"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".
- Sei - você me diria - existem velhas fotografias em preto e branco, as bordas esgarçadas em pequenas ondas, algumas vincadas e outras até rasgadas como se fossem lembranças partidas, em meio a tantas outras igualmente antigas, perdidas num álbum amarelado pelo tempo.
Mas, quem se lembra delas?
Paisagens, homens e mulheres imobilizados num sorriso que o tempo perpetuou em algum momento que se desfez com o passar dos anos. Sorrindo naquela certeza quimérica de que a vida seria boa, naquela confiança tão ilusória de que tudo daria certo. Ou, talvez, pela felicidade do momento, só por ele.
Mas não deu, não é mesmo?
Não como o queríamos, não é mesmo?
Não como precisava ser, não é mesmo?
- Sei - você me diria - o tempo impõe seus extravios, confunde, cria lacunas, provoca esquecimentos, recordações tipo poderia-ter-sido.
Ou-será-que-talvez...
Sei, você me mostraria uma delas, me perguntaria uma delas. Ali, bem ali, está alguém sorrido. Mas, quem é a pessoa que está a seu lado? Talvez outro parente? Talvez alguém que foi conhecido? Talvez alguém que continuou desconhecido? Esquecido?
Quem o sabe, agora, passado tanto, tanto tempo.
- Sei - você me diria - o tempo vai apagando algumas partes, alguns todos, vai manchando e borrando algumas imagens, apagando algumas fotografias, mostrando incompletas lembranças teimosas.
Mas - por mais que você me diga, por mais que se esforce para dar uma justificativa - eu sei que também, de alguma forma inexplicável, tenho de preencher os vazios, realçar as recordações foscas e ilegíveis, para que eu possa rever minhas lembranças.
Então fico inventando traços e cores na minha folha de memórias quase em branco, que explicasse ou completasse o que não consigo ver. Tentando inutilmente trazer, de alguma forma, o meu passado que quase desconheço para meu insustentável presente.
É, eu sei, eu deveria conhecer as pedras pontiagudas do caminho da vida. Eu deveria. Nós deveríamos, não é mesmo? Mas...
Pedras.
Perdas.
Por um instante paramos ambos de palmilhar as lembranças esquecidas e confusas das fotos antigas, diante do reconhecimento tão tardio. Não das fotos, não das recordações que não surgem, não de alguma coisa mais palpável.
Pedras. Perdas.
Como a simples inversão descuidada (?) de duas letras podem mudar todo o sentido de uma simples palavra, todo o sentido de uma vida. E, ao mesmo tempo, inconcebivelmente, se tornarem tão próximas, tão sinônimas.
Então eu me vejo diante de uma porta fechada, talvez a porta que encerra o que foi o meu quase desconhecido passado.
Após um momento de hesitação, ergo enfim meu braço e dou duas batidas leves, tão leves que parece que eu não quero ser atendido.
Que eu tenho medo de ser atendido.
Mas a porta se abre lentamente.
Olho então, confuso, surpreso e esperançoso, para dentro de meu próprio coração.
ÍNDICE
Intróito – Pág. 01
Cap. I – Pág. 04
Cap. II – Pág. 08
Cap. III – Pág. 12
Cap. IV – Pág. 16
Cap. V – Pág. 20
Cap. VI – Pág. 24
Final – Pág. 28
Dedicatória e o autor – Pág. 31
Com breves intervalos o velho sino da igreja soava, e o eco que deixava atrás de si me faz sonhar com a alma de lembranças e com o tempo que escoa, como se fosse uma areia muito fina que me escapa entre os dedos. Então o pequeno rádio começou apropriadamente – como se fosse um eco que reverberava distante – a tocar a música Inútil Paisagem:
Mas pra que
Pra que tanto céu
Pra que tanto mar
Pra que
De que serve esta onda que quebra
E o vento da tarde
De que serve a tarde Inútil paisagem.
Pode ser
Que não venhas mais
Que não voltes nunca mais
De que servem as flores que nascem
Pelo caminho
Se o meu caminho Sozinho é nada.
E fico me perguntando o que está errado naquela letra. Ou indefinido, como é a própria vida, tantas vezes a vida de cada um de nós.
Então eu me pego me indagando: - Quem pode ser que não voltará mais? Sabe, até pode ser – para alguns desavisados – que o autor estivesse se referindo a alguma pessoa, talvez um amor perdido, sabe-se lá. Ou alguém que ficou irreversivelmente ao longo de algum descaminho do passado. Ou alguma outra coisa assim. Qualquer coisa assim.
Mas, agora, diante daquelas fotografias amareladas pelo tempo, eu sei.
Talvez quem não volte mais seja a possibilidade.
Uma? Só uma?
O trem que não existe mais apita lamentoso numa despedida na estação que também não existe mais. Ou talvez, o esteja fazendo numa das curvas do descaminho da minha vida, e parece-me ver minha própria solidão girar silenciosamente em meu coração, me atordoando mais um pouco. Vejo-me pequeno, menor do que realmente era, quase inexistente, sentindo-me pequenininho dentro de um automóvel tão grande e esmagado por minhas aterradoras realidades que intuía, mas não compreendia.
Estrangulo um sussurro inumano, um lamento incompreensível, viro-me no banco e fico olhando o que deixo para trás, fico por um longo tempo olhando aquela casinha de sapê que se perde na primeira curva do caminho, minha avó chorando como se não desse conta que o estava fazendo, os tios e tias também tão pequenos que acenavam confusos parecendo não saber bem o que estava acontecendo.
Tudo ficando para trás, as pessoas ficando cada vez menores à medida que o carro se afasta, sem que eu soubesse se eles estavam festejando ou lamentando nossa partida.
Minha mão continua a acenar inutilmente para quem não vejo mais, não os tenho mais diante de meus olhos, não vejo mais seus acenos, não vejo mais a casinha de sapê de minha avó.
Então o automóvel, condutor de minha amargura, segue em frente, para frente, sempre em frente, o pouco que eu via se encolhendo, até que o cantinho da casinha de sapê desaparece de vez de meus olhos. Sem dizer nada a ninguém, eu também estava me encolhendo naquele banco traseiro, meu coração apertado, pequenininho, dilacerado. Por algum tempo ouço o quebrar das ondas na praia distante, que fica cada vez mais distante. Pensei que nunca mais a veria, por isso fiquei quietinho onde estava, a estrada engolindo a última mancha esverdeada da serra que me acenava também uma triste despedida ao fundo. O carro ganha velocidade, mas continuo a olhar pela janelinha o que fica e ficou para trás. Vejo a mata cerrada, praticamente intocada, as árvores indistintas uma das outras como se estivessem se abraçando e se consolando, agradecendo a Deus por realmente terem raízes que impossibilitavam coisas chamadas mudanças, que as tolhiam de saber o real significado da palavra adeus e suas variações tão dolorosas. Vejo-as confundindo-se umas com as outras, envolvendo as vizinhas com seus galhos que se transformavam em braços em abraços férreos e inseparáveis, os cipós dos parasitas (agora simbiontes) assegurando que essa perpetualidade fosse duradoura, eterna, indissolúvel.
Vejo algumas bananeiras perdidas no verde rasteiro do capim-gordura que - agora eu o sabia – pareciam apenas que antes estavam tentado me prender naquele lugar para que eu nunca me afastasse dele, para que eu sempre ficasse ali, a minha terra.
Não vejo mais o que quero ver, não consigo ver mais o que quero ver, não tenho como ver mais o que quero ver.
Então, finalmente, me sento naquele banco grande demais e fecho os braços em torno de mim mesmo, como se me abraçasse a mim mesmo.
Então o passado me sorriu um sorriso grande como ele se tornara. Uma imagem se sobrepõe às demais, se destaca às demais: minha avó materna sempre sorrindo daquela maneira bondosa e maravilhosa que só ela sabia sorrir, o grande chapéu de palha emoldurando seu rosto lindo e amoroso como se fosse o halo de uma santa.
E ela olhava para mim e ria, um riso-sorriso que ficou perdido no passado distante, me assegurando de alguma forma que ela nunca se esqueceria de mim, que ela sempre estaria me esperando, que aquela viagem era temporária, que eu iria voltar, ficar, que nunca mais haveriam outras partidas nem outras despedidas, nunca mais.
Mas a alegria em seu riso aos poucos se transformou num sorriso melancólico, comecei a ver em seus olhos agora marejados uma mágoa que ela procurava disfarçar inutilmente ao longo de toda uma vida, de toda a sua vida. Aquela vida que lhe trazia tudo e lhe levava também tudo, agregando um vazio infinito intransponível, incompreensível, cheio de saudades e perdas.
Então, no momento seguinte, minha avó não está mais lá, vejo-me sozinho diante da porta fechada de uma casinha de pau-a-pique coberta com sapê, lá no alto de uma grande pedra, abraçada e abrigada por infinitas árvores.
Vejo meus pezinhos procurando com cautela as pequenas pedras que serviam de degraus desencontrados que me levassem até ela, que me levavam até ela, que me levaram tantas vezes até ela.
Mas agora, incompreensivelmente, a porta está aberta, como se me esperasse, como se me convidasse a entrar, como se me dissesse entrevocê-é-bem-vindo, entre-fique-aqui-é-o-seu-lugar.
Paro na soleira da porta e olho para o interior daquela casinha, olho para meu próprio interior.
Vejo uma pequena mesa de madeira rústica, bancos rústicos, uma pequena toalha florida, uma pequenina lamparina de querosene que não só atenuava um pouco o negror da noite escura, mas fazia todos ficar mais perto uns dos outros, um recado incompreensível de que deveriam estar sempre assim. Aninhados, protegidos das traições da vida.
Dou alguns passos, adentro uma saleta onde aguarda pacientemente o moedor de cana. A seu lado, junto à porta divisória, um aparador onde havia outra toalhinha alegre com estampa de flores, uma moringa de barro com água sempre fresca, uma grande caneca de alumínio. Mais à frente, edificado sobre o chão de terra batida de toda a casa, o fogão à lenha. Meus olhos sobem e encontram o esfumaçado no alto, o esfumaçado contínuo provocado pela eterna queima de lenha, como se – agora – me dizendo que a nossa vida também podia se tornar tenebrosa. Volto em meus passos. Nas paredes da sala algumas pequenas fotografias emolduradas em quadros simples das pessoas que eu amo, das pessoas que eram e foram e são a minha família.
Todas sérias, tristes, fitando aparentemente a estranheza do fotógrafo a que estavam desabituados. Mas – com certeza, e agora eu o sabia – na impossibilidade de sorrir para uma vida mais feliz que não tinham, que não poderiam ter, o futuro que nunca poderiam ter.
Agora parado, como se não soubesse mais para onde ir, volto-me para a pequena cozinha emoldurada por paredes de pau-a-pique, vejo vovó diante do fogão onde ela frigia as incertezas, dourava as esperanças, onde aquela maravilhosa mulher analfabeta escrevia nas chamas que bailavam alegremente a (im)possibilidade de um futuro melhor e mais feliz para todos, um futuro que pareceu chegar mas nunca realmente chegou. Para nenhum de nós, talvez.
Mas, agora, uma lua grande e dourada subiu aos céus. Como os quadros que agora não consigo ver mais na parede da sala escura, lá fora a lua grande e dourada subiu aos céus e está emoldurada por estrelas, infinitas estrelas.
Ao longe, inconcebível, muito ao longe, quase imperceptível, quase inaudível, o som de uma viola onde um caiçara indefinido afoga as suas mágoas, tentando trazer para perto de si e dos seus um pouquinho que fosse um pouco da arredia e desconhecida felicidade.
Fico de pé na porta de entrada, apoiado ao batente, como se ele me segurasse e protegesse da noite escura da qual não tenho medo, da qual aprendi a não ter medo.
Porque vovó nos juntava a todos no que ela chamava de seu terreiro, no que chamávamos de nosso terreiro, a pequenina porção de terra que existia defronte à casa.
Onde nos sentávamos olhando sem ver a mata agora mais escura, ouvindo sem ouvir as ondas que quebravam lá na praia distante.
Esperando. Esperando. Esperando. O que? Não o sabíamos. Talvez alguma coisa que afastasse para sempre aquela desgraça que inconcebivelmente nos era tão feliz.
Infinitos vagalumes, milhares deles, se nos afigurando como se fossem as estrelas tão brilhantes e distantes que, por alguns momentos, houvessem descido lá dos céus só para alegrar um pouco que fosse nossas pobres vidas tão terrenas.
Vovó vinha até nós, deixava a lamparina acesa sobre o que seria o peitoril da janela caso ela tivesse um, a chama alta para nos ver melhor, para afastar os fantasmas de nossas vidas, para que a alegria e a vida mais feliz que ela nos almejava pudesse encontrar o caminho para nossa casa, para cada um de nós.
Então nos contava histórias-lembranças maravilhosas que só ela sabia.
Os nomes dos antigos companheiros e companheiras de vida surgem sem dificuldade nos relatos de vovó, os casos e histórias de cada um. Por um instante muito fugaz a voz de vovó estremece, sua voz se torna dolorosamente nostálgica, saudosa, mas como suas lembranças ilusoriamente esquecidas e silenciosas, este instante é muito curto, a aparente dor das lembranças é rapidamente substituída pela alegria das recordações revividas e partilhadas.
Os amigos e amigas de ontem estão bem ali a seu lado, cada um com suas lembranças, e a música que cantam em seu coração é maravilhosa. Então ela nos fala das cores e significados das flores da natureza. Em sua simplicidade, até ingenuidade, ela nos conta histórias inesquecíveis. Fala das delicadas flores brancas e perfumadas das ciosas dos riachos. Fala de um lugar muito distante e assustador que os homens chamavam de Calvário, onde um dia Papai do Céu foi morto pela maldade humana, para nos salvar.
A história bíblica ganha roupagens da vida caiçara.
Em nossa dor compartilhada Jesus Cristo está sendo açoitado e crucificado pelos homens ruins, que são tantos em nossas vidas.
O Filho de Deus está sendo crucificado bem ali ao nosso lado, sobre as ciosas brancas e perfumadas que deixam de ser brancas e perfumadas em seus pecíolos que baloiçam sob a brisa amena que vem do mar. Gotas de sangue caem sobre as flores brancas, que se tornam púrpuras. O delicado perfume se vai, as plantas deixam de ter aroma, os pecíolos perdem a capacidade de erguer as mãos para o céu em louvor e preces, e se arrastam pelo chão, à procura de um sustentáculo que lhes permitissem se erguer novamente.
Num relato pleno de simbolismos, as flores brancas deixam de serem flores brancas das ciosas e passam a ser a triste flor do maracujá, a flor sem perfume mais triste de todas.
E ela nos ensina, nos recomenda, que sejamos sempre bons, para que um dia não seja mais preciso existirem flores de maracujá no mundo. Para que, um dia, elas não nos precisem lembrar sempre o que aconteceu. E nos conta que, no dia seguinte, o sol despontou de um mar muito azul, infinitamente azul, um mar que formava uma ponte linda com um céu também infinitamente azul, trazendo o dourado da Esperança para a vida de cada um de nós.
Mas a história é longa, tínhamos todo o tempo de mundo quando não havia nem rádio nem televisão. Nem água encanada nem eletricidade.
Nem felicidade, mesmo que não o soubéssemos o quanto, então.
Mas o dourado do sol não trouxe só a Esperança.
Como se fosse um altar maravilhoso, no alto dos morros sempre verdes, também começaram a despontar e a se destacar as flores brancas e roxas das Quaresmeiras, como a nos lembrar que uma história dessas jamais deveria ou poderia ser esquecida.
E como se fosse um complementar longínquo, perdido num tempo atemporal, num tempo sem tempo, num tempo eterno, surgiu o cantar monótono e triste das cigarras em sua sinfonia nas noites quentes do verão.
Na escuridão mágica da noite, matizada de dourado por uma lua cheia que nos parecia sorrir benevolente, sua história envolvente continuava. Nós fechávamos os olhos, embevecidos e enternecidos, comovidos pela agonia de Jesus Cristo que estava sofrendo tudo aquilo para nos salvar. Víamos as flores brancas e perfumadas das ciosas se tornarem púrpuras e sem perfume, na tristeza do maracujá.
O relato tão simples e inconcebivelmente tão rico de vovó Maria nos prendia e conduzia. Vovó Maria. Maria. Como a mãe de Deus.
E ela nos falava, contava, dizia, partilhava, encantava.
A seu pedido, fechávamos os olhos mais uma vez, ela nos fazia ver em nossos corações o dia claro que se tornou escuro quando os homens maus mataram Jesus Cristo, filho de Maria de Deus.
Podíamos sentir a brisa suave que vinha da praia trazendo indecifrável o rumorejar das pequenas ondas que se retorciam na areia branca do mar, podíamos ver uma gota de sangue caindo, caindo devagar, tornando uma flor branca e perfumada numa flor triste como a vida triste que não sabíamos que tínhamos. A vida que não sabíamos o quanto ainda poderia se tornar tão triste.
Mas, quando abríamos os olhos, ficávamos um momento atônitos, até decepcionados com a realidade que tínhamos que voltar a encarar, a enfrentar, a viver. Em nossas vidas e nas dos que amávamos. Então ficávamos cabisbaixos, entristecidos, melancólicos, imersos na vontade impossível de criança de pegar uma espada inexistente e salvar Nosso Senhor Jesus Cristo dos homens maus.
Sem saber, em nossa inocência, que muito em breve muitos de nós nos tornaríamos maus como eles, perdidos numa vida de ilusão, esquecidos de que uma vovó Maria, mãe de Deus, com o grande chapéu de palha emoldurando seu rosto lindo como se fosse o halo de uma santa, um dia nos havia implorado para que não nos tornássemos assim.
Será que essa história é verdadeira?
E como poderia não ser?
Será que vovó a contava realmente para nós?
Mesmo que não o fosse com estas palavras, nas parábolas às vezes incompreensíveis que o analfabetismo impunha àquela vovó tão sábia e sincera?
Deus, como eu preciso acreditar nisso...
Mas não foram só as histórias maravilhosas de vovó que ficaram em minhas lembranças.
Quando íamos à sua casa - eu e minhas duas irmãs de então – em sua pobreza vovó fritava alguns pedaços de mandioca e os deixava na frigideira quente até que se formasse uma casca dourada crocante.
E nos parecia não haver nada mais gostoso em todo o mundo.
Ela nos olhava sorrindo, encantada por nós, em silêncio.
Hoje o sei. Silêncio: era assim o seu modo de sentir felicidade. Como se tivesse medo de que a vida percebesse e lhe tirasse aquele momento mágico também, aquele pouquinho de felicidade.
Mesmo que fosse tão pouco, tão pouco, quase que inexistente em sua vida. Quando o nada se tornava tudo.
E agora eu me vejo mais uma vez lá embaixo, diante da escadinha improvisada que levava a uma casinha pequenina de pau-a-pique e sapê. E, de repente, a casinha pequenina começa a me parecer um lugar irreal e distante que pouco a pouco começa a se tornar indistinta em meio a brumas que a destorcem e afastam em minhas lembranças.
E, de repente, eu pensei, senti, que não eram só mais alguns passos que me separavam dela, que a afastavam de mim, que a separavam de mim. E agora, já adulto, constatei que minhas certezas, que já estavam abaladas, não eram mais certezas. Que simplesmente desapareceram. É, eu sei. Tenho medo de perder o que tenho agora, o que me restou agora. Talvez tudo tenha sido um sonho, e então eu acordei. Pensei que houvesse acordado. Só que eu não quero acordar.
Ao pé da escadinha improvisada eu olho o terreiro, vejo as folhas dos pés de café filtrando o sol de uma manhã que desponta incoerentemente. Ou, talvez, o de um entardecer.
Sinto que um grande vazio se instala em meu peito, querendo nunca mais ir embora. Talvez fossem cinco horas, ou seis, não importa, porque eram mesmo tardes sem horas, nas lembranças da minha vida.
Mas de alguma forma sinto a mão de vovó segurar a minha, como fazia sempre, como se quisesse, como se estivesse me conduzindo nos caminhos da vida.
Por causa disso, só por causa disso, eu gostava de pensar que essa atitude de vovó – segurar a minha mão por tanto tempo – me dizia realmente o que seria sinceridade e calor humano.
Lembrei-me então que, em toda a minha vida, toda vez que ali conseguia chegar, que ali conseguia retornar, eu via vovó em seu terreiro, cuidando de suas galinhas, o seu sorriso lindo de boas vindas, o grande chapéu de palha, e eu me sentia feliz, indescritivelmente feliz.
Mesmo que a vontade de chorar fosse mais forte que nunca, mais forte que tudo.
Porque eu simplesmente me tornava outra vez para ela o garotinho que nunca havia deixado de ser dentro de mim, em meu desamparo.
É, eu sei, estou febril. Talvez esteja doente da alma, não importa. Há muito que deixei de palmilhar a linha limítrofe entre a realidade e o que poderia-ter-sido, a tênue linha divisória entre o-que-foi e o que-eugostaria-que-tivesse-sido.
É, eu sei. Através de minhas lembranças, de meus sentimentos, eu posso sentir a presença de todos os da minha família que já partiram. Familiares, amigos, conhecidos. Muitos, às vezes, frequentemente me reaparecem em sonhos indistintos. Ou em meus aparentes desvarios, não o sei mais dizer, que importa?
Pessoas às vezes com o semblante triste da despedida, outras vezes com o sorriso da alegria da chegada.
Diferentes dos meus olhos, que veem o dia como se ele fosse noite, muitas vezes perdidos em alguma imagem do passado.
Então, o entardecer da minha vida me traz o temporal que desaba pleno de gotas de saudade.
A casinha pequenina volta a ficar em foco.
Ao lado de cada pedra desencontrada da escada, um ramalhete de pequenas flores, as pétalas coloridas contrastando com o negro brilhante e o musgo verde.
Apoiado contra a parede, o remo da canoa de vovô e um machado. Na parede, entre a janela e a porta, uma gaiola de finas tiras de bambu, eternamente inacabada.
Lá atrás, quase que oculta pelo marulhar do pequeno filete d’água, o perfume da jaqueira revela que seus frutos estão maturando. Existem flores por todo lado, brotando diretamente do chão de areia branca.
Flores que alegram os olhos.
Que enfeitam a vida.
E um dia eu, pequenino, estava de pé num calçada estranha, numa cidade estranha.
Ali não havia conhecidos, não havia mar, não havia areia, não havia a família de minha avó e avô maternos.
Não me lembro da longa viagem, lembro-me apenas que acabara de chegar numa tal de Araraquara, que tentou inutilmente me cativar. Sem nunca o conseguir.
A nova casa, a nova cidade, apesar das muitas novidades, nunca me encheu os olhos. Eu sentia falta da praia, dos avós e tios que lá deixara, da praia onde ia tão pouco.
Sentia falta da cantoria estridente e interminável das cigarras. Sentia falta das flores roxas das quaresmeiras nos morros.
Sentia falta do cheiro da maresia, das flores, dos passarinhos, do perfume das ciosas que cresciam à beira dos rios.
Sentia falta do meu Ubatuba.
Reclamei, quase que perdido:
- Mamãe, aqui não tem praia...
Ela se voltou para mim, por um momento intuí que ela também sentia falta da praia de nosso Ubatuba, dos que lá haviam ficado. Então me abraçou, e quase num murmúrio me prometeu:
- Logo poderemos ir para Ubatuba e você poderá ver a praia outra vez. E eu me sentei desconsoladamente no degrau do portãozinho, os olhos cheios d’água, o coração pequenino.
Logo era muito tempo, tempo demais para uma criança.
Nos meses que se seguiram eu me debruçava em minhas lembranças e tentava ver minha praia que ficara tão distante.
A palavra praia, tão curta, tão plena de significados, tudo o que eu deixara para trás.
Um dia fiquei doente.
Em meu delírio febril, em uma paisagem deformada por tons arroxeados, eu gritava para alguém que não sabia quem era que eu estava escutando o barulho do mar. E então uma alegria infinita e indescritível explodiu em meu coração quando eu pude, enfim, gritar:
- Eu estou vendo a praia... a minha praia...
Voltei-me para aquele alguém indefinido que me segurava a mão. - Estou vendo também a casinha da vovó. Estou... estou vendo meus tios e tias brincando, correndo entre os pés do cafezal, brincando de esconder de mim...
Sei – você me diria – mas é só um sonho... foi só um sonho... mesmo que fosse o desvario de um estado febril.
- Não, é de verdade – eu protestaria, olhos cheios de lágrimas felizes. - É de verdade, eu os vejo se escondendo atrás de um pé de café, mas logo eles reaparecem novamente. Então brincam de roda comigo...
De madrugada a febre aumentou, mas eu não queria ficar na cama, queria ver a minha praia outra vez. E outra. E outra. E outra...
Vi-me caminhando pela casa, fui de alguma forma até a porta da sala e a abri. No degrau do portãozinho me sentei, olhei lá para o final da rua, a estação de trem não estava lá, só havia um infinito de areia branca e um mar azul, sempre azul, eternamente azul. O meu mar. O nosso mar. Tentei correr até lá, mas alguma coisa irreal (como meu sonho, meu delírio) me impedia, eu estendia inutilmente meus bracinhos que não se fechavam em nada, que não abraçavam nada, que não alcançavam nada.
– Sei – você me diria – mas é só um sonho.
É, eu sei. Sei que a morte poderia chegar lentamente, e seria talvez bem vinda. Eu, há quanto tempo morria?
Comecei a chorar, ninguém me consolou, não havia ninguém ou nada que me consolasse em meu sonho. Todos sabiam que meu choro não era somente pela febre, mas que minhas lágrimas traduziam a falta que eu sentia da minha gente.
Então pouco a pouco minhas lágrimas secaram e um grande silêncio se seguiu, embora meus olhos, de repente sem brilho, ainda dissessem muito.
É, já faz tanto tempo. Talvez fosse melhor esquecer.
Como se o tempo tivesse as possibilidades do vento, levar nossas amarguras e desencantos para outras terras que não as das doces lembranças.
Então comecei a ver meu sonho se acabando aos poucos. Como se tivesse vivendo uma linda história quando era o momento de viver uma história. Mas, depois, quando chegava o momento de viver a vida como ela é... – Sei – você me diria - deveria ser pecado ser infeliz quando se tem tudo para ser feliz. É...
Mas eu juro que me vi chorando no meio da noite febril, iluminado por uma lua que não existia, braços em volta de meu peito como se abraçasse inutilmente a mim mesmo.
Juro que me vi chorando por um longo tempo.
Depois limpei o rosto com as mãos, pendurei a saudade em algum lugar da varandinha e entrei.
É, eu sei.
Mas pediam-me que suportasse o insuportável, que esquecesse, que seria o melhor para mim.
Só que era pedir demais, tão tortos eram os meus descaminhos.
É, eu sei.
Eu talvez seguisse (e sigo) descontente, calado, porque sei que sou um bom e inocente homem incapaz de perceber que talvez possa ser feliz sem meus sonhos fundamentados em lembranças, mas sei também que talvez eu conspire contra mim próprio.
Eu vivo me repetindo que, na primeira oportunidade, me desvencilharei de meus sapatos de adulto, voltarei a ser criança, pisarei outra vez a areia branca da praia e sentirei (talvez) um contato, uma recordação antiga, os pés revivendo o toque com a areia branca, a friagem da água do mar trazida por alguma onda que a depositará suavemente diante de mim. Então moldarei castelos de areia desenhados há muito tempo e ignorados pelo tempo que o mar levou, eu me sentarei depois na sombra de um pé de abricó e ali permanecerei por um tempo indefinido.
Porque tudo deixou de ter pressa, não há mais razão para pressa, ficarei simplesmente olhando embevecido a praia coberta pela areia branca, o azul do mar e do céu, o que será um reencontro.
Então eu me sorriria, e diria para mim mesmo que, às vezes, eu sabia fazer a coisa certa. Que, às vezes, é possível fazer a coisa certa.
Percebi então que eu me dissera o que desejava dizer, e que isso só implicava em ter ouvidos para ouvir e coração para sentir. E então me olhei com olhos de compreensão.
Começo a ouvir canções esquecidas que localizam em mim um homem antigo, talvez adormecido em outras situações. E era exatamente este homem que eu iria procurar reencontrar.
Forçosamente eu me pergunto se ainda me lembro verdadeiramente dele, se ainda serei capaz de o reconhecer, o homem que eu iria procurar em meus devaneios, o homem que eu verdadeiramente havia sido.
Pergunto se me lembrava mesmo dele, se me lembrava de verdade.
O que eu fui, o que eu era, o que eu poderia ter sido. E então, sem qualquer amargura, quase que docemente, eu me responderia:
- Todos os dias...
É...
– Sei – você me diria – o tempo só existe porque fazemos coisas, umas após outras, mesmo que não tenhamos consciência delas. E então, talvez, quando nossas lembranças são evocadas, elas surgem com novas roupagens, novas realidades. Então, talvez, não sejam as mesmas.
Mas, que importa isso?
Então me torno calado, mais calado ainda, imerso em recordações para que as aflições e lembranças possam finalmente ocupar meus desvãos. Porque eu me sentia mutilado de alguma forma, e o que perdera – mesmo que não soubesse coerente o que fosse – me fazia falta.
Era alguma coisa essencial. Uma perna, talvez. Um pedaço de mim que, ausente, eu sentia no espaço que ficara desabitado. Mas que, quando eu tentava andar, aí eu me dava conta do vazio.
O que explicaria – talvez – andar mancando por todo o resto de uma vida.
Mesmo que eu aprumasse o corpo.
Mesmo que eu andasse mais lentamente ainda.
Mesmo que eu procurasse não mostrar que mancava.
Mesmo que...
É, nesse simbolismo em que a palavra praia parece resumir tudo, eu me vejo incoerentemente pequeno outra vez.
Pela primeira vez, agarrado temeroso à mão tão grande de alguém, eu vejo aquela imensidão que se tornou tão plena de significados tão meus, só meus.
Hoje, adulto, talvez se eu me aproximasse novamente do mar, do meu mar, e parasse na areia branca a alguns centímetros das ondas que se me quebrariam alegremente, eu talvez poderia lhe dizer:
- Sabe, eu já conhecia você de longe, escutava as cantigas de ninar que você me entoava, trazidas pelo vento. E um dia, enfim, eu estava defronte ao amigo que desconhecia, mas que conhecia, de alguma forma inexplicável. Fui me aproximando lentamente, como se desvendasse segredos há muito ocultos e guardados só para mim, e foi essa imagem que eu guardei. Sabe que meus olhos tiraram uma fotografia sua naquele dia? Sabe que eu a guardei zelosamente no álbum do meu coração?
É, eu sei, eu precisava voltar. Eu preciso voltar.
Mesmo correndo o risco de nunca mais encontrar o que busco, talvez agora inexistente, mas tão real e intocado em minhas lembranças.. Porque sempre imaginei – quase certeza – de que a casa pequenina de pau-a-pique e sapê de vovó era um lugar para o qual eu sempre poderia voltar quando me sentisse sozinho ou com medo.
Mas preciso voltar, mesmo correndo o risco de nunca mais encontrar o que busco. O que procuro. O que preciso.
Então faço uma pequena malinha, vou de encontro ao meu mar.
Com mil anos de atraso.
IV Maya.
Do Sânscrito.
Numa tradução (ou interpretação) livre, significa Ilusão. Mais apropriadamente: “Cuidado, não se apegue a nada, tudo é transitório, nada é permanente, tudo na vida é ilusão”.
Uma simples e única palavra que, como muitas coisas na vida, dizem infinitamente mais que alguns poucas letras agrupadas, não é mesmo? Porque agora eu me via outra vez, pequenino, dentro de um trem de passageiros na estação. Aguardando a partida.
Para onde? Não sabia. O pequeno tíquete acartonado da passagem está em minha mão também tão pequena, mas ainda não sei ler. Tíquetes como os dos bondes, que também desapareceram da minha vida, das nossas vidas.
Do outro lado da janela, outro trem, também de passageiros.
Ouço então o som do apito, lamentoso, triste. Como se, além de anunciar a partida, também se despedisse dos que ficavam ou se despedisse daqueles que nunca mais iriam voltar.
A partida de um trem é lenta, muito lenta, como se o comboio relutasse enfim seguir viagem.
O porquê da Ilusão? Porque, mesmo em minha pouca idade, o quase imperceptível deslocamento do trem que se colocava em movimento não me possibilitava dizer se era o meu trem que enfim estava se pondo a caminho, ou o outro. Ou saber para que lado o trem realmente seguia. Seria isso um simbolismo de que uma etapa de minha vida estaria se encerrando e outra se iniciando? Ou o alerta de que nada seria uma certeza?
“Cuidado, não se apegue a nada, tudo é transitório, nada é permanente, tudo na vida é ilusão”.
Como saber?
Como saber se eu estaria indo de encontro às minhas lembranças, de encontro à minha praia, ou me afastando inexoravelmente delas? Em meu possível desvario (sonho?) eu me vejo pequeno e sozinho. Agora estou em São Paulo, um São Paulo antigo que reconheço como da década de 50.
Deixei a Estação da Luz para trás, caminho lentamente por uma longa rua Mauá, meu destino é a rodoviária na Praça Júlio Prestes, hoje extinta. O que era um grande ponto de chegadas e partidas se tornou um grande ponto de encontros de usuários de drogas e desencontros de vidas sem rumo.
Procuro o antigo ônibus do Expresso Rodoviário Atlântico que me levará até meu Ubatuba.
Oscilo dolorosamente entre a incongruência de um passado tão distante com um presente tão sem poesia. De repente o antigo ônibus que me transportará para meu sonho se revela fugazmente um moderno veículo da Litorânea. Nem o nome é o mesmo.
Vejo desconsolado, na plataforma ao lado, outro ônibus da minha infância tão distante que também se perdeu no tempo. De repente o ônibus que atendia todo o Vale do Paraíba, o Pássaro Marrom, foi substituído pelas cores vermelhas do Expresso São Jorge. Continua a ser chamado de Pássaro Marrom, mas isso é só um lembrete talvez saudosista demais. Então me vejo, com um quase pânico, parece que eu me transformei num golfinho que nada solitário num horizonte perdido e indecifrável onde a escuridão da noite está no mar e não no céu tão claro, numa inversão que não sou capaz de entender ou aceitar.
O nado é ondulatório, mergulho fundo e salto para fora d’água também muito alto, mergulho nas profundezas de minhas lembranças que pouco conheço e salto para a claridade débil na qual realmente vivo, mas... Meu ônibus parte, vejo pela janelinha o rio Tietê onde algumas canoas de competição deslizam mansamente nas águas ainda não irreversivelmente poluídas.
Vejo incrédulo, como se fossem lampejos irônicos e alternantes da paisagem antiga destroçada pela moderna, do outro lado do rio, os campos verdes onde não havia uma única casa hoje estão tomados pelos tentáculos de um polvo voraz e impiedoso que aguilhoa a cidade em todas as direções.
O ônibus adentra a Via Dutra. Como num delírio febril, vejo vezes sem conta que a pista única sem canteiro central foi engolida por uma rodovia de faixa dupla que nunca será suficientemente grande para comportar os veículos que agora passam por ela talvez a caminho de lugar nenhum que ainda valha a pena.
Mas grande o suficiente para transportar minha angústia.
Aturdido, olho inutilmente para tudo em busca de pontos de referência que não existem mais, e me acabrunho com o que não vejo.
Onde foi parar a fábrica Duchen, como se fosse uma grande lagarta em forma de coração?
Onde estão as latas azuis do Biscoito Jacareí, vendidas em barraquinhas informais à beira da Dutra, a céu aberto?
Então meu ônibus margeia um São José dos Campos grande demais, uma megalópole que talvez ainda não tenha se desumanizado o suficiente.
Meu Deus, onde está a estradinha de terra que hoje se transformou no asfalto conhecido como Rodovia dos Tamoios?
Onde estão as raras vendinhas ao longo da estrada, que ostentavam o letreiro com a garrafinha marrom da Crush?
Ou a garrafinha verde do 7 UP, o Sevenap?
Onde está o belvedere no alto da Serra do Mar que descortinava o mar, tantas praias, ilhas e toda Caraguatatuba e Ilhabela?
Onde estão?...
Começo a vacilar diante da constatação que aconteceram muitas mudanças, mudanças demais.
Mas é tarde, muito tarde. Preciso voltar, quero voltar, tenho que voltar para um passado que talvez não exista mais.
Há muito deixei de ser um passageiro naquele ônibus, há muito, agora, continuo a nadar solitário em ondulações escuras que se alternam com as pálidas, inexplicáveis, indecifráveis, incompreensíveis...
Talvez, de certa forma, eu estaria mergulhando em minhas lembranças tão escuras e saltando teimosamente de volta para as vivências tão desencantadas que eu me recusava a viver?
Vejo a praia do Saco da Ribeira desfigurada por infinitos barcos e lanchas. Procuro mas não encontro a jaqueira que ficava ao lado da casa de minha tia Ana e tio Bidito, que não existe mais.
Nem eles, que estariam abraçados na varandinha a me acenar boas vindas.
Há um silêncio comovido naquilo tudo, não ouço a violência das águas da Praia do Sununga, onde a Gruta que Chora chorava para cada um de nós que nela entrava.
O vento da praia se tornou fraco demais, as árvores e arbustos quedam imóveis e vejo observadores como se estivessem apenas aguardando o instante de se tornarem possíveis testemunhas de um acordar feliz ou de um acordado-amargurado que a minha vida se tornara.
Os pequenos riachos não existem mais, regatos que cantavam o que deveria ter sido um perpétuo hino de louvor à Natureza e às coisas belas. Não consigo ouvir mais o suave e familiar sussurro das águas que há tantos anos serviram de inspiração e motivo para batizar um hotel com o nome mais poético que seria possível, o Solar das Águas Cantantes. Meu ônibus, meu condutor de amarguras, enfim me deixa num ponto à beira da estrada.
Cheguei.
Pelo menos, assim o esperava, assim o queria, em meu coração pequenino demais.
Porque fiquei atônito, de pé, num local que quase não reconheço mais, não é mais o mesmo, que nunca mais será o mesmo.
Bem ali do lado, do outro lado da Barra do Julião, o primeiro morro mais alto sempre verde.
Que agora me parecia sorrir desconsolado, tristemente, como se estivesse envergonhado, como se estivesse se desculpando com o que haviam feito a todos nós.
Ao longe, o pico do Corcovado, emoldurado por um céu azul que agora não me parece tão azul como poderia e deveria estar. O próprio vento que me trazia o perfume da mata e das flores, temperados com a saudade da maresia, hoje parece estar em algum outro lugar desconhecido e irrecuperável.
Não ouço os passarinhos, não ouço as cigarras que embalavam as tardes calmas, não vejo as borboletas-azuis que nos conduzem e fazem a transição para uma terra melhor do outro lado da ponte do arco-íris. Mas, agora, volto a ser o pequenino que nunca deveria deixar de ter sido, estou parado estarrecido à beira de uma estrada que poderia ou deveria ser sempre a estrada da minha vida.
O pequeno armazém do Aristides, a venda do Aristides, não existe mais. A casa de meu tio Valde não existe mais, as árvores centenárias que a abrigavam foram cortadas. Ou morreram de saudade, não o sei bem.
A vendinha do Miguel Cabral também se foi para nunca mais voltar. Atravesso com cuidado o asfalto movimentado no qual a estradinha de areia branca praticamente sem veículos também não existe mais. Do outro lado, na antiga Rua “B” (com outro nome, homenageando o Pedro Cabral Barbosa), a casinha do DER onde morava minha tia Jane, tio Vitor e os primos também foi demolida.
A ruazinha de areia branca continua estreita. Mas agora, em seus lados, não existem mais as árvores que me deram sombra e, às vezes, cajus em minha infância, agora há dois paredões contínuos de muros impessoais, casas enclausuradas de desconhecidos, poesias sem rimas, versos de músicas sem melodias, ausência de sentimentos, nada, nada, nada. Muros altos, muito altos, quase muralhas. Muros de alienados que desconheciam e desconhecem a indiscutível verdadeira realidade:
muralhas não nos protegem, elas nos isolam.
A capelinha branca, ao lado da qual havia um doce pé de araçá, também se foi, em seu lugar foi construída uma maior, mas sem o aconchego das lembranças que a anterior possuía em seus significados tão distantes e tão sagrados.
Reluto seguir em frente, o pouco que já vi já é demais para mim. Mas...
É...
Como bem disse Richard Bach: “Quando você chega ao término de toda luz que você conhece, e está a ponto de dar um passo na escuridão, fé é saber que uma destas duas coisas vai lhe acontecer: vai haver chão, ou você vai ser ensinado a voar”.
Haveria chão?
Eu seria ensinado a voar?
Ou?...
Fé?...
Com um sorriso amargo que não me chega aos lábios eu me lembro de uma historinha bonita e apropriada.
“- Vamos, filhote! Vá para a beira! Não é esta sua meta?” – disse a borboleta ao filhote de águia.
“- Sim, borboleta! Esta é a minha meta! Mas ali é muito perigoso, eu tenho medo, muito medo de cair e não voltar” – respondeu o filhote de águia.
“- Dê um passo por dia rumo ao abismo, se esta é realmente sua meta!” – disse a borboleta.
O filhote de águia chegou bem na beira do abismo. Ali fechou os olhos, deu o passo definitivo, e então caiu precipício abaixo, sem defesa. Em meio à vertiginosa queda, descobriu que podia voar.
Sei – você me diria – mas você não consegue ser uma águia. É... não consigo. Nunca fui e nunca serei.
Mesmo porque nunca vi sequer uma águia em minha limitada vida. Fosse eu um filhote de águia, se tivesse a coragem suicida de dar o último passo do ninho, e se eu descobrisse que não podia voar, o que seria de mim?
Estou atordoado, sinto-me febril naquele lugar que desconheço e onde procuro quase que inutilmente referências que me tragam para o passado que conheço tão bem.
Um grasnido se faz presente bem a meu lado. Não é uma águia, nunca o poderia ser, é uma gaivota. Uma linda, inesquecível e maravilhosa gaivota. Como se fosse um segundo sonho do qual eu nunca iria querer despertar, eu me vejo diante de uma gaivota pura como a luz das estrelas. E o brilho que se desprende dela sobrepuja em muito a claridade do dia ensolarado em que eu estou imerso.
Doces recordações começam a surgir timidamente em minha mente, como se fossem relâmpagos que lampejassem ao longe num entardecer distante, talvez inacessível, talvez impossível.
Como se me dissessem baixinho: “- Estamos aqui, mas talvez muito longe do seu alcance...”.
Porque, nas conversas entre parentes, nossas conversas tomavam rumos diferentes, até surpreendentes. Parecia que, de certa forma, cada um havia escrito o mesmo capítulo de forma diferente, parecendo memórias inexatas, inacabadas, esfiapadas, esfarrapadas, desencontradas. Parecia que nossa vida consistia basicamente de recordação e solidão, em lembranças assimétricas e não concatenadas que se estendiam para toda parte, evasivas, incongruentes, insensíveis, impessoais.
Recordações silenciosas que não se exibem, mas que nos fazem sorrir, mesmo que isso fosse uma forma instintiva e não declarada ou reconhecida de defesa.
É de fato a história, a nossa história, mas quando a recordo, quando a recordamos, às vezes não parece ter acontecido de verdade. Mas é. Mas foi.
Em nossas conversas, nossas histórias sempre ecoavam bem nostálgicas. E rarefeitas em seus detalhes que, nem por isso, deixavam de doer. Como se fosse um espectador privilegiado – e não um dos figurantes principais – eu consigo ver e sentir como uma lembrança se relaciona com outras que acabam se revelando estarem sempre ali do lado. Como se fosse uma espiral que deslocasse uma pequena parte da história de cada um, de seus sentimentos, dores e perdas particulares, para o todo que se tornou nossa família indistinta e talvez incoerente em nossas lembranças.
É, talvez eu devesse ir embora.
Melhor voar nas asas do sonho, em busca de minha própria salvação. Mas minhas asas – se é que as tive um dia – ficaram lá atrás, perdidas em algum lugar lá atrás.
Do nada (?) surge uma lembrança há muito esquecida. Um dia eu ganhara uma pequena barquinha de lata onde se acendia um pequeno pavio. A água da caldeirinha esquentava, a barquinha começava a se mover com um toc-toc suave e acalentador, transportando minhas lembranças de um mar que agora era uma simples bacia com água.
É, conduzindo minhas fantasias.
Fantasias tão vívidas, que nem era preciso o era-uma-vez das histórias encantadas, minha história, minha própria história, já era encantada, nela estava sempre presente uma fada chamada Felicidade.
E por alguns momentos não havia gigantes malvados e nem o monstro da distância e da separação.
E eu viajava nas águas sempre azuis da fantasia, as águas sempre azuis de meus sonhos, por alguns momentos que fossem eu conseguia que minha barquinha me levasse para a terra da qual eu nunca deveria ter saído. Num dia de desalento, de desencantos (e eram tantos, meu Deus), eu coloquei a barquinha nas águas do meu sonho, para que ela navegasse como uma barquinha de verdade e, se possível, me conduzisse para o lugar onde eu realmente queria estar.
A barquinha desatraca da margem do que foi a bacia. A bacia agora é um riacho, o riachinho que corria também feliz ao lado da casa de pau-a-pique e sapê de minha avó Maria.
Incrédulo, vejo meu sonho se transformar num pesadelo, porque eu não estava dentro da barquinha que começava a adentrar um longe longínquo demais.
E eu corri atrás dela pela margem, aflito, desesperado, mas não fui rápido o suficiente, não fui rápido o bastante, fiquei preso nas ramagens delicadas das perfumadas ciosas que balouçavam tristes, como se fosse uma despedida mais triste ainda.
Como se, de alguma forma inconcebível, estivessem tentando me reter para sempre onde eu deveria estar, para que eu nunca partisse, para que eu nunca fosse embora.
E a barquinha lá se foi, perdeu-se ao longe, deixei de ouvir o toc-toc, mas de alguma maneira inexplicável ela estava alcançando o oceano, e o atravessou até o país dos sonhos perdidos, onde atracou para sempre. Ainda que eu estivesse de coração partido, ainda que não soubesse se estava chorando pela barquinha que não me levara ou pela aterradora certeza de que eu nunca voltaria para meus sonhos, nunca me seria permitido fazê-lo, eu nunca conseguiria fazê-lo.
Dizem que tudo que se quebra pode ser arrumado. Mas, um coração? Pedacinho a pedacinho, dia após dia, com o progresso medido por pequenas vitórias, tudo pode ser reparado, dizem. Fé e trabalho duro vão fazer isso, e então a vida de repente diz que não, que as quebraduras estão piorando, como se isso fosse possível.
Fiquei flutuando à deriva, uma pessoa só em uma canoa sem remos. Então, barquinha perdida em meus sonhos de criança, voltei-me para a casinha de pau-a-pique e sapê de minha avó, sem saber ao certo se era uma casinha onde os sonhos se tornavam realidade ou se a casinha em si era feita de sonhos.
Houve um tempo em que este sentimento indefinido me deixava feliz, só por ele existir. Mas algumas vezes eu ficava perdido, meus sonhos se transformavam em pesadelos de criança e os monstros se agitavam em meu coração.
Fiquei ali de pé por um longo tempo, quem me visse à distância jamais poderia supor uma só daquelas emoções que sentia sem demonstrar, emoções que se agitavam em mim num turbilhão de irremediável e indisfarçável tristeza. Porque bastava apenas olhar em meus olhos e... Frequentemente eu sonhava com minha barquinha à noite, sempre navegando para sempre em meus sonhos. Quando despertava, mesmo anos depois procurava me iludir dizendo para mim mesmo que era só uma fase. Mas não era só uma fase, era a minha história inteira.
– Sei – você me diria – você foi um bom menino.
Ao que, talvez, eu replicasse, uma expressão de miséria em meus olhos suplicantes:
- E você, também se tornará uma lembrança? Só uma lembrança?
Porque, de certa forma, tudo era recorrente, tudo voltava outra vez. Anos depois, lembranças da luz oblíqua de tardes de pouco sol, das gotas de chuva da saudade quase transparentes, algumas festas de fim de ano com alguns familiares, colocando a conversa em dia depois de longos períodos de ausência.
Canecas e pires, pratos de sobremesas polvilhados de recordações esfareladas, a sensação de que aquele momento era único, especial, momento que talvez nunca mais se repetisse, a sensação de que nunca mais conseguiríamos conversar daquele jeito, lágrimas que se externavam em conversas plenas de palavras que quase não conseguiam serem ditas. Porque queríamos contar, sem o poder, sem o conseguir devidamente, o que havíamos feito e o que não conseguíramos fazer, o que havíamos dito e o que ficara por dizer.
Há muito, muito tempo, cada um de nós ansiara e ansiava por falar com alguém que nos entendesse, que nos compreendesse, sobre nossos sonhos, o que poderia ter sido. Mas as interrupções se sucediam, o fio da meada se perdia, os assuntos pareciam que jamais iriam se entrelaçar numa tapeçaria imaginária outra vez.
Ás vezes um detalhe ou outro se perdia, um detalhe ou outro fundamental, imprescindível, necessário para revelar, mais que recordações, momentos sobrevividos.
Momentos em que nos dávamos as mãos e, de certa forma, começávamos a brincar de roda, entoando cantigas infantis que nunca foram escritas mas que, nem por isso, deixavam se ser verdadeiras, nem por isso deixaram de ter acontecido em nossas vidas de sentimentos esfarrapados.
É, eu estava extremamente cansado das imagens em minha mente. Agora, deitado na areia branca da praia, era possível ver, através das folhagens densas dos arvoredos, as estrelas frias que se estendiam por sobre o oceano.
O luar projeta um infinito quadrado de luz prateada-dourada nas águas quase imóveis, e eu acreditava que, caso me concentrasse o suficiente, com bastante afinco, conseguiria fazer o sol surgir naquele espaço e despachar os monstros que me atormentavam à noite. Era a minha força de vontade inconsequente contra a noite que se tornara a minha vida. E eu procurava manter aquele instante em suspenso, de modo a permitir que minha ilusão se prolongasse. Mas agora até isso não passava de uma lembrança.
A ilusão se esvai e imediatamente volto a ser um menininho, confuso com meus próprios atos. Deixo cair os ombros, enterro o queixo no peito e abraço seus joelhos, escondendo-me de mim mesmo, do que eu me tornara. Um breve sorriso brota em meu rosto, apesar da dorzinha insistente no fundo da minha alma.
Um menino, um menino, apenas um menininho perdido. Um menininho sempre fora de alcance, sempre rodopiando para longe, como uma pipa levada pelo vento.
É, não tenha tanta certeza sobre as coisas que você não pode ver.
Maya. Tudo é ilusão. Será mesmo?
Como naquelas poucas e tão curtas reuniões em que nos encontrávamos – às vezes – em alguns finais de ano. Nunca mais em nosso Ubatuba. A última lembrança desembrulhada, ou muitas vezes, mesmo antes disso, parecia que todos se retraíam inconfessadamente arrependidos de terem se permitido mergulhar tão fundo nas lembranças, trazendo à tona dores que pareciam esquecidas e que, no entanto...
No momento seguinte, sob um pretexto ou outro, todos nos afastávamos para um refúgio interior, e em pouco tempo a felicidade das recordações partilhadas não passava de lembranças que pareciam não ter ocorrido. Então chegava a hora de ir embora, a despeito de tantas lembranças incompletas e assuntos que nunca se fechariam na exatidão da saudade. Como se eu fosse um apresentador equivocado, eu mostraria com um gesto incompreensível e irreal a cena que ficara inacabada lá atrás e todos se esforçariam para ver o que lhes havia sido prometido. Mas já havíamos passado a época de promessas, mesmo que não soubéssemos disso, mesmo que não nos déssemos conta disso.
Eu talvez esperasse que acontecesse alguma coisa como um caleidoscópio de lembranças, no qual os fragmentos de imagens se revelassem de uma clareza enfim encontrada que pudesse de alguma maneira trazer um sentido, uma explicação, uma justificativa, a tudo o que de bom e de ruim nos acontecera.
Mas estas imagens nunca se uniam, nunca se combinavam, e então logo todos me acenariam um adeus que significava adeus-não-até-breve. E eu iria embora.
Nunca o estaria indo, de verdade. Mas iria. De alguma forma. É, mesmo que eu não o demonstrasse atrás do sorriso falso, eu ficava perturbado por não conseguir fazer com que me entendessem realmente. Ou quando, inevitavelmente, achava que os outros não acreditavam em mim.
Ficava estarrecido, sentindo como o mundo estava frio e vazio lá fora. Mas, sabe, eu tinha que ir embora. Mesmo não o querendo eu tinha que ir embora.
Então eu parava de contar as maravilhosas histórias da carochinha que contava para mim mesmo, buzinava um adeus rápido e virava meu olhar para a frente, bem para a frente, o olhar que afundava numa profundeza impenetrável, irretornável. Mas eu tinha que ir. E eu ia.
E tão rapidamente como eu me havia escondido por trás daquele véu, meu olhar voltava para o que eu chamava de normalidade. Sentindo uma onda de infelicidade crescer dentro de mim.
– Chegando em casa, vou tomar um remédio para dormir – eu me prometia. - Talvez sonhar.
Sonhar? Mas era querer demais, não era mesmo?
- Eu voltarei logo – eu me prometia, me iludia.
Mas minha promessa, minha ilusão, logo se transformava em algo imaginário, talvez irrealizável.
E o que quer que me acontecesse ao longo daquela rodovia que me levava mais uma vez para longe, eu sentia que sempre estaria rodando por estradas que só me levavam ao inferno onde nascem os pesadelos. Para se livrar de si mesma a pessoa precisa abandonar seus medos e ressentimentos, não é mesmo?
É, eu observava a maneira como eu olhava para mim mesmo, de um jeito frio, como se tivesse feito algo de errado que nunca poderia ser perdoado. Eu, que simplesmente me propusera ser feliz. Só isso.
– Mas é querer demais, não é mesmo? – eu me perguntava, infinitas vezes sem conta.
Então me esforcei para não revelar mais o meu desgosto.
Porque eu sentia mesmo saudades do lugar que ficara perdido em algum lugar impreciso do passado, do meu passado, como uma pessoa que recorda a casa de sua infância olhando-a através da lente filtrante dos olhos sentimentais.
Sei, tantas coisas se foram, o que aconteceu, aconteceu. Ficar nutrindo estas impossibilidades, descontar tudo nos outros como poucas vezes fazia, em mim mesmo, tudo aquilo era simplesmente um desperdício de tempo.
Mais cedo ou mais tarde eu precisava parar de ter tanta esperança, tanta expectativa que, desta vez, as coisas aconteceriam como devem ser. É, mais cedo ou mais tarde, eu precisaria parar de viver a vida ao avesso. Sei, sou diferente. Uma daquelas pessoas aparentemente simples, mas realmente complexa. Totalmente complexa e, às vezes, quase sempre, indecifrável.
Sei, sou diferente. Quieto demais. O que significa que, quando implodo... – Existem perguntas – eu disse finalmente, falando comigo mesmo – que não faço nem a mim próprio. – Respostas?...
Por isso eu estivera olhando aquele álbum velho cheio de fotografias velhas, buscando avidamente os resquícios de minha infância em fotos que, às vezes, ganhavam vida, tornavam-se memórias de uma família, antes da vida acontecer e a destruir.
Porque para cada ganho aparente vem uma real perda indiscutível. E, em alguns dias, você precisa chorar por suas perdas, elas não podem ter acontecido em vão.
Mas eis que na distância a estrada sem fim é pouco a pouco substituída por uma praia sem fim.
O mar – quase sem ondas - quebra mansamente na areia branca. Onde estão três pequenas crianças.
O mais velho cava aos poucos uma pequena poça de onde retira a areia mais escura do fundo do mar.
De seus dedos pequenos escorrem água e areia, que sobrepostas desajeitadamente, também aos poucos começam a dar forma a um castelo, um lindo castelinho de areia.
Sabe, é um trabalho de paciência. Porque, além de ser pacientemente elaborado, construído aos poucos, de vez em quando o próprio peso, ou uma onda desavisada, acaba derrubando parte dele.
E é preciso então reparar os estragos, para que ele ganhe altura.
Ou é preciso, então, começar tudo de novo.
Até chegar a um castelinho lindo, um só, ou que muitas vezes se vê cercado de outros.
– Sei – você me diria - castelinhos de areia.
Não, não são só castelinhos de areia.
Porque, além de terem feito parte de muitas vidas, mesmo que depois levados pelas marés de volta para o fundo do mar, ainda são lembranças de uma infância possivelmente feliz, como saber?
Porque, agora, só agora, eu me dou conta – talvez tardiamente, ainda que tardiamente – de que isso também possa ter sido um simbolismo.
Um simbolismo revelador – naquela época - do que seria a vida.
Ou do que é a vida, sem os nossos sonhos.
Porque agora, só agora, eu me dou conta das analogias que explicam e me entristecem tanto.
Castelinhos de areia.
Castelinhos de sonhos.
Castelos que desabam parcialmente.
Sonhos que acabam parcialmente.
Castelos que desabam totalmente.
Sonhos que acabam totalmente.
Castelos em lembranças.
Sonhos em lembranças.
Castelos danificados pelas ondas do mar.
Sonhos danificados pelas ondas da vida.
Castelos sendo refeitos.
Sonhos tentados serem refeitos.
Castelos deixados para trás.
Sonhos deixados para trás.
É...
Castelinhos de areia que abrigariam nossos sonhos, e no entanto... Como se fosse só uma tarde na praia da nossa vida, quando tudo poderia ser uma alegria que se estenderia para todo o sempre.
Sei, esta história poderia ter sido contada diferente.
Como se fosse um conto de fadas, o princípio seria o era-uma-vez.
Mas é aí que os recursos literários começam a fazer falta.
Porque não é uma simples história, produto da fantasia.
É uma história real.
Dela escorre sangue. O nosso sangue.
Mesmo que em forma de castelinhos de areia deixados involuntariamente um dia para trás.
Como se tivéssemos escolha, não é mesmo?
Agora, novamente, vejo-me sozinho diante da porta fechada de uma casinha de pau-a-pique coberta com sapê, lá no alto de uma grande pedra, a casinha abraçada e abrigada por infinitas árvores, destacada por um céu eternamente azul. Mesmo que se faça noite em minha vida, em nossas vidas.
Vejo outra vez meus pezinhos procurando com cautela as pequenas pedras que serviam de degraus desencontrados que me levassem até ela, que me levavam até ela, que me levaram tantas vezes até ela. Mas agora, incompreensivelmente, a porta está aberta, como se me esperasse, como se me convidasse a entrar, como se me dissesse entrevocê-é-bem-vindo, entre-fique-aqui-é-o-seu-lugar.
Paro na soleira da porta e olho para o interior daquela casinha, olho para meu próprio interior.
Vejo uma pequena mesa de madeira rústica, bancos rústicos, a pequena toalha florida, a pequenina lamparina de querosene.
Dou alguns passos, adentro uma saleta onde me acena com lembranças o moedor de cana. A seu lado, junto à porta divisória, um aparador com outra toalhinha alegre estampada de flores, uma moringa de barro com água sempre fresca, a grande caneca de alumínio.
Mais à frente, edificado sobre o chão de terra batida de toda a casa, o fogão à lenha. Meus olhos sobem e encontram o esfumaçado no alto, o esfumaçado contínuo provocado pela eterna queima de lenha, por todos os sonhos nossos que foram sonhados ali. Que viraram cinzas ali. Agora parado, como se não soubesse mais para onde ir, vejo-me com uma pequena caneca de ágata nas mãos, um pouco de café do terreiro, café adoçado com garapa, sabor de uma infância longínqua que não volta mais. Volto-me para a pequena cozinha emoldurada por paredes de pau-apique, desta vez vejo mamãe diante do fogão onde ela frigia as incertezas, dourava as esperanças, enchia nossas vidas de fantasia.
Como aprendera a fazer com o exemplo de vida e os ensinamentos de vovó Maria da Graça.
Outra Maria.
Esta, a minha mãe, a nossa mãe, a Maria do Rosário.
Vovô João. João de Deus.
Como se todos estivessem de mãos dadas com Deus, à espera de que alguma coisa maravilhosa acontecesse e mudasse a vida de todos eles, de todos nós.
Mas eles estavam apenas sendo amparados, apenas sendo consolados, nada iria mudar. Como não mudou.
Não em termos terrestres, não no que achamos ser esta vida às vezes tão madrasta e tão dura, tão sem sentido.
Uma lua grande e dourada subiu aos céus. Como os quadros que agora não consigo ver mais na parede da sala escura, lá fora a lua grande e dourada subiu aos céus e está emoldurada por estrelas, incontáveis estrelas, infinitas estrelas.
A lamparina está acesa, da chama pálida desprende-se um fiapo de fumaça escura que busca o céu, mas encontra a palha do sapê que se enegrece pouco a pouco, como se quisesse ficar eternamente entre nós e não perdida e diluída num céu sem limites como se tornaram nossas lembranças.
Como nossos sonhos, que precisavam ir tão longe, mas...
Na mesa de madeira, sentadas tristemente diante de pequenos pratos vazios, três crianças sonham com o que comer. Enquanto um adulto não sabe bem o que fazer para remediar toda aquela desgraça. Então, como se fosse um raio de luz muito brilhante que adentra inexplicavelmente a pequena cozinha, a lenha começa a crepitar alegremente no fogãozinho tão grande que tem tão pouco a nos oferecer. Mamãe começa a sorrir e – de certa forma – nos pega pelas mãos, começamos a brincar de roda, ela diz que está nos levando para um mundo mágico e mais feliz, onde as crianças sorriem e os adultos não choram escondidos pelos cantos, mesmo que nunca deixem suas lágrimas serem vistas.
Na pequena panela de alumínio um pouco de arroz, o que sobrou de ontem, o que foi economizado de ontem, da fome da ontem que se estendeu para hoje e para a sobremesa do amanhã.
Então, um único ovo é partido e a banha chia também alegremente na frigideira de ferro, como se entoasse mais uma cantiga de roda, da roda de nossa vida. Temperado com uma pitada generosa de não-faz-mal. Sei, é impossível, mas juro que um aroma inebriante e inesquecível sobe daquela frigideira. Juro.
E então o único ovo frito, com gema mole, é delicadamente colocado sobre o resto de arroz branco temperado com lágrimas, com tantas lágrimas, lágrimas que se tornarão futuramente uma doce e triste lembrança de um tempo que se foi e não voltará mais, nunca mais. Sob a expectativa das três crianças, expectativa que faz com que a fome seja esquecida por alguns momentos, aquela mulher mágica nos leva agora para um mundo mais feliz.
Sob nosso olhar atento, o ovo é esmagado cuidadosamente com o arroz branco, que aos poucos se torna dourado como a vida de cada um de nós deveria ser.
Sob o sorriso lindo e amoroso e também faminto de mamãe, ela nos serve o que chamou de arroz amarelinho. E nós, as três crianças, comemos com prazer e apetite aquele prato tão simples e ao mesmo tempo incrivelmente, indescritivelmente, elaborado por sua fantasia. E comemos o arroz amarelinho com aquela-vontade-de-quero-mais.
Mesmo que mamãe não coma quase nada, mesmo que não tenhamos consciência disso em nossa tão pouca idade, de certa forma o alimento se multiplica como o episódio bíblico da multiplicação dos pães e dos peixes.
Mesmo que não haja pão.
Mesmo que não haja peixe.
Mesmo que...
E, juro, iguais aos pedaços de mandioca com suas crostas douradas que vovó nos fritava, nos parecia não haver nada mais gostoso em todo o mundo. Juro. Juro. Juro...
E não havia, não havia.
Como não há até hoje.
Vejo-me agora sozinho diante de uma mesa que não existe mais numa casinha de pau-a-pique coberta de sapê que também não existe mais. Pego em minha mente torturada uma segunda xícara e sirvo um café para uma tardia e tão procurada visitante: a Esperança.
Ela veio apropriadamente sozinha, não trouxe com ela nossos sonhos batidos.
Tomamos o café em silêncio, partilhando aquele silêncio pleno de gritos de sofrimento, de indagações, de porquês, sem coragem de olhar um para o outro.
Então uma cigarra retardatária começa a cantar lá fora e o encantamento se quebra, talvez para nunca mais voltar.
Uma grande borboleta azul revoluteia por algum tempo e depois também desaparece, como se me acenando um adeus amargo.
Deparo-me sozinho, segurando duas pequenas xícaras de ágata vazias. Depois de um momento de indecisão, no qual eu não sabia bem o que fazer, enfim respiro fundo.
E as coloco dentro da pia da saudade com muito cuidado, como se fossem muito frágeis, frágeis como as tentativas de minhas impossibilidades. ***
Dedico este livrinho a todas as pessoas de minha família que me ajudaram a levantar castelinhos de areia. E a me lembrar deles com infinita saudade. E que, por isso mesmo, por mais que doa, fizeram e fazem a vida, a nossa vida, ter valido a pena.
O autor
Ex-policial civil com um passado violento, mas que não se embruteceu com a
vida.
“Quem luta com monstros deve velar para que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro. E se tu olhares durante muito tempo para um abismo, o abismo também olha para dentro de ti.” (Friedrich Nietzsche)
fernandocoimbrasantos@gmail.com
Bibliografia:
Livro 1 – O PÁSSARO DA NOITE (2001)
Livro 2 – GRITOS SEM ECOS (2001)
Livro 3 – O QUINTO CAVALEIRO DO APOCALIPSE (2017)
Livro 4 – IGAIBIRA: CANOA ENTRE DOIS MUNDOS (2017)
Livro 5 – MEU PEDACINHO DE TERRA, MEU PÉ DE SERRA... (2017)
Livro 6 – TARDES DE CHUVA (2017)
Livro 7 – NOITES DE ESTRELAS (2017)
Livro 8 – MELODIA EM TOM MENOR (2017)
Livro 9 – FLAMBOYANT FLORIDO (2018)
Livro 10 – EM BUSCA DAS TECLAS PRETAS (2019)
Livro 11 – O PERFUME DA MURTA (2019)
Livro 12 – O SOFRIMENTO DOS INOCENTES (2019)
Livro 13 – ENCONTROS E DESENCONTROS (2019)
Livro 14 – UM APITO DE TREM LONGÍNQUO DEMAIS (2019)
Livro 15 – CASINHA DE SAPÊ (2019)
Livro 16 – CLAMANDO POR JUSTIÇA (2019)
Livro 17 – CARRO DE BOI (2019)
Livro 18 – À PROCURA DE MIM (2020)
Livro 19 – MÚSICA AO ENTARDECER (2022)
Livro 20 – A LAGARTA JOSEFINA (2022)
Livro 21 – ATÉ METADE DO CAMINHO PARA AS ESTRELAS (2022)
Livro 22 – FALTA UM PEDAÇO DE MIM (2022)
Livro 23 – BANZO (2022)
Livro 24 – A LUA E O MAR (2022)
Livro 25 – AS CORES DOS IPÊS (2022)