse um pouco melhor.  Parece que muitas vidas se esvaíram bem no meio de uma frase, é a impressão que tem. Talvez, daí, a vantagem de falar pouco. Talvez seja mais seguro. 

Tinha amigos? Tivera amigos? Só conhecidos. Mas ninguém fora seu amigo, de verdade. Eram só outras pessoas solitárias procurando alguém com quem dividir a solidão. Todos fingindo, como se fossem amigos de infância. 

O sol está se pondo e o céu exibe um turbilhão de cores, mais parece uma bola de fogo flutuante equilibrada sobre o horizonte. Sente os olhos lacrimejarem diante de tanta beleza. Tantas cores enfeitam o céu que é como se a natureza usasse as nuvens para escrever um poema para comunicar sua gratidão aos que dela cuidam. 

Perguntou-se se ele passasse mais vezes olhando esta vista, será que também começaria a dar pouca importância à ela? Agora só há metade do sol equilibrado no céu. A outra metade foi tragada pela terra e ele, de certa forma, queria que ela o tragasse também.

 

Até como forma de defesa, treinara-se para se desinteressar mais depressa ainda do que era capaz de se interessar. Melhor não ter para não perder. 

Ser feliz deveria ser um direito humano fundamental. Uma necessidade. Mas isso dependeria de aprender a conviver e entrelaçar vidas, o que nunca soubera fazer. 

As personalidades são moldadas mais pelo estrago que pela bondade. A bondade não se entranha tão fundo na pele quanto o estrago. O estrago inflige uma marca tão profunda à alma que fica impossível removê-la. A marca fica para sempre, para toda a vida, e todo mundo é capaz de perceber isso só de olhar. 

Não sabia nem por onde começar. Parece que levou tanto tempo para tocar no assunto de sua redenção que agora chega a ser estranho ou preocupante que não saiba como dizê-lo. Queria evitar perguntas que não conseguiria responder. Mesmo que viessem de si próprio. 

Mais nítida e presente fica a inexistência do esforço que não fez para ser uma parte da vida do que fora sua família. 

- Pois é. A gente não se fala muito - devolveu ele, como se também guardasse um ressentimento. Como se tivesse direito de tê-lo.  Quase sem o perceber dá uma risadinha. Debochando de si próprio. Ele odeia este tipo de risadinha, é o tipo mais condescendente de todos. O que o machuca mais. 

O horizonte agora está cinzento como se o mundo ainda se preparasse para dormir. O céu traga cada nuance de cor que tenta despontar e depois de um tempo tudo assume um opaco tom indefinido. 

Ele, de fato, gostava de apreciar a alvorada, o raiar de um novo dia com suas possibilidades para melhor e para o pior. Às vezes acha ser um dos muito poucos que ainda dá valor a esta visão tão bela. 

Mas, às vezes, sente-se como se não tivesse mais vontade de encarar o mundo. Porque, de repente, à distância de um pequeno passo, começa um mundo novo totalmente diferente. Não necessariamente melhor.  É, ele realmente já passou por muitas dificuldades em sua vida, a maioria criadas por si próprio. Dá para ver. E sentir. Incongruentemente, também é cheio de esperança. 

Mas é difícil não se amargurar quando se passa tanto tempo sozinho. 

E agora não sabe dizer se se sente ainda mais desesperançado ou aliviado.

Sua situação insustentável foi protelada, ao menos. 

Mas está determinado, caminha lentamente em direção à rodoviária, sua busca tem um provável destino onde talvez reencontre paz. 

Ou ainda mais dor.

 

Estivesse em sua cidade, o gato talvez lhe perguntasse: 

-  Como é a sensação? 

-  De que? 

-  De ter o coração destruído? 

Ele meio que sorriu. 

-  Ah, você me conhece... Se um dia for falar mal de mim, me chame. Sei coisas horríveis sobre mim. 

Ele dá um suspiro e larga mais alguns pensamentos ao vento. Melhor não pensar. Se o conseguir. 

-  Achei que você fosse dizer alguma coisa mais profunda - disse o gato. - Pensei que o conhecesse. Mas estava enganado. Você tem camadas. 

-  Camadas? Como assim? 

-  Tipo uma cebola. Camadas defensivas. Suas camadas são do tipo que a gente tem que descascar. Aos poucos. 

-  Comigo você não vai passar da primeira camada. Faça-me algumas perguntas. Eu talvez não responda a maioria, mas quero saber o que o deixa curioso a meu respeito. Para mim não é fácil confiar nos outros. 

O gato suspirou: 

-  Talvez eu só consiga remover suas camadas depois que eu conseguir remover as minhas próprias. 

-  Você também?... 

-  Por que motivo você acha que precisamos ajudar os outros? Talvez assim consigamos nos ajudar um pouquinho também. De alguma forma. Conteme algumas lembranças suas. 

-  Não sei se posso fazê-lo, não são lembranças bonitas. Talvez sejam de uma beleza apaziguante, mas dolorosa. Procuro preservá-las de alguma maneira que desconheço. Meu presente e futuro sempre foram um cofre e eu preciso muito ter a chave que o abre. E eu a procuro muito. Ou uns explosivos... Talvez possa ainda me tornar um ser humano decente. E nós dois? Somos parecidos? Temos algumas coisas em comum? Sofrimentos?

Erros? Falhas? Arrependimentos? Sou só estranhamente sentimental... 

O gato o olho bondosamente. 

-  Você tem razão, somos parecidos. Mas apenas no sentido mais triste. Quando o conheci dava para ver que você guardava feridas. Tem razão. De mim, também, só sobraram os escombros. Olhei para você um rápido instante e quase senti que estava me encarando num espelho quebrado. 

-  Pois você disfarça bem. 

-  Talvez. Carregamos muitas coisas nos ombros e não temos como saber como somos quando não estamos sob pressão. Nem quando estamos sob ela.

 

VII

Será que o ser humano é a única espécie que destrói a si mesmo e todos à sua volta com seus erros? 

Perguntas como esta só... só não fazem muito sentido agora. 

-                     Talvez não seja preciso conhecer a história de alguém para saber o que ele é hoje - continuou o gato. 

Ele suspira, pensa e retruca: 

-                     Já te contei mais coisas que a qualquer outra pessoa. Na vida... Não seja ganancioso. Já vivi em muitos lugares. E odiei cada segundo. Não sei como é possível sentir um frio deste na alma. Mas sinto. 

É um suspiro lento e profundo, como se para sobreviver ele tivesse que sorver um tantinho de sua alma. A dor não está toda estampada em seu rosto, mas corre por suas veias. 

O gato o olha como se visse seu interior antes de ver o lado de fora.  - Às vezes as pessoas se afogam na parte rasa - sussurrou como para si mesmo. E o fita ainda mais detidamente. 

-  Não sei dizer se você está sendo sarcástico... No tempo certo irei removendo as camadas, como lhe disse. Sabe que existem dois tipos de erro? O erro que deriva da fraqueza e o que deriva da força.  Ele percorre todos os anos pelos quais passara, suspira sob o peso dos erros, das lembranças, dos arrependimentos, como se não acreditasse no que fizera. Passara tanto tempo então tentando esquecer que começara a achar ilusoriamente que não sentia mais nada. 

Mas os sentimentos nunca apagaram, nunca se foram. Ele apenas forçara tudo a hibernar para sobreviver à dor. 

Torna a se lembrar que um dia ouviu alguém dizer que existem homens bons, mas que achara fosse uma lenda. Ele, decididamente, não seria um deles. 

-  Eu vi este pensamento - diz o gato, baixinho. 

-  Que pensamento? 

-  O pensamento negativo que você acabou de ter. Estava bem aqui. - E leva a patinha bem entre suas sobrancelhas. 

A surpresa se estampa em seu rosto. 

-  Para alguém que não sabe muito a meu respeito, você com certeza sabe muito a meu respeito. 

-  Ah, não preciso saber nada sobre seu passado para saber que você é uma pessoa boa. Dá para ver por suas atitudes. Você pega muito pesado consigo mesmo. Todos nós temos os nossos erros.  - Você está sendo dramático - contemporiza.

 

 

Não estou coisa nenhuma. Só que eu também vivi uma vida dramática e pode ser que não goste de me lembrar disso. 

-  Não vou permitir que suas palavras me alegrem nem vou permitir que elas sejam uma desculpa pelo meu péssimo desempenho como pai. 

Começa a voltar ao normal, a agitação começa a afrouxar o ritmo. Gradual, cuidadosa, árdua, como se reduzisse lentamente a marcha de um trem descontrolado. Fica fingindo estar relaxado, apesar de sentir que acabou de ser eletrocutado. 

Então, como se quisesse pensar em outras coisas, desviar o rumo nefasto de seus pensamentos, pergunta inesperadamente ao gato:  - Será que é bom ser rico? Muitas vezes o que têm cheiro de riqueza, elegância e conforto, tem cheiro de fraude. Tem cheiro de explorar outros seres humanos.  

-  Gostaria de ser? 

-  Não sei direito. Às vezes eu... 

-  A pessoa pobre tem desejos a alcançar. Objetivos empolgantes. Uma casa dos sonhos, talvez umas férias inesquecíveis, ou até mesmo jantar num restaurante caro na sexta-feira à noite. Quanto mais dinheiro o rico tem, mais difícil é encontrar coisas que o empolgue. A casa dos sonhos já existe. Pode ir a qualquer canto do mundo a qualquer hora que seja. Pode contratar um chef para preparar qualquer prato. Quem não é rico acha que estas coisas preenchem quem é rico, só que não preenchem. Podem lotar a vida de coisas bacanas, mas coisas bacanas não preenchem o vazio da alma de nenhum deles - explica. 

-  Puxa, dizendo assim, dá até para ter pena deles... - ironizou. - O que preenche o vazio de uma alma? 

O gato o analisou por alguns segundos, então respondeu: 

- Pedacinhos da alma de outras pessoas. 

O homem se calou, perdido em pensamentos desencontrados. 

-  Você já viu o mar? - perguntou o gato, inesperadamente. 

-  Já. 

-  E o que sentiu? 

-  Textualmente? 

-  Sim, textualmente. 

-  Fiquei impressionado. Fascinado. Foi uma sensação estranha. Eu, tão insignificante, tão pequeno, diante de todo aquele infinito. Mas, ao mesmo tempo, eu não era nem tão insignificante nem tão pequeno, eu era parte do oceano, eu fazia parte dele. Eu me senti assim, acredita?  O gato o olhou com seriedade. 

-  Você já fechou os olhos e simplesmente escutou o mar? - perguntou.

 

Nunca. 

-  Tente. 

-  Mas não estou diante do mar. 

-  Feche os olhos. Imagine. Tente. Escute. O que sente? 

Assim o fez por alguns momentos, um sorriso começou a arquear seus lábios. 

-  Brisa. Ondas. Maresia. Paz. Esperança. E... há um momento que parece como se o mundo todo entrasse em completo silêncio, só ouço as ondas quebrando. 

Teve consciência então que queria estar no oceano. Sentia-o como se o mar fosse o único lugar a que pertencesse de verdade. Suas feições estão rígidas, algo acabou de se partir dentro dele. Sua voz guarda uma grande dor. 

-  Não acho tão difícil guardar segredos. Sou graduado nisso. 

-  Dizer reservado de você é pouco, muito pouco - debochou o gato. 

O homem riu. 

- Sou um livro fechado - revelou. 

O gato o olhou, inescrutável. . 

-  De certa forma gosto que você seja um livro fechado. Não dá para desgostar de um livro que ainda não foi lido. 

-  Ah, é que minha memória é meio turva. 

-  Se fosse você não estaria sofrendo como está sofrendo agora. 

-  Não sei quem estou me tornando, e não sei ao certo se gosto disso. 

-  É a coisa mais tocante que alguém já disse para mim. 

-  É... Vou ter ainda muitos outros arrependimentos na vida. 

Com esta resposta ele pareceu ficar ainda mais dilacerado. 

-  Você já foi punido, agora chega. Aceite todas as coisas boas que a vida lhe trará. Agora. 

-  Não estou esperando terminar esta visita com o coração despedaçado.  - Não se preocupe. Coração nunca despedaça de verdade. 

-  Então... por que dói tanto? Se um coração não pode se despedaçar, por que é que o meu parece que se partiu inteirinho? 

-  Mas... e se a única forma de saber disso for sentindo a agonia causada pela fratura? 

Ele sopesou aquelas palavras. Então disse: 

-  O que você disse lá atrás? “Sabe que existem dois tipos de erro? O erro que deriva da fraqueza e o que deriva da força”. O que quis exatamente dizer com isso? 

-  Talvez haja uma diferença entre um mentiroso e alguém que mente para proteger outra pessoa da verdade.

 

Talvez... E onde me enquadro nisso? 

-  Você se preocupa demais. E perde tempo demais. 

-  Como é mesmo aquela música? 

Pensa e cantarola: 

-  “Estou sentado na beira de uma estrada que não tem mais fim...”  O gato o encarou. 

-  E já ficou lá tempo demais. Não acha que passou da hora de levantar e continuar seu caminho? 

-  Tenho medo. Medo do que vou encontrar. Medo de não conseguir. 

-  Deveria ter medo é de não tentar. De nunca saber. E se?... 

Esta esperança fez ele se sentir mais humano que provavelmente fosse.  - Lembra-se da primeira coisa que lhe disse quando nos encontramos? - perguntou o gato. 

Pensou por um momento. Então, com um sorriso: 

-  “Um pássaro não é guiado pelo vento e sim por suas próprias asas. Para onde? Para onde ele desejar, basta querer”. 

-  Isso. Você tem boa memória. 

Ele torceu os lábios, amargurado. 

-  Boa demais... 

-  E o que acha agora que eu quis dizer com aquilo? 

-  Ainda não sei bem, confesso. 

-  Como certas pessoas levam uma vida normal e outras se transformam na pior versão de si mesmas? 

-  Também não sei. Só sei que sou uma destas últimas. Até quando? Devia perguntar isso para minha covardia... 

-  Talvez haja uma diferença entre um mentiroso e alguém que mente para proteger outra pessoa da verdade. 

-  E isso por acaso justificaria alguma coisa se fosse verdade? E não é, não é. Nunca foi e jamais será. Você pode ter muitas perguntas para mim.

Muitas. Mas não sei se tenho as respostas. Lembrar dói demais - sussurra. 

Olhou desesperado para o gato. Ele não sabia que precisava tanto disso. De alguém com um pouquinho de compaixão. 

-  Um pássaro não é guiado pelo vento e sim por suas próprias asas. Para onde? Para onde ele desejar, basta querer - repetiu o gato. - Levante-se agora da beira desta estrada que não tem mais fim, segure a mão do vento e deixe-se levar. Você vem? 

-  “Você vem?”. Está me convidando, me dizendo que irá junto comigo? 

-  Tenho muitas formas. Ser um improvável gato é apenas uma delas. Vá.

Você nunca estará sozinho, mesmo que não me veja a seu lado. Sinta a

 

 

brisa em seu rosto. Serei eu. Sinta o perfume de uma flor. Serei eu.

Estaremos sempre juntos, de alguma maneira. Apenas confie. Vá.  - Por que apareceu em minha vida se agora está indo embora? Está me abandonando quando mais preciso de você? 

-  Não foi o que você fez e precisa corrigir agora? Vá. Eu estarei sempre a seu lado, confie. 

-  Diga-me - implorou - por que apareceu em minha vida? 

-  Porque você precisava. Porque eu precisava. Há um ensinamento, uma frase de Madre Tereza que traduz bem isso: “Não devemos permitir que alguém saia de nossa presença sem se sentir melhor e mais feliz”. Não foi o que fiz? Não lhe dei uma esperança, um objetivo? Não construímos uma possibilidade juntos? 

-  E se eu não conseguir? - fraquejou. 

-  Isso você só saberá depois de tentar. Vá. 

-  Há muitas pessoas em minha vida sem as quais eu não saberia o que fazer. E você se revelou uma delas. Talvez a mais importante de todas. 

-  Vá. Até algum dia - disse o gato, inflexível. 

O homem se angustiou, sentindo-se perdido, desamparado. 

-  Parece uma despedida... Voltaremos a nos ver? - pergunta desconsolado. 

-  Basta seguir para onde o vento o levar. Boa viagem e boa sorte. Vá.  Sentia-se infeliz. Mas sabia que precisava de alguma coisa que o lembrasse que o que agora sentia não era realidade. Mas que poderia ser, poderia se tornar uma realidade inestimável. 

O gato sorri, inconcebivelmente ergue uma patinha e lhe acena um adeus doloroso. E simplesmente desaparece, deixando-o sozinho, desamparado numa calçada desconhecida. 

Solidão é uma doença que todos podemos ter, mas que deveríamos estar determinados a jamais ter. 

É, nos descuidamos... 

- Pare de sentir pena de você mesmo - repetia-se, vezes sem conta.  O gato o deixou sozinho há um minuto. Um minuto não parece tanto

tempo assim, mas ele se sentiu adentrar a eternidade,  Então respira fundo. 

Obriga-se.  Impõe-se. 

Decide-se. 

Enfim. 

Força um sorriso escancarado. 

Segue em frente. 

Mãos dadas com o vento.

 

VIII

Olha agora seu próprio reflexo num espelho. 

Antes via uma pessoa que não era importante para ninguém. No entanto, desde que se decidira reencontrar as filhas, toda vez que olha no espelho vê uma pessoa que pode se tornar importante para alguém. Pelo menos, assim precisa desesperadamente acreditar. 

Está impressionado com o quanto a vida pode mudar de um instante para outro. 

Uma decisão, nada mais. Só uma decisão. 

Sabe agora que pessoas que jamais tiveram que vender a alma para conseguir um abrigo ou um prato de comida são incapazes de entender a quantidade imensa de decisões ruins que gente desesperada é forçada muitas vezes a fazer. 

Não quer voltar a ser quem era antes de se decidir a encontrar as filhas. Até então, não havia nada nele além de raiva, amargura e solidão. Não havia coisas das quais já se esquecera: ternura, alegria, aconchego. 

Não queria ser unilateral, mas, e se?... 

Por mais que pareça se esforçar agora, não consegue evitar um profundo ressentimento por ter passado a maior parte da vida sem as filhas. Por sua única culpa. Deveria ter tentado mais. Deveria ter insistido mais. Deveria...  - Elas precisavam mais de ajuda do que eu era capaz de oferecer. Então virei as costas e parti - reconhece mais uma vez, corroído pelo remorso.  Teve e ainda tem muitas vezes vontade de fugir de si próprio. Mas, para onde iria? 

Ele se forçara a ir em frente, sem pensar e sem querer ver a destruição que deixaria para trás. 

- Sei o que é o amor, pois passei a vida inteira sabendo o que ele não é - se recrimina mais uma vez. 

Aprendera que guardar tudo dentro de si não leva a nada. Só faz com que a verdade machuque ainda mais, no fim das contas. 

Há muita verdade em suas palavras, e pela primeira vez ela se permite acreditar. Na possibilidade de uma redenção, talvez equivocada.  - Preciso terminar com algo que não tinha quando chegar lá. Uma família - repete infindáveis vezes para si próprio. 

Sente a tristeza dentro de si, pois só vê sofrimento estampado em seu rosto. Procura não deixa-lo transparecer, ele sempre procurou esconder muito bem seus sentimentos. 

Pelo seu próprio bem, foi esta a versão que escolheu: a pessoa que ele nunca se permitiu ser. Se tiver que passar a vida inteira fingindo, será  assim que irá fazer. Vai sorrir tanto que seu sorriso falso vai acabar se tornando verdadeiro. 

Apesar da bela intenção, o dia pode terminar numa grande decepção.  Ao rever suas lembranças sente que está olhando a vida de outras pessoas. Há tantas possibilidades que nem sequer se lembra de terem acontecido. Momentos dos quais não tem mais nenhuma recordação. Corre as mãos pelo rosto, entristecido com o que possa ter acontecido a eles para destruir este relacionamento, seja lá o que foi. Nem mesmo sabe mais. 

Monologa consigo mesmo, como se estivesse abrindo o coração para as filhas em busca de perdão. 

- Eu fiz tanta coisa errada... não tenho desculpa. Vocês têm todo o direito de se ressentirem porque vocês têm razão. Eu as amo, filhas. Senti e sinto suas faltas. O bastante para admitir e reconhecer que vocês foram decepcionadas por muitas pessoas na vida. E eu fui uma delas. A pior delas. 

Tenta não olhar para o que possa acontecer, pois sente que suas verdades estão dilacerando suas esperanças. Mas talvez ele precise de uma dose de realidade. E o que é realidade em sua vida, além de sua culpa e solidão? 

Sabe que já as machucou além do suficiente, Mais ainda: a si mesmo. 

É, existe uma linha muito tênue entre a infelicidade e a loucura.  Olha em torno, tentando ignorar a tensão que preenche o espaço entre seus sonhos e suas consequências. 

Tem medo de não conseguir controlar uma crise de choro. Talvez esteja com defeito. 

Ou está perdido nos próprios pensamentos ou se esforçando para os ignorar. Todo mundo mente para escapar de coisas que não quer fazer.  Olha em torno, vendo a imensidão do mundo lá fora e fica pensando como pode estar tão sufocado. 

-  O que estou fazendo aqui? - pergunta-se. - Supostamente é para me encontrar - responde-se, com uma ponta de sarcasmo. 

Mas sabe que tem que passar sua vida a limpo, tem que pagar por seus próprios erros, tem que compensar o mal que causou. Teria tempo? Daria tempo? 

-  Acho que eu devia estar na fila da felicidade - zomba de si mesmo. E completa: - Gente como eu tem um talento incrível para aparentar que tudo está bem. Sei esconder meus sentimentos muito bem. Mas, às vezes...

 

Tudo em sua vida é uma herança. Consequência das mortes em vida que ele mesmo causou. Continua a monologar, vivenciando possibilidades que o aterrorizam mais que tudo. 

Vê-se na frente de uma das filhas. 

Poderia dizer que tem orgulho dela. 

-  Estou orgulhoso de você... - diria, na absoluta falta do que dizer. 

Mas talvez ela o olhasse com mágoa, muita mágoa. Responderia baixinho:  - Não quero que você tenha orgulho de mim. Não quero nada vindo de você. Óbvio que você tem orgulho de mim. Sinta orgulho de mim apenas porque eu, milagrosamente, sobrevivi à minha infância sozinha.  Poderia dizer que se despediu quando estava indo embora para não mais voltar. Ao que ela talvez responderia: 

-  Você falou que estava indo embora. Eu era pequena demais para entender o que era aquilo, exatamente. Depois daquilo, nunca mais o vi.

Até hoje não entendo, nunca consegui entender. 

Ele silencia, mesmo quando tem tanto a dizer. Porque dói demais. 

Poderia dizer quanto as suas conquistas, mas reconhece: 

-  Não tive nada a ver com suas conquistas. Não tive nada a ver com a pessoa que você se tornou. 

Jamais poderia ou deveria dizer aquilo. 

Teria que implorar perdão: 

-  Me perdoa... - suplicaria com a voz tomada pela dor. - Por favor... - e sua voz falharia. 

Ao que ela talvez respondesse merecidamente: 

-  Dane-se. Você não é meu pai, não é e nunca será. Você passou toda a minha vida sendo um pai ausente. Quando eu mais precisava.  Caminha tentando levar uma conversa que não comprove ou revele o tamanho do abismo intransponível que os separa. Mas este abismo é tão grande que parece que não estão nem no mesmo universo. 

Ele se separara assim da família quando a abandonou. 

Suplicaria perdão com um desespero... E admitiria: 

-  Não fui um bom pai. 

-  Não foi mesmo. Não foi nem um pai. 

A pior resposta que uma filha pode dar a um pai. 

Merecidamente. 

Vacila, sente sua esperança morrer diante de tantas possibilidades mortais. 

- Seja lá o que esta esperança era, deve ter terminado assim que começou - se contradiz. 

Mas tem que ir em frente. Com ou sem mãos dadas com o vento. 

 

Já faz muito tempo desde a última vez que as viu, e pensava nelas cada vez com menos frequência em meio a diversos outros pensamentos a que se forçava. Não sabe se é porque vinha tentando se proteger do que pode acontecer agora, ou porque intuía que esta esperança nada mais seria que uma desesperança. 

Esse é o pior paradoxo possível: que os poucos anos que passaram juntos e lhe deixou um impacto tão duradouro não tenha sido tão profundo para elas. 

Mas, e se for o contrário? 

Pode ser que as filhas mal se lembrem dele. Que o tenham esquecido de vez. Mas tem que correr o risco. 

Porque se imaginar entrando por aquela porta sem ninguém para recebelo lhe parece o fim mais triste de todos. 

Prefere estar ali, mesmo que elas não o queiram, do que não entrar e deixa-las a esperar infinitamente. Caso o estiverem. 

Busca com olhos desesperados a filha que talvez merecidamente nem o queira ali. Ele simplesmente entraria, como planejara e ensaiara tanto em sua mente. Mas agora, vê-se diante daquela porta, está com muito medo a sente as pernas bambearem. Seu coração bate depressa, muito mais que imaginou como seria. 

E agora está sentado em um banco de jardim da cidadezinha a que chegara. Criando uma coragem inexistente e impossível. Do outro lado da rua, a lojinha que buscava. 

Sabe que devia, sabe que tem que atravessar a rua e entrar. Mas...  Horas antes já passara vezes sem conta diante dela, como se olhasse desinteressadamente alguma coisa. É uma loja bonita, mas ao mesmo tempo não passa a impressão de ser uma loja. Não há alma, dentro dela.

Como se tudo fosse ordenadamente desordenado. 

Lá fora uma tabuleta de madeira entalhada: Lembranças... 

O nome, e principalmente aquelas reticências, lhe fazem um mal danado.  Até que ponto aquilo seria um reflexo de uma vida, até que ponto ele era culpado disso? Talvez não seja preciso conhecer a história inteira de alguém para saber o que aquela pessoa é hoje, no que ela se tornou.  E ele temia pela filha, temia pelo que fizera a ela, temia pelo que poderia ter feito a ela. E quanto a outra? 

Por enquanto, só tenta passar despercebido. E parece estar conseguindo. 

Queria ter uma estratégia que o fizesse ir em frente, mas... 

Ele tentava fazer a coisa certa usando meios inexistentes.

 

IX Conflitos. 

Aconteceu de estar sentado sob uma árvore na beira do rio numa manhã ensolarada... quando não havia árvore, nem rio, nem manhã ensolarada. 

Um acontecimento insignificante, mas que não entrará para a História. 

Só a da sua vida. 

É um pai que é uma fraude. O que fugiu. O que abandonou as filhas.  Tem consciência, agora, que as perdeu ao mesmo tempo. As duas. Em algum lugar do mundo. Mas que, sem ele, de alguma forma continuaram vivas. 

Enquanto ele morria um pouco a cada dia com seus arrependimentos.  Sabia que as filhas imaginariam tudo, menos que um dia acordariam com o martírio de um desaparecimento. 

Tristeza. 

Mas nem sempre é a mesma tristeza. Às vezes ela se torna ainda mais profunda. Bastava que ela surgisse para que ele, por instinto, percebesse que tinha que se forçar a respirar diante dos fatos. 

Porque respirar não é um ato mecânico como muitos pensam, é uma ação de estabilidade. Pelo menos, no seu caso. 

Quando se perde o equilíbrio emocional, é preciso respirar. 

Não sofra. Respire. Respire. Respire. Respire. Respire. 

Talvez amanhã, só amanhã, talvez fosse capaz de se levantar da poltrona. Mas amanhã é sempre outro dia e, no entanto, ele vive eternamente o mesmo, portanto não havia poltrona da qual pudesse se levantar.  Com a alma e coração explodindo de dor agora recorda que chegava do trabalho, pegava a filha menor no colo, a abraçava e beijava com toda a ternura do mundo. 

Ela brincava com o ursinho branco no chão, ele perguntava do que estava brincando e ela, com palavras quase ininteligíveis em sua pequenez, lhe dizia que o esperava com o ursinho. 

Então a levava lá para fora, mostrava para a filha o céu muito azul cheio de nuvens brancas e dizia a ela que tinham que descobrir onde o ursinho branco estava escondido. 

Isso, por muitos anos. 

Que um dia ele tornou tão poucos. 

Queria que aqueles dias voltassem. Que a abraçasse, beijasse, a levasse para procurar o ursinho nas nuvens brancas lá do céu azul. 

Como seus olhos. 

Mas havia ido embora e a deixara sozinha. Ela e a irmã. 

 

Depois ele ainda tentara ser um homem bom. Mas que tipo de bondade existe em um homem que só sofre todos os dias pela perda das filhas, das filhas que jogara fora? 

Que tipo de amor existe em quem exige amor sem dar amor? Elas eram uma espécie de borboletas que ainda hibernavam em seus casulos de sonhos da infância para sair um dia com as asas prontas para o voo.  Explodiam em cores como se os casulos tecidos por seus sonhos as estivessem preparando apenas para a vida. Uma vida feliz, bem feliz.  Ele cortara suas asas, deixando-as abandonadas no chão, a tristeza venceu e sufocou suas infâncias. Talvez suas vidas inteiras. 

Procurava agora, só agora, não permitir que nada brilhasse mais que a lembrança das duas, seria quase como uma fotografia familiar que não se desfaz apesar de muitas vezes cair no chão por causa do triste bater das asas do vento. 

Mas ele... 

Sabia agora, só agora, que deveria ter sido um pai com pés pesados, pés que sulcam fundamentais e indestrutíveis caminhos familiares. Mas não foi. 

Sabia agora, só agora, que bendito é aquilo que mora dentro do coração. Aquilo que o vento não arrasta e o tempo não corrói. E que nem a rudeza e a maldade da vida é capaz de apagar. 

Ele foi o travesseiro que as sufocou enquanto elas dormiam. 

Perguntava, recebia respostas que não entendia, mas fingia que entendia.  Como um pai faz com crianças pequenas, ele as pegava pelas mãos, cheias de ilusões sorriam, a infância feliz se refletia nelas. Saíam para procurar o ursinho desaparecido nas nuvens brancas do céu azul, mas nunca mais houve um ursinho branco em casa. Nem nuvens brancas. Nem céu azul. 

Nem um pai. 

Respire. Respire. Respire. 

-  Não, não quero mais respirar... 

Ele não merece respirar. Mas respira. Sua condenação é respirar.  Existem homens que deveriam morrer assim que demonstram que não sabem ser pais. Como é fácil levar a vida dos outros à desgraça.  Talvez sempre procurasse em sua dor a fotografia que não achava ou não sabia que estava procurando. 

-  Talvez eu esteja cego - disse a si mesmo um dia. - Se estou procurando uma fotografia, por que não procura-la na vida? 

Ele não sabia, mas depois que partira as filhas passaram a dormir juntas quando se deram conta da verdade perversa. Dormiam abraçadas com a saudade, de mãos entrelaçadas, tornaram-se espectros.

O que desaparece leva algo da gente, que não volta. Chama-se sanidade.

Fica a saudade. Cada vez maior. E a desesperança. 

Às vezes imaginava-as andando de mãos dadas pelas ruas caminhando sobre pétalas caídas de flores de algodão doce. 

Elas andam, andam, andam, andam, à procura do pai que se foi, as mãos meladas de algodão doce que de repente se torna o ursinho branco desaparecido que ainda procuram nas nuvens brancas do céu azul. 

Como procuram o pai. 

Então ele aperta o rosto com as mãos, como se fosse um homem de verdade prestes a acontecer, mas que não acontece. 

Chegaria um dia a ser a promessa de um homem que se constrói? Se não tivesse fugido talvez ainda seria a promessa de ser um homem que se constrói. Não teria família, não teria dor, mas o amor não se esfuma, o desamor não se encolhe. Embora, ao pensar assim, sabia que estava se iludindo. Mais uma fuga. De si mesmo. 

As filhas talvez procurassem o pai até nas coisas mais sem importância.

Nos lugares mais improváveis e impossíveis. 

Qualquer indício de que ele estivesse perto, de que ele voltaria, seria suficiente. Estaria na cadeira vazia à cabeceira, na xícara de café que deixara sobre a mesa antes de se darem as mãos e saírem para procurar o ursinho desaparecido nas nuvens brancas do céu azul, nos brinquedos jogados no chão. 

O pai continuava presente em cada lugar de suas vidas, de seus sonhos, da casa, do ranger dos tijolos quando o sol os aquecia e parecia que alguma coisa estava sendo jogada fora sem o perceberem. 

É, ele deveria ter antecipado o claustro no qual sua vida se tornaria, sabia que não se deve morrer pelas mãos daqueles que amamos. Mas...  Transformou a vida das filhas numa brincadeira de mau gosto. De muito mau gosto. Numa piada sem graça. Muito sem graça. 

E o que ele sabia? Nada. Não sabia nada. 

Procura não pensar em mais nada, mas é inútil. O melhor é imaginá-las felizes. Elas? Ainda se lembrariam dele? De que se lembrariam, se é que ainda se lembravam dele? No que pensariam? 

A vida, às vezes, nos coloca em circunstâncias que não pedimos. 

Mas, às vezes, nós mesmos as criamos. 

Foi o que ele fizera. 

Apesar de tudo, sorri. Dolorosamente, mas sorri. 

Lembra-se que colocava a filha pequenina no colo e ela o pegava nos olhos como se os quisesse arrancar, mas seus dedinhos eram tão suaves e indefesos que quase...

Ele passara a se odiar. 

Mas nem sempre você se odeia. Assim como numa manhã chega-se a acreditar que tudo pode ser melhor em outras manhãs. 

Perde-se a esperança e vive-se com um embrulho no estômago que nada tem a ver com a digestão. 

Nem sempre nos odiamos. Não é o tempo todo que temos vontade de chorar, há inclusive ocasiões em que a gente sorri sem perceber. Quando a gente solta gargalhadas mentalmente, isso é o mais perigoso: gargalhar sem vontade. 

Pois são as alegrias falsas que mais abrem buracos no coração. 

Uma panela de pressão onde o vapor queima. 

O vapor queima, parece que não porque não é fogo, mas queima, e muito, e assim são as risadas mentais. 

Nem sempre você se odeia, mas estamos sempre muito perto disso. Às vezes as pessoas parecem ser um ruído alheio que não nos faz interessar por nada, mas que alivia de certa forma o profundo silêncio em que tinha se transformado o labiríntico passar dos dias. 

Ele passara as mãos nas cabeças delas como se fossem cachorros e depois fora embora. 

Sabe-se lá que inferno ele tinha e que o consumia por dentro e que ele não se atrevia a revelar nem para sí próprio. 

Algumas vezes parecera assim, humano, fraco, falho, mas nunca mais se permitira se mostrar assim, se revelar assim. 

Está mais magro, mais sofrido. Sobram-lhe roupas, pessoas, horas, vida. Há momentos que tem uma vontade quase irresistível de se jogar pela janela. 

Não se cria uma família da noite para o dia. Mas se perde. 

Quantas vezes ele sempre ficava de bruços numa cama inexistente para não olhar para ninguém? Mas não adiantava fingir que estava dormindo, era a consciência que o estava chamando. 

Às vezes ele não sabia mais de onde tirara a ideia de que poderia ser normal. E feliz, se não fosse pedir muito. Mas não era, ele o sabia. 

Mas, como? 

-  Não viaja, você pode acreditar - dizia-se.  

-  Por que não posso ser feliz? - perguntava-se. - Porque não. Ponto. 

A solidão merecida era a ave de rapina que devorava suas esperanças.  É muito fácil achar que há muita liberdade por aí e não se dar conta como é ainda mais desgraçadamente fácil criar uma prisão própria.  É só tristeza. Mas com um cheiro fétido, como se a palavra tivesse vida própria.

x

Os pássaros, quando voam muito alto, muitas vezes se chocam contra os prédios. Será que eles não veem os edifícios? Será que voam com os olhos fechados? 

Talvez eles voem a uma velocidade tão grande que não conseguem parar nem desviar. 

O que dizer dos prédios dos nossos erros? 

De nossos pássaros feridos? 

De nossos pássaros mortos em vida? 

Será que os pássaros choram quando veem seus queridos se chocarem e morrerem contra os arranha-céus? Eles não deveriam voar tão alto.

Deveriam viver para sempre. 

Ele estava se controlando quando apertou os lábios para não pensar em mais nada. Sua história tinha que ter sido outra. Precisa reescrevê-la.  Uma clareza, uma clareza que se torna opaca com o passar do tempo. Agora que tem consciência que seus sonhos talvez estejam mortos, ele constata que desperdiçou sua vida. Pior, arrastou nisso as das filhas.  Agora é uma sombra lenta que se arrasta pelo chão e só sonha muitos anos depois o que era o seu reflexo indistinto.  Nada mais distante da realidade. Era o vento sem volta. 

O que é um lar e do que ele é feito? Em que ponto começamos a ser pais e filhos? Em que ponto nos tornamos uma família de verdade? 

Sente que vai chorar e então, como se o choro fosse o detonador do que aconteceria depois, teve que aceitar que tudo mudaria para sempre. 

Chorar não adianta nada. Porque a dor não vai embora. 

Mas, com atitudes... 

Fosse qual fosse o resultado de sua intenção, ainda que tardia.  Sofria diante do vazio que tinha que enfrentar todos os dias. Seguia, forçava-se a seguir, apoiando-se nas paredes para não cair diante do mundo. Tateando, sem rumo. 

Existe gente muito boba. Boba. Boba. Boba. Boba. Booooobaaaaaa... 

E ele era um deles. 

E se, diante dele, se fechassem os caminhos? 

Faz a cara de quem não falou com ele mesmo. 

Por que choramos quando acabamos de nascer? Porque não deveríamos ter vindo para este mundo. Pelo menos, alguns de nós. E assim se sentia. 

E se as filhas tivessem pensado: 

- E se papai voltar e saímos do lugar antes que ele nos encontrasse?  E continuavam a espera infinita e inútil.

 

Elas não sairiam dali, nem iriam para lado nenhum nunca. Esperariam. Esperariam. Esperariam. Só esperariam. Nunca mais nem seriam felizes, como muitos de nós. 

Não voltou nunca. Estava tentando fazê-lo agora. Medo. O pesadelo é perpétuo. A desgraça de cada um é a obliquidade de nosso próprio eixo. 

Sentia-se desaparecido. 

Não importa o que se diga, morto é melhor que desaparecido.

Desaparecidos são valas comuns abertas dentro de nós que as sofremos.  Um desaparecido é uma pessoa que não existe mais, e ele existia sim. Por que estava ainda fazendo aquilo com elas? 

Quem era ele, senão um pai incapaz de ser chamado de pai?  Esperava que as filhas tivessem se tornado pessoas adultas capazes de abrir caminhos entre os escombros. 

Talvez ele encontrasse o ursinho branco desaparecido entre o tráfego e o céu agora tão nublado. O ursinho que depois esquecera. 

Devia ter aprendido a sorrir mais para elas e se deixar abraçar mais quando elas pediam. 

Talvez devesse ter se levantado muito antes daquela beira de um caminho e feito o tempo parar. Mas nunca quis fazer isso de verdade. Nem tentou.  Mas, agora... 

Às vezes ele pensava como teria sido bom se pudesse segurar as mãos das filhas com força e não as soltasse nunca mais. Mas seus dedos sempre se despediram suavemente. 

Ainda há esperança. Tem que haver. 

Esperança de quê? De quê? 

Talvez devesse fazer uma encenação na qual se disfarçasse de pai perfeito. Qual... 

Fracassara em ser pai, e com as cortinas esfarrapadas caindo sobre ele, deu-se por vencido. 

Talvez (sempre o talvez) ele pudesse ver a maldade personificada em si próprio. 

Talvez as coisas ficassem piores. Mas as coisas não tinham mais como ficar piores. Não sabia que sim, que sempre dá para piorar. 

Elas deveriam ser órfãs, reconheceu. Porque ninguém deveria ter um pai tão covarde. 

Se o questionassem, o que iria responder? A dor é impronunciável.  Achava que enfeiava o mundo só por existir. Mas, para as filhas, ele o iluminava. Sem se dar conta de que o fazia.  Talvez passe bastante tempo e seu coração cicatrize. 

 

Ainda há uma grande fissura. Tão dilacerada quanto ele. Mas não pode lutar contra isso. Não pode. Não agora. Não ainda. 

Fica pensando nas possibilidades. Continua a pensar nas possibilidades.  A possibilidade de rejeição cria asas, torna-se enorme. Ele se apavora. Fica imaginando atitudes e respostas que não quer ouvir, que não poderá contradizer. 

Não havia um único milímetro dele que não quisesse estar ali naquele momento. E isso fazia toda a diferença do mundo. Mas... 

-                     Tenho um medo horroroso de as perder outra vez. E pode ser que as perca agora para sempre - repetia infinitas vezes para si próprio. Mesmo antes de saber se conseguiria realmente reavê-las. 

Precisa se sentir valorizado. 

Não apenas valorizado, mas apreciado, respeitado. 

Talvez até amado. 

Imerecidamente, que fosse. 

-                     As pessoas são negligenciadas. Isso acontece. Aconteceu comigo e parece que nunca me dei conta - se recrimina. 

Agora ele tentava fazer a coisa certa usando meios inexistentes. 

E as flores estão quase no final do declínio da beleza. 

Mas tem que atravessar aquela rua. 

Precisa saber. 

Precisa tentar. 

Lembra-se incongruentemente dos versos de Y-Juca Pirama: 

Meu canto de morte, Guerreiros, ouvi. Obriga-se.  Vai. 

Atravessa. 

Fica um rápido momento parado diante daquela porta. 

Respira fundo. 

Força-se a entrar. 

Entra. 

Uma moça está de costas, arrumando algumas coisas numa prateleira, e ele prende a respiração de tanta expectativa. 

Ela, depois de um tempo que se lhe afigurou uma eternidade, começa a dar meia volta, como se pressentisse sua presença. 

Seus olhares se encontram finalmente e ele passa um bom tempo sem conseguir dizer uma só palavra. A situação é indecifrável, mas ele não precisa ler os próprios pensamentos para sentir a violenta emoção que o assalta.

 

E se vê mergulhar, ser tomado por aqueles olhos azuis pelos quais ansiava tanto. Sente um desfalecimento, mas se obriga a se controlar.  Leva as mãos para qualquer coisa, como se a examinasse, como se não conseguisse olhar para a filha nem por mais um segundo. Sente-se morrer.  Força-se a olhá-la, tem uma expressão indisfarçadamente comovida.  - Pois não? - diz ela, atendendo o freguês desconhecido com um sorriso polido e impessoal de boas vindas. - Posso ajudar em alguma coisa? 

Ah, como podia. 

Deus, como podia. 

Ele sente, disfarça uma lágrima inconveniente que lhe escorre involuntária pelo rosto. Faz que sim com um aceno, o que parece liberar toda a tensão  de sua alma. Continua a buscar coisas que não vê, como se não tivesse coragem de olhar para a filha, como se não soubesse o que fazer, como se não soubesse o que dizer. Então, como uma epifania, a lembrança há muito esquecida surge do nada e maravilhosamente o socorre.  Começa a caminhar lentamente, muito lentamente, em direção à moça, à sua moça. Uma delas. Sua voz soa estrangulada, mas não há mais volta.

Nem ele quer que haja. Seu rosto é tomado por uma palidez assustadora. E consegue por fim dizer suavemente e com carinho: 

- Você pode me ajudar sim. Procuro um ursinho branco com uma capinha vermelha onde está bordado “te amo”. Talvez esteja nas nuvens brancas do céu. Onde eu o procurava sem nunca encontrar. 

A moça sorri. 

-  Ah, eu já tive um des... 

De alguma forma inconcebível sua voz diminui e se interrompe.  Empalidece terrivelmente, sem compreender seus sentimentos. O que segura lhe cai da mão sem que ao menos ela se dê conta disso.  Então o olha com mais cuidado, incrédula, esperançosa sem o saber.  - Nos conhecemos? - pergunta enfim, baixinho, como se temesse a resposta. 

Aproxima-se lentamente, muito lentamente, como se tomada por uma esperança impossível que carregara por toda uma vida. Sem perceber o que faz, sua mão se estende para ele e fica pateticamente erguida entre os dois. 

-  Pai?... - pergunta mais baixinho ainda, quase inaudível. Seus olhos se enchem de dor, como se ela segurasse as lágrimas de uma esperança absurda diante do reconhecimento impossível. 

Pega a mão erguida da filha e a leva à boca e lhe dá um beijo. Une as duas mãos à dela e a pressiona junto ao peito e permanece assim. 

Como se não a quisesse soltar nunca. Nunca mais.

 

Não sabe o que o amanhã trará, mas tudo o que queria e precisava estava contido naquele momento mágico.  - Me perdoe... - suplica com desespero. 

Ela o olha como se não acreditasse. Então o mundo parece parar quando ela responde baixinho, como se não o conseguisse externar em palavras: 

-  Perdoo. 

Simples assim. Inconcebivelmente simples assim. 

E o mundo se enche de sons e perfume de flores quando acrescenta: 

-  Eu te amo, pai. 

As quatro palavras tocam sua alma feito um sussurro fraco, mas sua força é tamanha que simplesmente cicatriza seu coração. 

Abraça-a e diz simplesmente: 

-  Eu também te amo, filha. 

Faz-se um súbito silêncio entre os dois. Um silêncio cheio de palavras.  Ela tinha tantas coisas guardadas para este momento improvável, mas agora não consegue pensar em nenhuma. 

Passara tanto tempo sem quem mais amava que precisava de um tempo para absorver tudo antes de bombardeá-lo com infinitas perguntas.  Ele não consegue mais segurar a outra indagação fatídica. Mas tem que fazê-la. 

-  E... sua irmã? Preciso vê-la. Preciso que ela também me perdoe. 

Ela, com os olhos cheios de lágrimas de uma felicidade inconcebível: 

-  Minha irmã? Daqui a pouco ela virá me buscar. 

Ele sorri. Um sorriso cheio de dor, mas pleno de esperança. Desvia os olhos dos dela, preocupado com todos os desafios que tem ainda pela frente. 

Começara a chuviscar. 

Um carro estaciona no outro lado da rua e ele estremece. 

Pai e filha aguardam na porta. 

Sua segunda filha desce do automóvel, volta-se, vê-se diante dos dois.  Parece levar uma eternidade para apreender que alguma coisa está acontecendo, uma coisa que também ansiara e ansiava por uma vida inteira. 

Abre mecanicamente uma sombrinha, como se não se desse conta do que faz. 

Vê a irmã abraçada com alguém que, de repente, se torna infinitamente familiar. Incrédula empalidece, a sombrinha cai no chão sem que ela o perceba, começa a correr e se atira nos braços de um pai desesperado. 

Ele a abraça forte. Beija-a. Suplica. 

-  Me perdoe... Por favor, me perdoe...

 

Como a irmã fizera pouco antes: 

-  Perdoo. 

Simples assim. Também inconcebivelmente simples assim. 

Os três abraçados, ele olha para o céu agora magicamente sem chuva. 

Vê as estrelas. Incontáveis, infinitas estrelas. 

Sente-se desfalecer. 

Mas seu coração está agora em algum ponto do caminho além de onde nossos sonhos sobem no caminho para as estrelas. 

Simples assim.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

FINAL É, simples assim.

No pensamento.

Mas tem que atravessar aquela rua. 

Precisa saber. 

Precisa tentar. 

Lembra-se incongruentemente dos versos de Y-Juca Pirama outra vez: 

Meu canto de morte, Guerreiros, ouvi. Então obriga-se. 

Vai. 

Atravessa. 

Fica um rápido momento parado diante daquela porta. 

Respira fundo. 

Força-se a entrar. 

Entra. 

Uma moça está de costas, arrumando algumas coisas numa prateleira, e ele prende a respiração de tanta expectativa. 

Ela, depois de um tempo que se lhe afigurou uma eternidade, começa a dar meia volta, como se pressentisse sua presença. 

Seus olhares se encontram finalmente e ele passa um bom tempo sem conseguir dizer uma só palavra. A situação é indecifrável, mas ele não precisa ler os próprios pensamentos para sentir a violenta emoção que o assalta. 

E se vê mergulhar, ser tomado por aqueles olhos azuis pelos quais ansiava tanto. Sente um desfalecimento, mas se obriga a se controlar.  Leva as mãos para qualquer coisa, como se a examinasse, como se não conseguisse olhar para a filha nem por mais um segundo. Sente-se morrer.  Força-se a olhá-la, tem uma expressão indisfarçadamente comovida.  - Pois não? - diz ela, atendendo o freguês desconhecido com um sorriso polido e impessoal de boas vindas. - Posso ajudar em alguma coisa? 

Ah, como podia. 

Deus, como podia. 

Ele sente, disfarça uma lágrima inconveniente que lhe escorre involuntária pelo rosto. Faz que sim com um aceno, o que parece liberar toda a tensão  de sua alma. Continua a buscar coisas que não vê, como se não tivesse coragem de olhar para a filha, como se não soubesse o que fazer, como se não soubesse o que dizer. 

Começa a caminhar lentamente, muito lentamente, em direção à moça, à sua moça. Uma delas. Sua voz soa estrangulada, mas não há mais volta.

Nem ele quer que haja. Seu rosto é tomado por uma palidez assustadora. 

Pega uma correntinha na qual existem três corações entrelaçados, olha-o com ternura inconcebível plena de significados para quem desconhece sua história.

E consegue por fim dizer suavemente e com carinho: 

- Quanto custa?

A moça sorri, diz o preço, ele lhe estende uma nota trêmula que não vê.

-  Nada mais? - pergunta ela, com outro sorriso maravilhoso.

Deus, como era linda.

De alguma forma inconcebível sua voz diminui e se interrompe, palavras ficam impossibilitadas de serem expressas, ele apenas consegue balançar negativamente a cabeça, terrivelmente pálido. - Quer que o embrulhe? - pergunta ela. - Para presente?

Ele balança negativamente a cabeça outra vez, sua mão se fecha com suavidade naquele tesouro que lhe é tão precioso.

Ela o olha com mais cuidado.

-  Está passando mal? - pergunta com delicadeza.

Ele se força a respirar fundo e tenta o que seria o simulacro de um sorriso de gratidão.

-  Não... tudo bem, não se preocupe.

Estende a mão para pegar a nota, seus dedos se tocam por um rápido instante. 

Como se não a quisesse soltar nunca. Nunca mais. 

Não sabe o que o amanhã trará, o que o depois lhe trará, mas tudo o que queria e precisava estava contido naquele momento mágico. 

Faz-se silêncio entre os dois. Um silêncio cheio de palavras não ditas por ele. 

Ele tinha tantas coisas guardadas para este momento improvável, mas agora não consegue pensar em nenhuma. Não consegue lembrar de nenhuma. 

Ele sorri. Um sorriso cheio de dor, pleno da certeza de que é covarde demais para seguir adiante, desvia enfim os olhos dos dela, olha-a com um infinito olhar amoroso de despedida e se vai.

Segurando avaramente aquela pulseirinha na qual três corações estão eterna e indissoluvelmente entrelaçados, ele vai.

Lá da porta volta-se para um derradeiro olhar, murmura um inaudível “me perdoe, filha”.

E se vai.

Vai.

Atravessa a rua sem olhar para os lados, sem a perceber, lá do outro lado encontra um banco na pracinha e se senta, mesmo sem saber bem o que está fazendo.

E ali fica um tempo que não sabe dizer se foi curto ou se é longo demais. Então um carro estaciona no outro lado da rua e ele estremece, sentindose morrer diante do reconhecimento quando sua segunda filha desce do automóvel. 

Quer correr para ela, abraça-la forte, beijá-la, suplicar:

- Me perdoe... Por favor, me perdoe...

Olha para o céu.

Ainda não escureceu de todo, mas vê estrelas. Incontáveis, infinitas estrelas, sente-se desfalecer, seu coração está agora em algum ponto do caminho além de onde nossos sonhos sobem no caminho para as estrelas.  Vê as filhas fecharem a loja, vê dolorosamente a filha mais nova lhe dar um incompreensível e estranho olhar, como se intuísse alguma coisa mais profunda além das simples aparências.

Então o carro se vai e ele fica.

Fica.

Sente uma estranha pressão dolorosa no peito. 

Sente a chuva lhe cair no rosto.

Mas não está chovendo.

O entardecer se torna noite de repente, suas estrelas surgem brilhantes, brilhantes e maravilhosas e consoladoras como jamais foram.

A correntinha lhe escapa da mão, ele não o percebe, continua a segurá-la de encontro ao coração.

Sente-se flutuar, incompreensivelmente a algum ponto do caminho além de onde nossos sonhos sobem no caminho para as estrelas.  Seus sentimentos desencontrados se atenuam, desaparecem diante do brilho das estrelas que se aproximam cada vez mais, mais brilhantes, cada vez mais brilhantes.

Então tudo se apaga, tudo se torna irreversível e definitivamente escuro no que foi a sua vida.

Simples assim.

***

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O Autor

Ex-policial civil com um passado violento, mas que não se embruteceu com a vida. 

 

fernandocoimbrasantos@gmail.com

 

Dedicatória

Dedico este livro... a quem? A quem o poderia dedicar?

Que ele motive alguém a ter a coragem de fazer o que é preciso.

 

Bibliografia:

Livro 1 – O PÁSSARO DA NOITE (2001)

Livro 2 – GRITOS SEM ECOS (2001)

Livro 3 – O QUINTO CAVALEIRO DO APOCALIPSE (2017)

Livro 4 – IGAIBIRA: CANOA ENTRE DOIS MUNDOS (2017)

Livro 5 – MEU PEDACINHO DE TERRA, MEU PÉ DE SERRA... (2017)

Livro 6 – TARDES DE CHUVA (2017)

Livro 7 – NOITES DE ESTRELAS (2017)

Livro 8 – MELODIA EM TOM MENOR (2017)

Livro 9 – FLAMBOYANT FLORIDO (2018)

Livro 10 –  EM BUSCA DAS TECLAS PRETAS (2019)

Livro 11 – O PERFUME DA MURTA (2019)

Livro 12 – O SOFRIMENTO DOS INOCENTES (2019)

Livro 13 – ENCONTROS E DESENCONTROS (2019)

Livro 14 – UM APITO DE TREM LONGÍNQUO DEMAIS (2019)

Livro 15 – CASINHA DE SAPÊ (2019)

Livro 16 – CLAMANDO POR JUSTIÇA (2019)

Livro 17 – CARRO DE BOI (2019)

Livro 18 – À PROCURA DE MIM (2020)

Livro 19 – MÚSICA AO ENTARDECER (2022)

Livro 20 – A LAGARTA JOSEFINA (2022)

Livro 21 – ATÉ METADE DO CAMINHO PARA AS ESTRELAS (2022)

Livro 22 – FALTA UM PEDAÇO DE MIM (2022)

Livro 23 – BANZO (2022)

Livro 24 – A LUA E O MAR (2022)

Livro 25 – AS CORES DOS IPÊS (2022)

***

 



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