"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".
XI
Eu não poderia continuar indefinidamente a pendurar minhas misérias – todas as minhas misérias – no fio que não acabasse nunca.
Poderia, em meus conflitos tortuosos e aparentemente desencontrados, encontrar uma tábua de salvação para este náufrago que submergia lentamente na mais tenebrosa das águas escuras?
Talvez eu devesse então reorganizar meus pensamentos, minhas lembranças.
Reorganizar?
Pois se elas emergiam num aparente e incoerente desencontro, sem qualquer nexo ou evocação cronológica ou consciente?
Sem qualquer possibilidade de seleção, apenas surgiam desavisadamente de algum lugar impreciso.
Como uma ponta de ferro que estivesse dissimuladamente na fornalha e que, de repente, fosse cravada em nossa alma e coração. Com todas as suas consequências.
Como reorganizar tantas lembranças que surgiam desencontradas e aleatórias?
A resposta surgiu devagarinho. Aos poucos tive consciência da resposta que procurava e buscava com tanto afinco e insucesso.
Coerentemente, só havia uma única forma, uma única possibilidade: voltando ao passado, ao meu passado que sempre se fazia tão presente.
Como se numa alucinação, levante-me e fui para meu piano. Ergui com delicadeza a tampa protetora das teclas, afaguei amorosamente as teclas, meus dedos se posicionaram por si só, comecei a tocar I”ll be seeing you.
Mesmo que fosse só em minha imaginação.
Mesmo que meu piano não existisse mais.
Mesmo que eu não tivesse mais o meu piano.
Mesmo que eu nunca mais tivesse um piano.
I”ll be seeing you, tocada lentamente e com sentimento, apropriadamente transmutava o que eu sentia em minha alma e coração para alguma forma indefinida de perceptível e palpável presença externa.
De alguma forma misteriosa e inexplicável, de repente eu me via em uma estranha e costumeira estrada, semioculta por uma névoa arroxeada que distorcia todas as imagens.
Como se fosse um pesadelo sempre recorrente.
Então, de súbito, como às vezes acontecia, lampejos de consciência brotavam rapidamente em minha mente como se fossem centelhas de vidas paralelas que eu não sabia precisar se minhas ou de minha imaginação, que logo se esvaíam, incompletas, frustrantes, deixando-me mais confuso ainda.
Vi-me caminhando lentamente por uma estradinha de terra indefinida e desconhecida, ao lado do qual escorria também lentamente um rio sem pressa, um rio vivo, pleno de manifestações de dor e desalento.
Gemidos estranhos enchiam meus ouvidos, milhões de vozes infelizes, como se o rio fosse feito de pura tristeza destilada. Um rio de infelicidade, uma torrente de tristeza e infelicidade líquidas.
A água quase parada murmurava baixinho, revelando a terrível verdade que dela permeava lugubremente: “- Vida é desespero. Nada faz sentido, e depois, de repente, você morre...”
Aquele era seu interior mundo real: morte, trevas, frio, sofrimento. Parecia-me que todo o resto, tudo que ainda havia de bom e feliz, seria só fruto de minha imaginação, nada mais que isso.
Um dos lampejos estalou e explodiu em minhas lembranças que não sabia precisar se eram minhas, realmente.
Vi-me partindo (de onde?). Vi-me despedindo (de quem?). Vi-me perdido, quebrado, tentando juntar meus pedaços. Ouvia uma voz indistinta e desconhecida que me suplicava:
- Não me faça promessas vazias... você não voltará...
Vi-me sorrindo, tentando tapear, tentando convencer.
Mas, como convencer os outros quando não conseguimos nem nos convencer a nós próprios? Vi-me trapaceando:
- Então, que tal uma promessa cheia?
A voz me respondeu, tristemente:
- Não faça promessas que não poderá cumprir... Não sabe quão perigosos podem ser os juramentos? Tudo tem seu preço, depois... e você não poderá pagá-lo.
Voltei a me ver caminhando, sentia-me cansado, muito cansado.
Toda a energia parecia ter sido drenada de meu corpo e substituída por uma espécie de tristeza melancólica, uma saudade profunda e indefinida que não sabia dizer de que. Ou de quem. Meus olhos estavam repletos de um estranho brilho apagado, como se eu estivesse em dois lugares ao mesmo tempo.
Sabia que precisava, de alguma forma, encarar o fato de que não podia proteger todo mundo que amava, nem a mim próprio.
Sabia que precisava aceitar minhas limitações, não podia resolver todos os problemas. Nem os meus próprios.
- Ela se foi – disse a mim mesmo. – De qualquer modo, não para sempre. Então, talvez, quem sabe, algum dia...
Quedei, confuso. Quem? Ela, quem? Quem se foi? Não tive resposta.
Outro lampejo inexplicável e inconsequente se manifestou sem qualquer sentido com o desamparo que sentia. Ou teria? Alguém, ou alguma coisa, me dizia ternamente, consoladoramente:
- Se coisas mágicas são possíveis, certamente haveria algum jeito de trazê-la de volta.
Rejubilei-me, momentaneamente feliz. Então mergulhei fundo novamente naquele horrendo e odioso poço vazio. Trazer quem, de volta?
Não o sabia, apenas o sentia, o que era pior ainda.
Aquela indefinição, seu desconhecimento, simplesmente me aniquilava.
Voltei a olhar para o rio onde flutuavam ilusões perdidas, esperanças inatingíveis, sonhos desfeitos, vidas perdidas, vozes lamentosas repletas de morte, trevas e desespero.
A água quase parada voltou a murmurava baixinho, reiterando a terrível verdade que dela permeava e emergia implacavelmente:
“ – Há milhares de anos jogam de tudo aqui... esperanças, sonhos, desejos que jamais se tornaram realidade, tragédias, histórias, desgostos... Eu lhe desejaria sorte, mas isto não existe aqui. Não se iluda: nem esperança.”
Um vulto (de quem?) à distância me levantou a mão em um aceno triste e caminhou do outro lado do rio através da noite escura, até desaparecer.
Aquele rio preservava os maus para que eles tivessem que eternamente suportar seus tormentos, os mantinham vivos para que experimentassem mais e mais dor com suas lembranças, com seus remorsos.
Ouvia-se lamentos e gemidos, o bastante por toda uma vida.
Aquele rio tinha olhos tristes e vazios, como se estivesse olhando sempre para as profundezas do Inferno. Como, de fato, olhava. E transmitia ainda mais: “- Os mortos vêem o que querem acreditam que estão vendo. Assim como os vivos.”
Então uma possível revelação me atingiu aos poucos. Plena, imutável, cheia de significados mais profundos. Caso fosse verídica. E como precisava ser verdadeira, supliquei.
O reconhecimento de que aquilo não poderia ser um rio tomou minha mente esperançosa e solidária com os que não conhecia e lá estavam flutuando ao sabor daquela desgraça.
Um rio era uma coisa viva, uma fonte de vida, não o que via e ouvia ali. Por um momento orei a Deus, pedindo por mais compreensão. Por um momento aguardei, ansioso. E no instante seguinte vi-me desejando que aquele rio tivesse pelo menos os afluentes da Misericórdia e do Perdão. Talvez, mais abaixo, ou mais acima, também o da Expiação.
Se Deus é Amor – raciocinei – então o Inferno não existe, não tem como existir. Um castigo eterno, por mais merecido a apropriado, jamais deixaria de ser remido, por mais tempo que isso levasse.
Talvez aquele rio, depois de receber aqueles afluentes, desaguasse então no rio da Redenção.
Sim, seria isso. O Inferno não existiria, talvez o Inferno fosse só esta provisória vida madrasta plena de possibilidades de erros que, ainda assim, levariam à purificação, à evolução espiritual tão necessária.
O Inferno não existiria. Talvez, quando muito, apenas o Purgatório, que talvez fosse apropriada e exatamente o nome daquele rio agora a meu lado.
Talvez o rio – e seu conteúdo infeliz e desgraçado – fosse se purificando ao longo do tempo em que escoava. Talvez, quando enfim afluísse no rio Redenção, Deus lá estaria de braços abertos para enfim receber seus filhos que Lhe chegavam tão tardiamente. Talvez...
Como entender – e pior, aceitar – os incompreensíveis e tortuosos caminhos e desígnios de nosso Deus?
Fez-se uma escuridão momentânea, outro lampejo aconteceu lá adiante, no que seria talvez o final da estrada. Um vulto luminoso e radiante me dizia suavemente, transmitindo esperança:
“ – Quando estiverem prontos, todos Me encontrarão. Então vou levá-los para um lugar onde todos vocês só verão a luz do sol e as estrelas. E aqueles a quem vocês amam. Vocês, que são muito amados por Mim.”
Por um momento, incongruentemente, lembrei-me então de como era ser feliz de verdade, aquela simples promessa tinha o maravilhoso poder de me fazer aquilo.
Uma música inidentificável ecoou em meu espírito, simplesmente tentava evocar minhas melhores recordações, fazia com que eu inexplicavelmente sentisse saudades de casa.
Casa? Quando a tivera? Onde? Com quem? Como?
Todos os monstros de minha vida sempre voltavam.
Não houve mais qualquer lampejo naquela noite.
Então adormeci.
Mais uma vez, sem respostas.
Então, como se fosse um segundo sonho que se encadearia ao primeiro tão horrendo, vi-me novamente em outra estrada desconhecida, mas esta iluminada à luz das estrelas.
Em uma placa, inconcebivelmente, em letras douradas como meus sonhos poderiam ter sido, consegui ler parcialmente: "SEU PASSADO A...".
Meu coração falhou uma batida. A que distância eu estaria?
XII
Por um momento fugaz, como se fosse um rápido relâmpago num céu muito escuro, revi aquele rio de tormentos.
E no instante seguinte eu estava novamente sob as estrelas brilhantes.
A consciência daquela dualidade se fez, veio-me a compreensão quase que tardia de que seriam dois extremos de uma mesma percepção.
Ou, talvez, de uma mesma existência.
Porque constituíam dois extremos tão díspares e longínquos, que jamais poderiam ocorrer simultaneamente.
A aparente complexidade se me revelou de uma simplicidade estonteante.
Ou seria uma coisa, ou seria a outra.
Ou se caminharia sob as estrelas brilhantes, ou ao lado daquele rio sem vida.
Ou se seria intensamente feliz, ou se seria intensamente triste.
A dura realidade: talvez não houvesse o caminho do meio.
Ou, talvez, fosse exatamente nele que eu estava caminhando em minha vida.
Tive esta compreensão quando me dei conta que minha vida não tivera só momentos tristes e sofridos. Em algum lugar – mesmo que eu não o soubesse conscientemente quando e onde – eu teria sido imensamente feliz.
Senão, como diferenciar a claridade da mais intensa escuridão?
É próprio do ser humano viver mais intensamente os momentos ruins.
Ou se lembrar deles muito mais vezes.
Por outro lado, talvez seja – dentro de nossas limitações humanas – nos darmos mais vezes como vencidos diante de uma adversidade.
Não era o que eu estava fazendo? Não era o que eu vinha fazendo?
Honestamente – reconheci para mim mesmo – eu precisava acreditar que não seria bem assim.
Pois isso explicaria a incomensurável distância entre os momentos felizes e os de sofrimento, distância que eu não conseguia percorrer nem diminuir.
Eu queria (precisava) ser feliz, e só submergia em sofrimento.
E eu não queria aquele sofrimento.
Queria voltar para os momentos felizes.
Mas, onde estariam eles?
Vi-me novamente diante da placa que, em letras douradas como meus sonhos poderiam ter sido, voltei a ler: "SEU PASSADO A...".
Meu coração falhou novamente uma batida. A que distância eu estaria?
E seria possível fazer a travessia até lá, estivesse ele onde estivesse?
É uma linda manhã e há algo de perturbador nela, a forma como de repente, num estalo, o inverno termina e começa a primavera.
Como se você fosse dormir numa noite cinzenta, e acordasse numa manhã ensolarada cheia de flores e cores.
Entrego-me lenta e suavemente a esta possibilidade, mais do que tudo tenho que encontrar a resposta que procuro há tanto tempo. Preciso.
Não que – de repente – eu me estivesse vendo pequenino.
Eu era o pequenino.
E eu corria feliz na areia branca da praia.
As gaivotas gritavam e as ondas quebravam levemente, espalhando-se vezes sem conta.
Ao longe, em algum lugar impreciso, eu podia ouvir o ruído abafado do motor de um barco pesqueiro que lutava contra a corrente, mesmo que então eu não soubesse o que seria bem aquilo.
Então um grito chama meu nome, meu avô materno está chegando da pesca em sua canoa a remo e me acena com um sorriso lindo que me diz que sou querido e bem-vindo em sua vida pobre de caiçara (mesmo que também eu ainda não soubesse o que era aquilo).
Aceno em resposta e corro até a beira d’água, onde as ondas morrem (?) antes de voltar para a perpetualidade da vida.
Ouço o fundo da canoa encontrar, com um rangido suave, a areia mais rasa da praia.
Vovô salta agilmente, contorna a canoa, corre até mim, me agarra, me abraça, me joga para o alto, me beija, me prende novamente contra o coração, sempre sorrindo bondosamente.
Para mim. Eu, seu primeiro neto.
Está cansado, do boqueirão onde foi tirar das profundezas o sustento da família até a praia, são algumas horas de solitárias remadas.
Aparenta um cansaço maior ainda, pede que eu o ajude a empurrar a canoa para o seco, me diz ternamente que ele sozinho não o conseguirá, como é bom que eu esteja ali para ajudá-lo.
Sorrio feliz, em minha inocência de criança tão pequena. Lá ao longe, no jundú, sob uma árvore, minha mãe também está sorrindo enternecida para seu pai e seu filho.
Olho para dentro da canoa enquanto vovô se esforça e a ergue para colocar o rolo sob seu casco, vejo com alegria e admiro os peixes que ele pescou naquela madrugada.
Então, graças ao meu conjunto esforço ingênuo de criança (sem o que vovô não o conseguiria sozinho), levamos a canoa até o pequeno rancho de sapé.
Mamãe se aproxima, coloca os peixes num samburá de delicadas faixas de bambu que vovô mesmo fez, fico tagarelando enquanto ele pega a cuia feita com meia cabaça e esgota a água do mar que adentrou a canoa em sua luta contra as águas mais revoltas das profundezas do mar.
Então, num descuido meu, coloca sozinho a canoa sob o telheirinho de sapé, coloca o remo sobre o ombro esquerdo, no braço direito leva seu neto tão amado, falando coisas que não lembro mais para minha mãe.
Até chegar à sua casa de pau-a-pique são quase oitocentos metros de caminhada sob o sol forte do litoral, o chapéu de palha que também usa para colher café ensombrece seu rosto tão querido, tão queimado, tão bronzeado, tão marcado, tão curtido por anos e anos naquela vida dura de caiçara.
Vovó está nos esperando no terreiro da pequena casa, as galinhas cacarejam à espera de mais comida, ansiosas à sua volta como se fossem um cachorrinho que eles nunca tiveram ao que eu me lembre.
Também usa o grande palheiro. Palheiro que adorna, ressalta e revela seu rosto iluminado. Como o de uma santa.
Não, como o de uma santa não.
Santas e santos talvez não consigam sorrir diante do sofrimento e dos erros humanos que eles testemunham tanto.
E o sorriso de vovó é como o sol que desponta na madrugada iluminando tudo e a todos.
O perfume da ciosa junto ao filete d’água onde está a bica feita de bambu, onde escorre alegremente um eterno fio de água, se faz presente, como se abençoasse de alguma forma irreal e indireta aquele nosso momento feliz.
O vento baloiça suavemente as flores e os ramos mais finos das árvores onde um número infinito de passarinhos cantam parecendo render graças a Deus só pelo simples fato de estarem vivos e soltos.
Vovô beija vovó, coloca o remo apoiado contra a casa, senta-se no que seria a soleira da porta de entrada caso esta soleira existisse, acende um cigarro de palha que teima em não pegar fogo, desiste, pega-me no colo.
Ao lado da janela, eternamente inacabada, uma gaiola de madeira que jamais terá uma porta, que jamais prenderá outro passarinho desde que soltei inocentemente seu sabiá de estimação.
Sabiá que jamais saiu dos limites do terreiro, sempre cantando nas árvores mais próximas, como se tivesse o bom senso de nunca se afastar ali. Como se estivesse me dando uma sábia lição que não tive como apreender e, pior, de seguir.
É, são as pequeninas coisas que mudam toda uma vida.
XIII
Agora eu estava outra vez na praia, com meu tio mais moço, praticamente da minha idade.
No canto direito, o rio que ali desagua, a Barra do Julião, plena de águas límpidas e mais frias que vinham da serra abrindo caminho entre as pedras da costeira.
Uma delas era a nossa preferida: a pedra Cachaca.
Cachaca é (ou era, infelizmente) o nome de um passarinho que nunca mais vi.
Nunca soube porquê, mas quando ali chegávamos, a Cachava estava sempre sobre aquela pedra, e se afastava piando protestos contra nossa intromissão temporária.
Mas eu sabia que aquilo seria talvez só uma ilusão.
Não o sentimento que me atingia quando a via voar para longe, mas o riso que eu ouvia, que ela talvez estivesse dando, sabendo que logo teria novamente sua pedra só para si, que era somente uma questão de tempo.
O rio se concentrava um pouco ali, cavando um pouco ao lado da pedra, era onde mergulhávamos naquela infância feliz que não deveria acabar nunca.
Mas eu, mas nós, em nosso desconhecimento do que era realmente a vida, tínhamos pressa em crescer.
Hoje, olhando para trás, não sei dizer o porquê desta pressa.
Se o soubesse...
Então, cansados da brincadeira, deixávamos a pedra para a nossa Cachaca,
Pegávamos as peneiras e o samburá que havíamos deixado em algum lugar e íamos subindo barra acima, cada um empurrando sua peneira sob a vegetação que margeava a barra e onde os camarões cafulas pensavam estar escondidos e inalcançáveis.
Nossas costas ardiam sob o sol forte, a pele queimando, bronzeando, atestando a inutilidade e imbecialidade da alegada supremacia da pele branca que ainda desconhecíamos.
Mas os momentos felizes tinham um término.
O término odiado das férias.
Porque eu estava morando a quase quinhentos quilômetros do meu Ubatuba, numa distante e estranha Araraquara.
Que não tinha mar. Que não tinha minha mata. Que não tinha minha barra. Que não tinha meus passarinhos. Que não tinha meu avô chegando da pesca. Que não tinha minha avó nos esperando com um sorriso lindo. Que não tinha...
E eu ficava, solitária e desconsoladamente, sentado no degrau da pequena área da casa.
Não sentia mais meus pequenos pés afagando (sendo afagados?) pela areia branca da praia.
Agora era a dura e quase inóspita pedra São Tomé das calçadas que o sol da cidade chamada de Morada do Sol tornava escaldantes, o cheiro da maresia substituído indecentemente pelo cheiro de laranja que empesteava a cidade toda, que vinha do processamento da fábrica Suconasa que exportava seu suco para os Estados Unidos.
E eu ficava olhando a rua deserta de conhecidos, me perguntando onde estavam as pessoas de minha família que eu amava tanto, onde estavam os lugares que gostava tanto, onde...
Mas havia um segundo preço a ser pago por isso.
Com a ausência da exposição ao sol da praia, minha pele começava a descascar, cada pedaço de mim que se desprendia era como se fosse uma pequena medalha que eu perdia na luta contra o que não gostava.
À minha revelia.
Ninguém nunca me perguntou se eu queria.
Se eu gostava.
E nem iriam fazê-lo, talvez estivessem sentindo, sem o dizer, o mesmo patético desamparo.
Era a vida.
Simplesmente.
Simples assim.
Quantas vezes eu fantasiava que estava indo para meu Ubatuba, de pé no Chevrolet 51 de papai, segurando-me a uma ranhura do painel.
Era capaz, apesar da pouca idade, de visualizar cada pequeno detalhe da viagem. Os arvoredos, as curvas e retas das estradas, o belvedere da serra de Caraguatatuba onde finalmente eu revia meu mar tão amado, os...
Foi quando, sem mesmo o saber, comecei – mais que sentir – a vivenciar uma aterradora dualidade de extremos, ansiando que os próximos seis meses passagem bem rápido.
Até, então, adeus.
Adeus, Araraquara.
Vou voltar para meu Ubatuba, estou indo, adeus, não sei se volto.
Era o que eu queria.
Era o que eu ansiava.
Mas eu voltava. Eu tinha que voltar.
E, anos mais tarde, já adulto, meu Ubatuba só existia em minhas lembranças, meu Ubatuba estava desfigurado e irreconhecível por uma coisa que dizem se chamar progresso.
A bica d’água já não existia mais. O filete de água tão pura havia se tornado um filete interminável e fétido de esgoto.
A pedra Cachaca já não tinha mais o passarinho sobre ela.
A própria pedra estava meio soterrada sob uma areia que não reconheci como o da minha praia, tanto óleo havia nela.
De repente, a dura consciência me atingiu.
E eu, já adulto, comecei a chorar internamente como se fosse a criança que nunca havia deixado de ser. Por minha perda irrecuperável.
Simplesmente eu não tinha mais um Ubatuba para o qual voltar.
Simplesmente eu não tinha mais lembranças para partilhar.
Simplesmente não tinha mais nada.
Pego o carro e dou a partida, procurando não olhar para trás e afasto-me lentamente.
E, em breve, na primeira curva da estrada, deixei para trás, para sempre, a terra em que tinha sido feliz, os lugares, os parentes, uma imensa e irrecuperável parte de mim mesmo.
Levando uma provisão de saudades para o resto da vida.
Agora, num lugar que desconheço, numa casa que não reconheço como minha, sentado raras vezes na soleira da porta da entrada, pés no chão que não sentem mais a areia suave da praia, passo as horas a olhar desconsolado a rua deserta de conhecidos.
Sentindo-me perdido, triste e sucumbido.
E amparo-me ansioso às figurinhas de sonho que me atenuam a solidão.
Súbito, o trem na estação enche o silêncio espaçoso com um som que se estenderá de minha infância a toda a minha vida, quando eu dormia sem dormir e viajava dentro do país dos sonhos, quando a escuridão se ia chegando pouco a pouco, vagarosa, dissimulada.
Um som como se fosse um adeus ao longe. Um longínquo e doloroso adeus. De quem? Para quem?
Então continuo a reunir pedaços de pessoas, de lembranças e de coisas, pedaços de mim mesmo que boiavam no passado e presente confusos, articulo tudo, crio o meu pequeno mundo salvador e incongruente, minha ponte ilusória entre a realidade e a indistinta fantasia.
Onde terminaria uma e começaria outra? Nunca o soube. Nunca o saberei.
A história, a minha história, confusa e maravilhosa, era desenrolada aos meus olhos como um fio que não acabasse nunca.
E pendurei nele todas as misérias. Todas as minhas misérias.
Mas, mesmo antes de ser adulto, de me tornar adulto, a dura realidade da vida começou a se fazer cada vez mais presente no meu viver.
Os seis meses escolares eram intermináveis, as férias passavam rápido demais.
Quando enfim eu chegava a Ubatuba, depois de tantos abraços e beijos dos parentes, eu sempre via vovô e meus tios colhendo algumas canas, raspando-as, moendo-as manualmente no velho moedor de madeira que havia num dos quartinhos da pequena casa. Garapa. Minha garapa. Nossa garapa.
E, muitas vezes, eu estava na casa de não sei quem, vendo o grande tacho em que a farinha de mandioca estava sendo preparada após ser moída e prensada. Tantas lembranças...
Mas um dia, já em Araraquara, cheguei da escola e encontrei minha mãe chorando.
- O que foi, mamãe? – perguntei, aflito e desajeitado.
Ela então, soluçando, me contou que vovô, meu vovô, havia morrido.
Foi meu primeiro encontro com uma coisa horrenda chamada morte, o primeiro que realmente me atingiu.
Que até então eu não sabia bem que existia.
Procurei consolá-la. Mas como fazer isso se eu não o conseguia nem comigo próprio?
Lembro-me que fui sentar na soleira da porta da entrada, pés no chão que não sentiam mais a areia suave da praia, passei horas a olhar a rua deserta que tomara o lugar da praia onde eu ia receber meu avô que chegava da pesca.
E, meses depois, quando finalmente consegui chegar a Ubatuba, saí do carro como um silencioso alucinado, procurando vovô em todos os cantos da pequena casa, chamando por ele, chorando por ele.
Só então a horrorosa certeza de que nunca mais o veria me atingiu.
E me aniquilou.
Nunca mais fui o mesmo. Talvez, ali, tenha sido o verdadeiro começo de minhas próprias mortes em vida, no que ela se tornaria.
Porque, de repente, minha vida poderia ser resumida numa simples e única palavra: perda.
Foi no que minha vida se tornou, mesmo que então eu não me desse conta conscientemente disso.
E na minha imaginação, na minha vida, a canoa feita do tronco da árvore Igaibira de vovô se tornou minha ligação entre dois mundos.
Um deles, o mais onipresente e aterrador: o das coisas e pessoas que eu perdia e que não voltavam nunca mais.
Então as férias em Ubatuba , de certa forma, acabaram.
Agora, mesmo que não o soubesse, mesmo que não me desse conta, eu estava sendo devorado lentamente por uma Araraquara que eu não conhecia como sendo minha.
No final da rua, o muro da estação.
Na casa, distante apenas duzentos metros, chegavam todos os seus ruídos.
Principalmente os da movimentação dos trens, das chegadas, das partidas.
Dos apitos que me soavam dolorosos, como acenos de quem partia para nunca mais voltar.
E eu, mesmo não o querendo, ficava ouvindo o trem até que ele desaparecesse na distância.
Nas madrugadas, às vezes eu ouvia novamente aquele som que acabou me marcando tanto: o longínquo apito de um trem que desaparecia à distância, longínquo demais.
Mesmo que eu não estivesse perto de uma estação. De uma linha férrea.
De um trem que também acabou engolido por um discutível alegado progresso.
Inevitavelmente, outra recordação se fazia presente: a casa de um de meus tios paternos em Guaratinguetá, ao lado da ferrovia.
Onde passavam tantos trens que estremeciam a pequena casa.
Trens de permanência provisória, curta, trens de passagem, que apenas se me afiguravam ali passar como se me estivessem acenando tristemente.
Também apitando um longínquo e irrevogável adeus.
E me alertando, ainda que eu não o soubesse, para a impermanência e transitoriedade das coisas, das pessoas, dos sentimentos, da própria vida.
Levando tantas coisas minhas embora.
Ou que eu pensava serem minhas.
Deixando nos lugares e espaços vazios uma só coisa chamada saudade.
Aquela movimentação de trens se me afigurava como uma estação de transbordo. Os trens chegavam com a máquina e só um pequeno vagão, nem sempre me trazendo alguma coisa boa.
Mas naquela estação, na estação da minha vida, parecia que os trens se tornavam comboios, aqueles longos e intermináveis comboios que agora obrigavam duas locomotivas para tracionarem infinitos vagões que me levavam sentimentos e pessoas que nunca mais iriam voltar.
Deixando apenas a saudade que eu sentia, que eu iria sentir.
Fecho meus olhos, escondo o rosto em minhas mãos, a esperança morre cada vez mais dentro de mim, apenas desamparo em minha dor e solidão.
FINAL
E agora, passado tanto tempo, como se sintonizasse uma melodia quase que esquecida, perdida no tempo de minha vida, ouço de alguma forma inconcebível a música Charade. Mesmo que ela não seja mais tocada.
Que, em sua letra, numa das versões livres, diz: “Tal qual uma charada, um jogo de crianças, nomes trocados e misturados, hoje são só lembranças”.
É...
Olho para trás, bem dentro de mim, vasculho cantos perdidos e ocultos na escuridão de minha alma e coração, com um sorriso triste vejo pessoas que conheci não sei mais dizer onde nem quando. Nem seus nomes. Nem o que foram exatamente em minha vida.
Tal qual uma charada, como bem retratou a música.
Tantas pessoas passaram em minha vida...
Quantas realmente me agregaram alguma coisa boa? Trouxeram alguma coisa boa? Ou ruim? Ou teriam sido indiferentes?
Quantas se transformaram em sentimentos de faltas, de perdas e saudades, mesmo que eu não saiba precisar isso exatamente?
Como diz uma frase de Caio Fernando de Abreu: “Você, que poderia ter sido tanta coisa, preferiu ser saudade”.
Por que razão algumas se fazem mais presentes que outras?
Teriam sido especiais, realmente especiais?
Ou eu que as tornei assim nas charadas indecifráveis da minha vida?
E o que é a nossa vida?
O que ela é, simplesmente, ou o que a tornamos? Como saber?
Incontestavelmente, todos nascemos para nos arrepender.
Das coisas que fizemos e, principalmente, das que deixamos de fazer.
Qualquer atitudezinha diferente que tivéssemos tomado em certas situações, poderia ter mudado todo o rumo de uma vida.
A nossa.
E de outros.
Como ter a certeza de que escolhemos a opção certa?
Um fato é certo e incontornável: suas consequências.
Como algumas atitudes de nosso passado: é só uma questão de tempo para que elas nos alcancem. Por mais que pensemos (e achemos) que as teríamos deixado para trás para sempre.
Como um ciclo: tudo está sempre voltando.
Como um trem que apita ao longe, um apito longínquo demais, de repente nos vemos de pé do meio da linha férrea.
E ele está vindo para cima de nós. E não há como sair da frente dele.
O trem das lembranças nos esmaga. Mais uma vez. E outra, e outra, e outra.
Mas não morremos, não é tão fácil assim.
O trem passa, aparentemente vai embora, seu apito se distanciando ao longe.
E lá estamos nós, Estirados na linha férrea da vida.
Sem saber o que aconteceu.
Sem saber o que fazer.
Sem saber como lidar com isso.
Sem saber como seguir em frente.
Nunca se esqueça: esperança é a penúltima que morre.
***
DEDICATÓRIA:
Reconheço que este meu livro é de difícil compreensão.
Como nossa vida.
Dedico estas reflexões e relatos a todos que procuram uma resposta que nos mostre que a vida vale realmente a pena.
O Autor
Ex-policial civil com um passado violento, mas que não se embruteceu com a vida.
fernandocoimbrasantos@gmail.com
“Quem luta com monstros deve velar para que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro. E se tu olhares durante muito tempo para um abismo, o abismo também olha para dentro de ti.”
(Friedrich Nietzsche)
Bibliografia:
Livro 1 – O PÁSSARO DA NOITE (2001)
Livro 2 – GRITOS SEM ECOS (2001)
Livro 3 – O QUINTO CAVALEIRO DO APOCALIPSE (2017)
Livro 4 – IGAIBIRA: CANOA ENTRE DOIS MUNDOS (2017)
Livro 5 – MEU PEDACINHO DE TERRA, MEU PÉ DE SERRA... (2017)
Livro 6 – TARDES DE CHUVA (2017)
Livro 7 – NOITES DE ESTRELAS (2017)
Livro 8 – MELODIA EM TOM MENOR (2017)
Livro 9 – FLAMBOYANT FLORIDO (2018)
Livro 10 – EM BUSCA DAS TECLAS PRETAS (2019)
Livro 11 – O PERFUME DA MURTA (2019)
Livro 12 – O SOFRIMENTO DOS INOCENTES (2019)
Livro 13 – ENCONTROS E DESENCONTROS (2019)
Livro 14 – UM APITO DE TREM LONGÍNQUO DEMAIS (2019)
Livro 15 – CASINHA DE SAPÊ (2019)
Livro 16 – CLAMANDO POR JUSTIÇA (2019)
Livro 17 – CARRO DE BOI (2019)
Livro 18 – À PROCURA DE MIM (2020)
Livro 19 – MÚSICA AO ENTARDECER (2022)
Livro 20 – A LAGARTA JOSEFINA (2022)
Livro 21 – ATÉ METADE DO CAMINHO PARA AS ESTRELAS (2022)
Livro 22 – FALTA UM PEDAÇO DE MIM (2022)
Livro 23 – BANZO (2022)
***