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Sentimentos - Fernando Coimbra dos Santos

passageirodachuvagmail.com

"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".

 


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As cores dos Ipês

Segunda, 07 de agosto de 2023

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Esta é uma história de Amor.

Bom, poderia ser considerada assim.

 

 

 

 

 Cai, riscando um leve traço dourado no azul, uma flor de ipê!

 

(Hidekasu Masuda)

 

 

 

 Encontros.

 

 

 

Desencontros.

 

 

 

Era uma vez...

 

 

 

I

Caminhava sem destino quando se sentiu irresistivelmente atraído pelos ipês floridos do jardim daquela casa.

O portão estava aberto. Sem pensar nas consequências, como se tomado por um impulso maior que qualquer dose de bom senso, simplesmente entrou.

Passos lentos, se deixou alcançar e inebriar com as cores festivas e seus perfumes tão distintos, às vezes tão sutis, muitas vezes tão ignorados. Ao longe, mais dois ipês coloridos em plena floração: um roxo, e o outro amarelo.

E outros, muito outros, uma sequência luminosa de plena e rara beleza.

Poderia, apropriada e convenientemente, ser chamada Alameda dos Ipês. 

Caso fosse a rua de uma cidade.

Mas não era.

Destoando do resto insosso da cidade, o bom gosto começava bem junto ao portão.

Em ambos os lados do caminho, delicados Manacás floridos.

Depois, brancas e perfumadas Murtas.

Mais além, os Manacás da Serra, os Jacatirões.

E então, só então, próximo à casa grande, os Ipês multicoloridos.

Flores. Só flores. Neles, nem uma única folha. 

A perenidade perpétua de curta e ao mesmo tempo infinita duração de menos de duas semanas. Depois, a saudade.

A-falta-que-você-me-faz.

Voltem-,-iluminem-e-enfeitem-os-caminhos-da-minha-vida.

Como se fosse um tapete multicolorido, as flores delicadas deixavam o céu e se precipitavam docemente em níveis mais terrenos.

Inconcebivelmente uma lembrança da infância surgiu do nada: começou inexplicavelmente a ouvir o alegre ciciar das cigarras.

Era dia. Mas também de uma maneira absurda e impossível, vagalumes cintilavam à luz clara da manhã, como se fossem estrelas que houvessem descido do céu tão azul. 

Também sem se dar conta conscientemente do que fazia viu-se pegando um pedaço de fino cipó, outra lembrança esquecida e que ali agora estava tão presente. E necessária.

Com gestos delicados tirou as poucas e pequenas folhas, começou então a colher as flores azuis e amarelas dos Ipês que ornavam o solo, seu solo, o jardim dos céus.

Intercalava cada flor de cor diferente como se fosse a pérola individual de um colar de rara beleza. E era exatamente o que estava fazendo. Ajoelhado, como se desse graças a Deus (e era também o que estava fazendo), tão concentrado se encontrava que se sobressaltou quando uma voz fria às suas costas o trouxe à realidade:

-  Quem é você? O que pensa que está fazendo?

Voltou-se lentamente, como um menininho flagrado numa travessura.

Viu-se diante de uma moça linda.

-  Seria outra flor neste jardim tão pródigo? - perguntou-se internamente.

Maravilhosa.

Olhos azuis.

Como as flores dos ipês azuis.

Cabelos louros.

Como as flores dos ipês amarelos.

Dentes semicerrados muito brancos.

Como as delicadas flores das Murtas.

Um traço delicado de suave batom.

Como as delicadas flores dos Manacás da Serra.

Sua boca era um traço fino, o que destoava.

Como se fosse um espinho inoportuno e inadequado que comprometesse a beleza de uma rosa.

Mas ele sorriu. 

Um meio sorriso que fosse. 

Um meio sorriso envergonhado.

Mas que extrapolou de seus lábios e atingiu seus olhos, irradiando ternura por todo o universo.

- Desculpe... - respondeu, apenas. - Não queria assustá-la.

Ela continuou a olhá-lo com frieza. Uma pedra de gelo que, no entanto, parecia inexplicavelmente começar a derreter com o calor do sol. - Não me assustou. O que faz aqui? É o novo jardineiro? Não lhe disseram que tem que usar uniforme, como todos os demais empregados?

O meio sorriso se manteve em seus lábios, desarmando-a ainda mais.

- Desculpe... não quis ser inoportuno. Já estou indo embora.

Quase retorceu o colar de flores em suas mãos, mas não podia machucar um trabalho tão simples, tão bonito.

Este gesto não passou despercebido à moça. 

Que, então, sorriu.

E foi como se o vento suave mesclado do perfume das flores afastasse uma nuvem carregada que ocultara o sol até então.

-  Quem é você? - repetiu.

-  Apenas um passante... - respondeu ele, na falta do que dizer.

Ela sorriu outra vez, sentindo-o um pouco desconcertado.

-  Parece uma criança... brincando com flores...

Ele ergueu o colar diante dela. E lhe disse docemente:

-  Isso? Ah, é só uma lembrança de infância. 

E em voz um pouco mais baixa, como se lhe confiasse um segredo zelosamente guardado:

-  Eu o fazia para minhas irmãs. E para quem queria bem. Não é lindo?

Ela foi quase impiedosa.

-  Um colar de flores mortas.

Ele ficou pensativo por um momento. Manteve o colar erguido diante dela. E disse com suavidade:

-  Ainda não. Não são flores mortas. São apenas flores que choveram do céu e enfeitaram a terra. E embelezaram nossa vida. A minha vida. Viverão para sempre em meu coração. Mesmo quando já não estiverem mais aqui. Ele não sabia se ela estava debochando quando ouviu as palavras entremeadas por um sorriso divertido:

-  Criança... e filósofo.

-  Eu?... Não, creio que apenas não me embruteci tanto ainda com a vida.

O sorriso desapareceu dos lábios da moça.

-    E eu, então, sou uma embrutecida que nem sabe ver a beleza que você diz que um colar de flores pode ter?

-    Eu disse isso?

-    Eu sou isso? - devolveu ela, no mesmo tom de voz.

-    Não sei dizer, francamente. Pelo menos, ainda não.

-    E o que precisaria, filósofo?

-    Bom... tudo depende de quem vê. Não, tudo depende de como vemos. Muitas coisas da vida têm belezas efêmeras e disfarçadas, só perceptíveis pelos puros de coração.

-    Não entendi...

-    Ah, não se preocupe com isso, poucos me entendem. Digamos de outra forma.

Apontou para o jardim que se estendia até o longe.

-    O que vê?

-    Além do jardim?

-    Isso, além do jardim. O que você consegue ver? Resumidamente.

Ela o atendeu por algum tempo. Então respondeu, cautelosa:

-    Vejo muitas flores balançando com o vento.

-    Não, moça, não me diga o que seus olhos veem. Diga-me o que os olhos de seu coração e sua alma veem.

Ela voltou a olhar o jardim.

-    Ainda só vejo flores...

Ele a olhou com suavidade.

-    Vê alguma estrela no céu?

Ela riu.

-    Em pleno dia???

-    Ah, então você acha que as estrelas não estão lá somente porque você não consegue vê-las por causa da claridade? As estrelas são todas iluminadas. Não será para que cada um possa um dia encontrar a sua? Ela o fitou, incrédula com o desenrolar inesperado da conversa improvável que jamais esperaria ter com um estranho.

-    E o que eu deveria ver mais?

-    Você disse que vê muitas flores balançando com o vento. Correto?

-    Sim.

-    Está errada. Está vendo com seus olhos, não com os olhos da alma e do coração. Veja com eles. O que vê?

A moça bem que se esforçou, mas teve que se dar por vencida.

-  Ainda o mesmo... pode me ajudar? - quase suplicou.

Ele, num gesto amplo, como que abraçou as infinitas flores do jardim. - São muitas flores. Maravilhosas flores. Só que não estão simplesmente balançando com o vento. Consegue ver mais do que isso?

-  Não.

-  Ainda não. Mas vai passar a ver. Se quiser. Se se permitir. As flores não estão simplesmente balançando com o vento. Elas estão bailando com a sinfonia que o vento está musicando. Quando uma delas se retorce não está apenas se retorcendo, está descrevendo uma mesura delicada e dando graças a Deus por simplesmente existir. Por pouco tempo que dure a sua vida. Por pouco tempo, que seja.

-  Então... todas estas flores caídas...

-  Elas não estão caídas. Como disse, são apenas flores que choveram do céu e enfeitaram a terra. E embelezaram nossa vida.

Uma flor azul se desprendeu delicadamente de suas amarras aéreas e se lançou para o infinito livre.

-  Viu aquilo? - perguntou ele, com doçura.

-  Aquela flor que caiu?

-  Não foi uma flor que caiu. Foi uma estrela cadente que riscou o céu por alguns momentos e agora adorna o chão que pisamos sem as ver.

Ela o olhou com atenção.

-  Eu errei. Disse que você era um filósofo. Não é. Decididamente, não é. É um poeta.

-  Você é generosa... não sou nada disso. Muitos dizem que sou um bobo.

Outros, talvez mais precisos, dizem que sou um louco. Quem estará certo?

-  Mas isso são só palavras.

-  Sim, só rótulos. Que importância tem como as chamamos ou dizemos? O importante, o mais importante, é o significado. Pelo menos, acho assim. Mas voltemos ao nosso assunto. Olhe ao redor, ao longo do caminho. O que vê?

-  Com os olhos da alma e do coração?

-  Isso, com os olhos da alma e do coração. O que vê. O que realmente vê?

Ela o atendeu, flagrantemente pensativa.

-  Com os olhos normais eu veria o trabalho desleixado de um jardineiro que nem merece este nome. Folhas secas e flores agonizantes caídas no chão que deveriam ter sido removidas há muito tempo. Só isso.

-  E...

-  Mas, com os olhos da alma e do coração, começo agora a ver como isso é lindo. Parece um tapete que artesão nenhum seria capaz de tecer, por mais caprichoso e competente que fosse.

Calou-se por alguns momentos, o moço respeitou este silêncio. Então ela continuou, surpreendentemente, como se falasse apenas para si própria: - Nunca mais vou ver este caminho com os olhos normais. Temo que daqui para frente só poderei vê-lo com os olhos da alma e do coração.

Voltou-se para ele, ansiosa.

-  Estarei ficando boba? Pior, estarei ficando louca? 

-  Como eu? - e ele riu. Mas era uma risada cúmplice, nada debochada.

-  Como você. Sim, como você.

-  Só há uma maneira de sabermos isso. Olhe em torno. O que mais vê? Ela assim o fez, admirando realmente pela primeira vez as flores azuis e amarelas dos Ipês que choveram do céu e enfeitaram a terra. Então disse, inconcebivelmente, do fundo de seu coração:

-  Caiu, riscando um leve traço dourado no azul, uma flor de ipê!

Foi a vez dele rir.

-  E depois o filósofo/poeta sou eu, não é mesmo?

Ela o olhou com mais cuidado.

-  Quem é você, moço?

Ele sorriu. E respondeu:

-  Quem sou eu? Ou o que sou eu?

-  Ah, não venha com rótulos. Já decidimos que eles não são importantes.

-  Pois então... 

-  O que você é? Um jardineiro?

-  Poderia ser. Talvez um jardineiro dos jardins dos céus. Gosto de achar que sou um peregrino da beleza. Um peregrino que caminha em busca da beleza. Existem tantas coisas gratuitas, maravilhosas, que o dinheiro não pode comprar. Você sabe disso, não é mesmo?

Ela respondeu, com amargura:

-  É... sou a pobre menina rica...

Ele deu de ombros.

-  Rótulos... Mas...

-  Mas?...

-  Mas o importante é o que você pode se tornar. Se tornar o que quer ser.

Se tornar o que você realmente é. Não o que parece ser.

-  Como saber?

-  Simples, pergunte ao seu coração. Você está sendo quem você gostaria de ser?

-  Como saber? - repetiu.

-  Perguntando. Enfrentando. Mas eu preciso seguir meu caminho, já tomei muito de seu tempo, desculpe.

Aproximou-se lentamente, ergueu o colar de flores azuis e douradas à sua frente.

-  Por favor, aceite.

A moça abaixou um pouco a cabeça, com delicadeza e carinho ele colocou o colar como se a estivesse coroando.

-  Desculpe, é muito simples. Mas é de coração. Eu gostaria de dar-lhe um presente esplêndido, mas isso é tudo o que eu tenho.

Ela colocou a mão sobre o colar como se o protegesse da maldade do mundo. Então, com voz baixinha: 

-  Não é simples. É maravilhoso. Obrigada. E cheio de significados. Para quem sabe. Como você disse.

Ele seguiu o exemplo das flores que não estão simplesmente balançando com o vento, que estão bailando com a sinfonia que o vento está musicando.  E ele o fazia agora, delicada mesura diante daquela moça que o ouvira com tanta delicadeza. Sem rir dele. Sem rir das coisas que acreditava. Sem rir das coisas estranhas que ele fazia, dizia e transmitia. Brincalhona, ela retribuiu a mesura, um sorriso lindo iluminando a manhã e o mundo. Dele.

-  Vamos nos ver outra vez? - perguntou ela com ansiedade indisfarçada. - Quem sabe? Nosso mundo, que se esparrama lá fora – os montes e as árvores e o sol que bate nos telhados – é muito mais do que apenas marrom e cinza. Tem cores. Tem verdes e vermelhos e azuis intensos como os do mar. Você só precisa saber onde procurar. E ter a sorte de encontrá-los.

Ela ficou estarrecida.

-  Você sempre fala por parábolas?

Ele riu, um laivo de saudade perceptível ao fundo tão raso.

-  Isso é o que minha mãe sempre reclamava em mim. Não, apenas tenho um jeito indireto de dizer coisas mais diretas. Talvez. Pelo menos, é o que gosto de acreditar. Preciso acreditar. Tenho que acreditar.

-  Então, terei que ter a sorte de reencontrá-lo?

-  Sorte? Se achar que eu valho a pena... Quem sabe, o mundo dá tantas voltas...

-  Diga-me... do que você gosta? Além de admirar as flores e fazer colares bonitos? E de dizer tantas coisas bonitas, diferente da maioria das pessoas? Nunca conheci ninguém como você.

-  Ah, gosto de coisas aladas. Passarinhos, borboletas, vagalumes, estrelas cadentes, flores que descem do céu para a terra... E sonhos.

-  Sonhos... Alados!!! Mas... o que você faz? O que você realmente faz?

-  Gosto de pensar que sou portador de sonhos. Que transmito sonhos. Sonhos que façam a vida valer a pena. Sonhos que deixem nosso mundo tão triste mais bonito. Como ele deveria ser sempre.

Ela o surpreendeu quando pegou uma flor azul de Ipê caída no chão e a colocou em seu peito numa lapela inexistente. - Para mim? - perguntou ele, com suavidade comovida.

-  Sim. Por favor, aceite. Desculpe, é muito simples. Mas é de coração. - ela repetiu suas palavras com o mesmo tom de voz. Foi a vez dele retribuir, quase que dolorosamente.

-  Não é simples. É maravilhoso. Obrigada. E cheio de significados. Para quem sabe. Como você disse.

Como dizer a ela que nunca ninguém lhe havia dado uma flor? Nem tanto carinho, consideração e respeito?

Um silêncio profundo fez-se entre os dois. 

Mas pleno de significados. 

O suave e quase imperceptível sussurrar do vento, uma brisa, podia ser ouvido passando entre os Ipês e transformando momentaneamente algumas flores em luminosas estrelas cadentes.

 

 

 

 

 

II

Foi-lhe inevitável lembrar-se do avô. 

Todas as manhãs dirigia-se para as margens do rio, por onde caminhava lentamente entre as alamedas de Manacás da Serra em flor. 

Vistas à distância, as árvores eram como nuvens de vapor tintas de rosa e branco. O caminho estava coberto por uma camada de botões que flutuavam por todos os lados, morrendo no seu momento de maior esplendor. 

Enquanto caminhava, pensava. Lembrava. Mais apropriadamente: deixava os pensamentos fluírem. 

Pensamentos aparentemente incoerentes e desencontrados consistidos de fragmentos de pensamentos rápidos concretizados em palavras simples ou frases interrompidas, mas compreensíveis. Ao menos, para ele. Sentava-se nas margens inclinadas do rio e observava o fluir da água até que esta lhe parecia imóvel e lhe dava a impressão dele estar flutuando correnteza acima, numa inversão incompreensível.

Muitas vezes permanecia entre os Manacás da Serra todo o tempo que podia, caminhando lentamente até o anoitecer. 

À medida que a claridade ia desaparecendo do céu, um crepúsculo lúgubre parecia elevar-se do solo, iluminando as árvores por trás e dando ênfase à nevada de pétalas rosas e brancas que tombavam docemente. Tinha a sensação de que sua vida era o esboço de um quadro feito apressadamente, mas nunca terminado... por falta de tempo. Tempo. Ainda ontem, mas há mais de quinhentos anos, caminhava pela margem deste rio, acompanhado pelo avô. Ainda ontem... mas um outro século. Podia ver o rosto de seu avô, e em sua lembrança estava sempre olhando para ele. Podia recordar o quanto sua mão parecia grande e forte para seus pequeninos dedos. Ainda podia sentir em seu peito... como se os nervos tivessem lembranças independentes... o aperto melancólico que sentia então diante da sua incapacidade de dizer a seu avô o quanto o amava. 

Mas muitas das as coisas insignificantes e corriqueiras – as coisas terrivelmente importantes, mas já esquecidas, que completam o tempo passado – esvaziavam-se e escapavam-se-lhe da memória. Costumava pensar que sentia pena de seu avô por nunca ter podido confessar que o amava. Era dele próprio que sentia pena. Talvez ele precisasse muito mais de dizê-lo do que ele de ouvi-lo, nunca o soube com certeza.

Recordava-se que suas conversas sempre foram caracterizadas por reticências compreensivas. E lembrava-se sempre das suaves palavras confidentes do avô:

-                     E lembro-me de um outro ontem, quando minha filha, sua mãe, era uma garotinha. Andávamos por aqui. Neste exato momento, os nervos de minha mão recordam-se da sensação de seus dedinhos roliços agarrados a um dos meus. Estas árvores adultas tinham acabado de ser plantadas, eram simples mudas, umas hastezinhas finas presas a estacas com tiras de tecido branco.

Pareceu olhar muito longe, muito para trás. Então continuou: - Quem poderia pensar que aqueles brotos esquisitos poderiam ficar velhos e sábios o bastante para consolar sem pretender aconselhar? Pergunto-me se um dia alguém não mandará cortar todas elas por não oferecerem frutos. Possivelmente o farão. E, provavelmente, com a melhor das intenções.

Olhou afetuosamente para o neto que não tinha coragem de encará-lo.

Colocou a mão paternalmente sobre seu ombro.

-                     Jamais se ofenda com a superioridade da experiência que os mais velhos possuem. Lembre-se de que pagaram por ela com a moeda da vida e esvaziaram uma bolsa que não se pode voltar a encher. Recorde-se, também, que o velho deve aproveitar ao máximo a sua experiência. Ela é tudo o que lhe resta.

O pequeno o escutava em silêncio, memorizando, eternizando aquelas palavras mesmo sem o saber. 

O avô continuou, paciente:

-                     Suas derrotas na vida não partirão daquelas pessoas mais inteligentes que você. Virão dos pacientes, dos perseverantes, dos medíocres. Seu menosprezo pela mediocridade não o deixa perceber sua imensa força fundamental. Você se manterá sob o brilho da própria inteligência, incapaz de ver os cantos do cômodo mergulhados na penumbra, de arregalar os olhos e distinguir os perigos em potencial que emanam dos homens, o estopim da humanidade.

Olhou o neto como se o avaliasse.

-                     Sei que agora você não consegue entender nada do que lhe digo. Mesmo agora, quando estou lhe chamando a atenção para isso, não pode compreender  que homens inferiores, seja lá em que quantidade for, possam derrotá-lo realmente. Mas encontramo-nos na época do homem medíocre. Ele é insensível, incolor, maçante... mas inevitavelmente vitorioso. A ameba sobrevive ao tigre porque se divide e prossegue na sua monotonia imortal.

O avô parou por um momento, afagou delicadamente uma flor em sua haste, mas não a arrancou e logo depois jogou fora como tantos fazem.

Impossibilitando que ela continue a enfeitar os caminhos de alguém. 

Só então continuou:

- Para sobreviver ileso, evite entrar em contato com eles. Esconda-se sob uma camada de delicadeza. Finja-se obtuso e distante. Viva isolado e se refugie em si mesmo. Acima de tudo, não deixe, não permita, que o atraiam rumo à cólera e à agressão. Esconda-se.

O avô sabia que seus ensinamentos incompreensíveis eram profundos demais para a tão pouca idade do neto. Mas, quem sabe, um dia... - Refugie-se nas coisas lindas e delicadas que já não existem mais. E é mais seguro trancar os portões da saudade. Despeça-se das coisas que lhe toquem o coração, colocando-as de lado com uma afeição delicada. Que o vazio outonal permaneça consigo, mas não o sofrimento e o ódio. Não se veja forçado a aprender que, quando alguém janta com lobos, nunca se sabe se é o convidado ou a entrada. Quem pode fazer as coisas mais cruéis? Aquele que pode.

O mais velho estivera falando muito baixo, quase para si mesmo, enquanto caminhavam pela margem ampla sob a luz mortiça. O monólogo tinha a qualidade de uma lição dada por um professor afetuoso a um aluno caprichoso, e o mais jovem tinha prestado a mais profunda atenção, a cabeça baixa. Após um minuto ou dois de silêncio, o avô sorriu suavemente e bateu palmas:

- Chega! O conselho só ajuda a quem o dá e tão somente quando alivia o peso da consciência. Em última análise, você fará aquilo que o destino e a sua educação ditarem e meu conselho afetará o seu futuro na mesma proporção que um botão de flor caindo no rio altera o seu curso.  Continuaram a andar devagar e em silêncio, enquanto anoitecia, ao mesmo tempo em que a brisa noturna chegava soltando as pétalas, derrubando-as como uma neve espessa e rosada que tocava seus rostos e cobria-lhes os cabelos e os ombros. 

Ao alcançarem o fim da ampla margem depararam com uma ponte e ali pararam para observar a espuma ligeiramente fosforescente nos pontos em que o rio revoluteava em torno das pedras escuras.

O ancião, cotovelos apoiados sobre a balaustrada da ponte, olhando para o brilho fantástico da espuma, balançou vagarosamente a cabeça. Esperava que seus ensinamentos fossem um dia alcançados. Mesmo que aparentemente tivessem a beleza de um cristal, não podia faltar-lhes a beleza da flor.

Colocou afetuosamente a mão sobre o ombro do neto, sentindo os olhos enevoados.

Tudo está molhado e úmido – pensou. – Mas dentro em breve a estação do florir dos Manacás da Serra estará conosco outra vez.

O que sentia com isso?

O que realmente queria sentir com isso?

O que realmente lhe significava isso?

Ele o sabia, bem o sabia. Inadmitido, que fosse.

Como uma lembrança pode se tornar tão presente? Tão vívida? Ao longo de sua infância, enquanto tivera o avô a seu lado, foram-lhe ministradas muitas experiências, muitos ensinamentos para a vida. 

Vida que ele não acreditava que poderia ter, que teria.

Nem o poderia pensar, quanto mais supor, naquele tão pouca idade.

As sábias e proféticas palavras do avô o atingiram outra vez:

- “Para sobreviver ileso, evite entrar em contato com eles. Esconda-se sob uma camada de delicadeza. Finja-se obtuso e distante. Viva isolado e se refugie em si mesmo. Acima de tudo, não deixe, não permita, que o atraiam rumo à cólera e à agressão. Esconda-se”.

E não era o que fazia agora, o que procurava fazer agora?

Lembrou-se, então, das palavras que ele dissera à moça:

- “Você é generosa... não sou nada disso. Muitos dizem que sou um bobo. Outros, talvez mais precisos, dizem que sou um louco. Quem estará certo?”.

E outra:

- “Rótulos...”.

Qual o preço a pagar por ser um incompreendido?

Por ser diferente dos outros?

Por destoar dos outros?

Por não ser mais um como os outros?

Valerá a pena? 

Valerá?

Como transmitir, partilhar isso, com alguém?

Aprendera - pagando o alto preço que isso também impõe - que não se pode obrigar ninguém a andar em um caminho florido, por mais bonito que seja. Só podemos aponta-lo.

A escolha...

Uma frase de seu avô ecoou dolorosamente em suas lembranças:

"- Se ninguém atender ao seu chamado, siga seu caminho sozinho".

 

 

III

E agora, depois de muito tempo, depois de tantos desencontros, surpreendentemente deparara-se com uma moça generosa o suficiente para escutá-lo.

-  Tem mesmo que ir embora agora? - perguntou ela, inesperadamente.

Ele teve outro meio-sorriso.

-  Ah, já a incomodei demais com minhas bobagens...

-  Não. Por favor, fique mais um pouco. Tomaria um café comigo? Por favor...

O meio sorriso dele se transformou num sorriso inteiro que lhe transbordou pelos olhos.

-                     Obrigado, mas não estou vestido adequadamente para entrar em sua casa.

Ela riu, como se vitoriosa.

-                     Ah, chegou a minha vez. Talvez agora eu possa lhe ensinar algumas coisas. Acho. Espero. Uma vez li uma historinha que dizia que um rei sentiu fome de noite e foi de pijama para a cozinha do palácio. Lá, de repente, surgiu o cozinheiro que o escorraçou com ameaças. O rei voltou para o quarto, vestiu as roupas reais e retornou para a cozinha onde o cozinheiro imediatamente se prostrou diante dele, reverenciando-o. Fez uma pausa para que a história se tornasse um rápido suspense, e continuou:

-                     O rei, desgostoso, sem nada dizer, voltou para seu quarto onde se fechou. Horas depois ele foi encontrado prostrado diante de suas roupas reais, reverenciando-as.

O moço a ouvia em silêncio. Que história mais estranha... - Perguntaram-lhe então o que fazia. O rei respondeu que estava reverenciando suas roupas porque elas eram mais importantes que ele, eram mais reconhecidas que ele. Entendeu?

-  Entendi. E?...

-  E você acha que suas roupas são importantes para poder atender meu convite? E quem se importa?

Ele riu, diante da compreensão.

-  Está bem, aceito.

-  Obaaaa... - brincou ela, com sinceridade, inesperadamente para ele.

-  Mas...

-  Mas?

-  Que tal tomarmos seu café aqui fora, em meio a tantas flores bonitas?

Não gostaria que fosse entre quatro paredes tão impessoais.

-  Você me surpreende... Vou pedir o nosso café. Por favor, me espere um pouquinho.

Deu alguns passos, voltou-se com outro sorriso maravilhoso: - Acho que teremos um café sob um Ipê florido. E em minha casa... - acrescentou, como se não acreditasse realmente nisso.

Deixou-o sozinho.

Sozinho?

Nunca estaria.

Estaria sempre acompanhado por suas árvores e passarinhos e borboletas e vagalumes e estrelas cadentes e flores que descem do céu para a terra. E sonhos. Sonhos. Alados!!!

A frase de seu avô ecoou novamente em suas lembranças:

"- Se ninguém atender ao seu chamado, siga seu caminho sozinho".

Ele sorriu, amargurado. Mas consoladoramente.

-  Nunca estarei sozinho, vovô, você está sempre comigo - afirmou-se. Deu alguns passos, descobriu orquídeas, maravilhosas orquídeas floridas, miríades de orquídeas luminosas como as incontáveis estrelas do céu. Embevecido, não pressentiu a chegada de alguém, mal sentiu a pressão da mão pesada em seu ombro: um segurança.

-  Fora daqui – ordenou com voz dura.

-  Desculpe, sou amigo da senhorita.

O segurança riu, debochado.

-  A senhorita não é amiga de vagabundos. Saia agora, estou mandando.

Senão irei joga-lo lá na rua. 

-  Por que não o faz? – ouviu-se a pergunta, suave demais.

O segurança se retraiu diante da pergunta e da presença da moça que retornara despercebida.

-  Senhorita, eu estava... - começou ele.

-  Não está mais. Nunca mais. Não com meus convidados. Fora você. - Desculpe-me.

Olhou raivosamente para o moço, mas teve que obedecer a ordem.

-  Por favor, perdoe-me... - disse a moça para ele.

-  A você?... Por que o faria? Por qual motivo? Não somos responsáveis pela má educação dos outros. Talvez ele esteja num mau dia, só isso...

Ela sorriu, consternada.

-  Então além de fazedor de colares bonitos, filosofar, dizer coisas bonitas, você também é um “padre Tereza de Calcutá” que justifica quem não merece ser justificado?

-  Ah, como disse, talvez ele esteja num mau dia, só isso. Mas deixe-me ajuda-la.

A moça lhe entregou a cesta e a toalha que trouxera. Ele olhou em torno, procurando a mesa que não existia.

-  Onde... - começou.

Ela riu.

-  Que tal tomarmos o café em seu Jardim do Céu? Se bem que sua toalha é muito mais bonita que a que eu trouxe.

-  E mais apropriada para tanta gentileza sua para comigo.

Ajudou-o a estender a toalha sobre as flores no chão, as estrelas cadentes que num momento mágico haviam deixado as alturas dos céus para se precipitarem docemente.

-  Droga... - resmungou ela.

-  O que foi?

-  Nada. Bobagem. Desculpe. Sabe, acho que, de uma certa forma muito infeliz, aquele rei estava certo acerca de suas roupas. Será que é tão difícil ver uma pessoa pelo que ela é, e não pelo que ela tem?

Ele sorriu.

-  Não se preocupe com isso. Não é bem isso, mas lembrei-me de uma frase muito apropriada de Martin Luther King Jr: “Eu tenho um sonho. Sonho que um dia meus filhos serão julgados por seus atos e não pela cor de suas peles.”

-  É, existem muitas formas diferentes de Racismo...

-  É...

A moça silenciou, de repente, e abaixou os olhos.

-  Perdoe-me.

-  Pelo segurança? Esqueça isso, eu já esqueci. Não aconteceu. Nada aconteceu.

-  Não estou pedindo desculpas por ele. Estou pedindo desculpas por mim. - Mas eu lhe disse que não somos responsáveis pela má educação dos outros. Por que, você?

-  Porque eu fiz isso. Fui injusta, quando o encontrei. Eu o julguei mal. Fui preconceituosa. 

Ele riu.

-  Ah, eu não a culpo. Sabe, eu não estava trajado com minhas roupas reais.

A falha foi minha.

-  Não... perdoe-me.

-  Esqueça isso. Se foi um mau começo, este café deve estar muito bom.

E, como se fosse um atrevimento:

-  E a companhia é a melhor possível, para mim.

Ela riu, divertida, o que teve o poder de afastar as nuvens negras do céu que voltou a ser muito azul. Como as flores do Ipê roxo.

-  Bajulador...

-  Não, estou sendo sincero. De verdade.

Ajudou-a a distribuir sobre a toalha florida o que ela trouxera. - Quanta coisa boa... - murmurou ele. - Não devia ter tanto trabalho comigo.

-  Sua companhia me é preciosa - devolveu ela.

Ele riu:

-  Ah, quem está sendo bajuladora agora?

Bebericaram o café em silêncio, que ele elogiou.

-  Por favor, parabenize sua empregada. O café está ótimo.

Ela o olhou, divertida.

-  Então acha que eu mesma não seria capaz de fazer um bom café para um convidado especial?

-  Você??? Eu???

Ela riu.

-  Acha isso inconcebível? Por acaso acha que sou da realeza e que não posso descer um pouquinho de meu pedestal?

-  E você vive num pedestal? - provocou ele.

Uma sombra toldou momentaneamente sua face.

-  Bem que gostariam... mas... Diga-me, você... não sei como perguntar isso sem parecer ofensiva, mas...

-  O que quer saber?

-  Você se veste como uma pessoa simples. Mas se expressa e diz palavras que só uma pessoa instruída usaria.

-  E?...

-  O que aconteceu?

-  Comigo?

-  Consigo, espertinho.

Ele ficou compenetrado por uns momentos, como se sopesasse ser franco ou não. Decidiu-se. Seria. Ao menos, em parte.

-  Acidentes de percurso. Tenho meus fantasmas em minha vida...

-  Fantasmas? - estranhou ela.

-  Paus e pedras podem quebrar ossos, mas, se você quiser ferir alguém...

ferir de verdade... bem fundo... use palavras. 

-  Palavras...

-  Sabe, em minha vida apareceram muitas pessoas que me disseram “- Vai dar tudo certo”. Quando tudo o que eu precisava era encontrar uma só que me dissesse “Estou aqui ao seu lado, mesmo que tudo dê errado”... Sua voz foi se tornando baixinha e nostálgica. Como se, de alguma forma, estivesse com saudades de si mesmo.

Alguma coisa esvaziou o que restara de seu ser, espalhando os seus cacos. E ali, desnudado e despedaçado, ele se perguntou, até teve esperança, de que houvesse um final da história da sua vida que ele não tivesse contado para si mesmo. E nunca, para mais ninguém.

A moça compreendeu. E se condoeu.

  Dê-me todos os seus pedaços – pediu com suavidade.

  São muitos... e não tenho certeza de que algum dia voltem a se encaixar. Não vale a pena...

Ela insistiu.

  Deixe-me tentar...

Ele riu.

  O roto tentando ajudar o remendado?... Ah, desculpe, não quis ser grosseiro...

  Em minha vida muitos também foram grosseiros comigo. Mas e daí? Não importa. Como você disse, talvez estivessem tendo um dia ruim, só isso. 

Os lábios dele se retorceram num sorriso de amargura. 

  Perdoar... esquecer... – resmungou. - Às vezes é preciso que outra pessoa nos ajude a dar o primeiro passo. Isso é o que me assombra à noite. Não os mortos que encontro, mas os vivos que deixo para trás. Quando você está destruído emocionalmente, você corre. Mas nem sempre você foge de algo. Às vezes, desamparado, você corre em direção a algo.

Ela assentiu com um leve aceno.

-  Posso entender isso...

Ele a olhou com seriedade e continuou:

-  Comecei a aprender a usar qualquer coisa para afastar a dor. Já vira outras pessoas fazerem isso. Em geral alguma coisa no passado lhes causara uma ferida afetiva, e elas usavam o humor ou o sarcasmo para mascará-la. Ou qualquer outra coisa ou atitude. Para não pensar no assunto.

Ponderou, por alguns instantes.

— Achei que aprendera que quando o pior é uma possibilidade, é bom mantê-lo em perspectiva. Sem que a gente se esconda dele. Sem fugir. Ele pode acontecer. E, se e quando acontecer, é melhor ter pensado nele de antemão. Desse jeito, a pessoa não é esmigalhada quando o pior se torna realidade.

— Sei... – admitiu a moça.

– Quando se parte o coração... ele não volta simplesmente a crescer. Não é como se fosse uma cauda de lagartixa. É mais parecido com um enorme vitral que se estilhaça em milhões de pedaços, e não volta a colar. Os corações estilhaçados não se emendam nem saram. Não funcionam desse jeito. Talvez eu esteja lhe dizendo uma coisa que você já sabe. Talvez não. Só sei que, quando a metade morre, a coisa inteira permanece em dor. Por isso, você fica com o dobro da dor e metade de todo o resto. Pode passar o resto da vida tentando remendar o vitral, mas não adianta. Não há nada capaz de juntar os pedaços. Consegue entender isso?

-                     Consigo... - disse a moça, como se também vivenciasse isso, como se de alguma forma sua vida também fosse assim.

Ele sorriu. Um sorriso amargo, que fosse. Pegou um pedaço de fino cipó, começou a torcer um contra o outro. Então perguntou:

-                     Quantos fios de circunstâncias devem se entrelaçar, antes que seja tecida uma tapeçaria imaginária? Talvez já passe muito da meia-noite, da hora em que andam soltas as bruxas, quando cemitérios e seres cansados bocejam sem conseguir dormir. Eternamente acordados.

Automaticamente começou a fazer outro colar sob o olhar atento da moça. Flores e lembranças não lhe faltavam.

-                     Aparentemente o que lhe conto parece apenas assunto para uma conversa informal. Que seja. Na verdade, é a minha verdade. Verdades dolorosas, amargas, vividas, os descaminhos de um homem que se perdeu nos caminhos na vida. Que teimou em sonhar, quando já não haviam mais sonhos para serem sonhados. Que se obrigou a ter esperança, quando já não haviam mais esperanças.

Seu olhar se desfocalizou, mas ele continuou:

-                     O passado é um refúgio, o passado me abraça e me protege, estou cercado e imerso pelo passado. Num canto qualquer, a presença de uma irreal garrafa de conhaque; no rótulo verde, como se fosse uma esperança que desbota pouco a pouco, em letras tristes: “Eu curo todos os ferimentos”. E eu nem preciso beber, já vivo literalmente embriagado e atordoado por minhas lembranças que não devem ser lembradas, mas que, no entanto...

A moça o ouvia, aturdida com tanta inesperada franqueza.

-  Mais do que foram, são coisas que em alguns pontos poderiam ser as coisas que eu gostaria que tivessem sido. Às vezes é necessário, é preciso, que brinquemos de faz-de-conta. Em certas circunstâncias, é uma das muito poucas coisas que nos restam.

Suas mãos se imobilizaram, como se não soubessem de repente para onde estavam indo, o que faziam. Um suspiro profundo, e ele continuou: - Minha vida não foi, como eu esperava e precisava, um prolongamento dos contos de fada. Nas histórias, sempre o príncipe acabava casando com a princesa e o gigante mau morria. Mas na vida, na nossa vida, os gigantes maus andam soltos, vitoriosos, e não existem mais princesas nem fadas. Poderia dizer mais alguma coisa esclarecedora? Nada que já não tenha dito. Na esperança de que não seja muito tarde para você. Para mim já é muito tarde, tarde demais. Sem revolta, sem ódio, pouca amargura. Não foi culpa de ninguém, e gostaria muito de acreditar que nem mesmo muito minha. Digamos que foi a vida.

Então riu, até como forma de defesa.

-  Ah, não ligue para o que eu falo. Conto coisas para você, uma menininha, que nunca disse para ninguém. Como se você tivesse idade e experiência de vida para isso, para entender o que disso, para compreender o que digo.

-  Vivenciar - completou ela com suavidade.

-  Vivenciar... Você é uma pessoa muito sábia para sua pouca idade. Como poderia saber disso? Como poderia entender isso? Ela o olhou com uma expressão de dor que o comoveu.

-  É preciso ter muita idade para sofrer? Condição sem a qual isso não aconteceria?

-  Você??? Também???

Ela riu. Um riso quase desesperado.

-  E por que não?

Docemente ele atou a fiada de flores em seu pulso, como se fosse uma pulseira. Então segurou suas mãos e não as soltou por uns momentos.

-  Conte-me - pediu baixinho.

-  Contar... Lembrar...

-  Conte-me - repetiu.

-  A história da pobre menina rica? - perguntou ela, com amargura.

-  Se assim for. Deixe-me decidir. Por favor, conte-me.

-  Não sei se consigo...

-  É fácil. Conte-me como se não fosse com você. Conte-me como se fosse apenas uma história. Conte-me. Era uma vez...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

IV

-  Era uma vez... uma pobre menina rica. Ela tinha tudo. Tudo o que o dinheiro pudesse comprar. Mas não era feliz. E feliz era o que mais queria ser, todo o resto não tinha a menor importância. Mas, quem entenderia isso?

Parou a narrativa por um longo momento, como se não soubesse mais para onde ir. Continuou:

-  Como toda moça, tinha seus sonhos.

Olhou-o com seriedade e, com firmeza, completou:

-  Alados!!!

Ele apenas a fitava, surpreso diante do reconhecimento que, de repente, se tornara parte da história.

-  Como alguém que conheceu inesperadamente um dia, ela também gostava de coisas aladas. Passarinhos, borboletas, vagalumes, estrelas cadentes, flores que descem do céu para a terra... E sonhos. O olhar da moça se entristeceu. Mas ela se forçou a continuar: - Ela tinha uma vida bonita... mesmo que não a pudesse ver. Mesmo que não tivesse como saber. Mesmo que não a pudesse sentir. Um dia, aquela pessoa apareceu e de repente conseguiu lhe ensinar que ela devia ver o mundo com os olhos da alma e do coração. Ela, que só via o mundo em preto e branco, teve ensinada a possibilidade de vê-lo colorido. Por flores... muitas flores....

Interrompeu-se, sem conseguir ir adiante, perdida em pensamentos desencontrados e sentimentos ainda mais.

-  Bom... como toda moça, tinha seus sonhos. Como lhe contaram vezes sem conta, passava os dias esperando um garboso príncipe surgir montado num cavalo branco. Que nunca apareceu em sua vida. 

Sua voz vacilou por um momento.

-  Eles não existem mais... Se é que existiram um dia... Mas... esta pessoa que apareceu não era um príncipe garboso num cavalo branco. Era uma pessoa simples. Assim se assemelhava. Assim parecia. Mas que se revelou de uma infinita grandeza de alma e coração. Mais que um príncipe, perguntado pela pobre menina rica, ela teve como resposta que ele era um Portador de Sonhos. Um Peregrino, talvez.

Ele se sentiu comovido pelo tom desesperado na voz dela. - Aquele Portador de Sonhos teve o poder de desarmá-la de muitos cuidados que a vida lhe impusera. Ela, que esperava o príncipe garboso numa armadura brilhante num cavalo branco e que nunca encontrou, foi recompensada. A pobre menina rica sentiu-se recompensada.

Ela o olhou, com carinho inexplicável.

-  Aquele Portador de Sonhos, no curtíssimo tempo em que se conheceram, se revelou diferente dos que portavam títulos mais pomposos. Aquele Portador de Sonhos se aproximou da pobre menina rica e conversou com ela pelo que ela era, não pelo que ela tinha. E isso fez toda a diferença. Enfim chegara quem ela sempre esperara, mesmo que ela não o soubesse. Aquele Portador de Sonhos fez a coisa mais maravilhosa que alguém já lhe fizera a vida inteira: ver a vida com mais beleza. Com muito mais beleza. Antes, nada valera a pena. Mas, agora, dali em diante... Ele a ouvia, embevecido.

-  Antes, enquanto a pobre menina rica esperava, esperava, esperava, imersa num vazio estranho e desesperançado, só via o mundo com os olhos materiais. Com esses olhos só via no mundo o trabalho desleixado de um jardineiro relaxado. Folhas secas e flores agonizantes caídas no chão que deveriam ter sido removidas há muito tempo. Mas, com os olhos da alma e do coração, começou a ver como o mundo é lindo. Como ele pode ser lindo.

Calou-se por alguns momentos. Então continuou, como se falasse apenas para si própria:

-  Nunca mais conseguiria ver seus caminhos com os olhos normais. Sabia, agora,  que dali para frente só poderia vê-lo com os olhos da alma e do coração. Antes só via flores mortas caídas no chão. Agora o sabia: não são flores mortas, são flores que choveram do céu e enfeitaram a terra. E embelezaram a vida. A sua vida. Flores que viverão para sempre em seu coração. Mesmo quando já não estiverem mais aqui.

Ergueu para ele olhos desesperados, imersos numa explosão de dor. - Não são flores que caíram. Foram e são estrelas cadentes que riscaram o céu por alguns momentos e agora adornam o chão que muitos pisam sem as ver. E agora, só com a chegada daquele Portador de Sonhos, através de suas palavras lindas finalmente se deu conta que gostava de coisas aladas: passarinhos, borboletas, vagalumes, estrelas cadentes, flores que descem do céu para a terra... e sonhos. Como bem disse o Pequeno Príncipe, “Só se vê bem com o coração, o essencial é invisível aos olhos”.

Fez-se um subido silêncio. Silêncio no qual mal se ouvia o sussurrar da brisa entre as flores dos Ipês. Então ela continuou:

-  A pobre menina rica ainda tem que aprender que o amor não consiste em olhar um para o outro. Mas sim em olhar juntos na mesma direção. Mas... parece que os “príncipes garbosos” montados em cavalos brancos só querem olhar para o próprio reflexo em suas armaduras brilhantes. Como se tivessem alguma coisa para ver. Como se tivessem alguma coisa boa para mostrar. Para dividir. Se têm, eu nunca consegui ver...  nunca consegui encontrar...

Ela pareceu não se dar conta que, de repente, estava falando na primeira pessoa. Sua “Era uma vez...” deixara de ser uma simples historinha hipotética irônica para ter uma entonação sofrida, vivenciada, real.

Ele pensou confortá-la, mas respeitou seus sentimentos divididos. - É... “a gente corre o risco de chorar um pouco quando se deixa cativar” - ela como que confidenciou, reportando-se ainda no Pequeno Príncipe. -  “Num mundo que se faz cada vez mais deserto, temos sede de encontrar um amigo”. Era uma vez...

Ela se calou, ficou a olhá-lo de uma maneira estranhamente sofrida, como se antecipasse a falta que aquele estranho lhe faria quando se fosse. Foi a vez dele se socorrer n’o Pequeno Príncipe naquela empatia que se formou:

-  “Aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós”. Amigos... sim, bem o sei. “Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz”.

-  Existem amigos ainda, hoje? - perguntou ela lentamente.

-  Às vezes... às vezes eu acho que eles estão se tornando cada vez mais raros...

-  E eu?... E nós?... Nos veremos outras vezes? Outra vez?

Ele sorriu, amargurado.

-  Quem sabe? Como lhe disse, nosso mundo, que se esparrama lá fora – os montes e as árvores e o sol que bate nos telhados – é muito mais do que apenas marrom e cinza. Tem cores. Tem verdes e vermelhos e azuis intensos como os do mar. E azuis e dourados como as flores dos Ipês.

Ela completou, dolorosamente:

-  E você só precisa saber onde procurar... E ter a sorte de encontrá-los... Ele riu, até numa forma de quebrar aquele terreno perigoso no qual estavam adentrando.

-  É... 

Ela manteve os olhos fechados por um longo tempo, com medo que aquele encontro inusitado fosse apenas um sonho, apenas um sonho como tivera tantos e, sobretudo, tinha medo que fosse mesmo um sonho e houvesse um despertar.

Então ele se obrigou a dizer lentamente e com suavidade:

-  Comparou-se certa vez a vida a um cruzeiro num transatlântico de luxo. Muitos se questionavam se estavam fazendo uma boa viagem, quando o mais decente seria se perguntar se estavam sendo bons companheiros de viagem. Feliz daquele que é capaz de juntar as mãos numa prece fervorosa. Mais feliz ainda é aquele que é capaz de abri-las para ajudar o próximo.

Ela o olhou, expressão com uma dor imensa, até inconcebível.

-  E nós?... Nos veremos outras vezes? Outra vez? - repetiu.

-  Quem sabe? Se a vida for bondosa conosco... Mas agora tenho que ir. De verdade. Agradeço o café. Mais que isso: agradeço por ter me ouvido. Levantaram-se, ficaram de pé um diante do outro, sem saber bem o que fazer.

-  Espero que tenha gostado do colar - disse ele, tentando encontrar as palavras certas que só o destino saberia se.

Ela o pressionou contra o coração, sorriu e respondeu:

-  Foi o presente mais valioso que já ganhei um dia... Vou guarda-lo sempre. Nunca serão flores mortas, não são flores que caíram. Foram e são estrelas cadentes que riscaram o céu por alguns momentos e agora adornam o chão que muitos pisam sem as ver. E a minha vida. Eu as guardarei para sempre. Vou entesourar meu tesouro quando não puder mais usá-lo, quando ele se tornar frágil demais para isso. Jamais será um monte de pétalas secas que muitos pensarão assim. Sem saberem de seu significado. Voltará, um dia? Talvez eu não esteja mais aqui... Ele sorriu docemente e lhe disse com carinho, com muito carinho, até contraditoriamente:

-  Não o sei. Não são flores mortas. São apenas flores que choveram do céu e enfeitaram a terra. E embelezaram nossa vida. A minha vida. Viverão para sempre em meu coração. Mesmo quando já não estiverem mais aqui. Você se tornou assim, uma flor que me é muito preciosa. Estará sempre em meu coração. Mesmo que não nos vejamos mais. Não posso fazer promessas que não sei se vou poder cumprir. Para onde a vida me levará?

Pegou a mão dela e lhe fez um carinho desajeitado de despedida. - Não olhe para trás. Olhe para frente, sempre para frente. Olhe o tapete das nossas flores-estrelas-cadentes. Onde estivemos juntos por algum tempo. Se você olhar com jeitinho, sempre nos verá juntos nele.

E, com voz dolorida:

-  Não olhe para trás. Não me veja indo embora. Não estou indo embora, estarei sempre em seu coração se você o permitir. Olhe para frente, só para frente.

Ela fechou os olhos, sem poder e sem querer ver. Não conseguiu nem responder. Ouvindo. Ouvindo. Ouvindo.

Ouvindo a música triste das flores que choviam do céu e enfeitavam a terra.

FINAL

Agora, tempos depois, quando o nosso mundo que se esparrama lá fora – os montes e as árvores e o sol que bate nos telhados – é muito mais do que apenas marrom e cinza, quando tem cores, quando tem cores verdes e vermelhas e azuis intensos como os do mar, e azuis e dourados como as flores dos Ipês, a vida o trouxera até ali outra vez.

O portão estava fechado. Trancado.

Olha a casa também fechada ao longe, olha como num desvario o caminho orlado e ornado pelos delicados Manacás floridos, as brancas e perfumadas Murtas, os Manacás da Serra, os Jacatirões, os Ipês multicoloridos.

Flores. Só flores. 

Que não estão mais ali.

De súbito, sua vida, o que vê, se torna em preto e branco.

Mas é só um momento, só por um momento.

Força-se a ver cores.

Força-se a ver flores.

Força-se a ver seres alados: borboletas, passarinhos... e sonhos.

Um sonho.

Impossível, que fosse.

Mas um sonho.

Vê-se outra vez diante de uma moça linda.

- Seria outra flor neste jardim tão pródigo? - perguntou-se internamente, lembrando. Doendo.  Sofrendo.

Maravilhosa.

Olhos azuis.

Como as flores dos ipês azuis.

Cabelos louros.

Como as flores dos ipês amarelos.

Dentes semicerrados muito brancos.

Como as delicadas flores das Murtas.

Um traço delicado de suave batom.

Como as delicadas flores dos Manacás da Serra.

A lembrança querida faz o mundo ficar colorido outra vez, aos poucos.

Tons pastéis, que seja, mas tons coloridos.

Então vira-se e caminha para o nada sem olhar mais para trás.

Sonhos. 

Alados.

Deixa para sempre aquela casa para trás. 

Atrás de uma saudade impossível.

Atrás de uma placa de “vende-se”.

Vai embora.

Para onde?

Que importa?

Que importância tem?

Que importância pode ter?

Quem o vê ao longe, agora, caminhando lentamente, vê apenas um homem.

Seguindo de mãos dadas com o Nada.

 

Era uma vez...

***

 

 

 

 

O Autor

Ex-policial civil com um passado violento, mas que não se embruteceu com a vida. 

 

 

fernandocoimbrasantos@gmail.com

 

 

 

 

Dedicatória

Dedico este livrinho a todos que amam seres alados: passarinhos, borboletas, estrelas cadentes. E sonhos.

 

***



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