"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".
(final)
VI
É, eu estava extremamente cansado das imagens em minha mente. Agora, deitado na areia branca da praia, era possível ver, através das folhagens densas dos arvoredos, as estrelas frias que se estendiam por sobre o oceano.
O luar projeta um infinito quadrado de luz prateada-dourada nas águas quase imóveis, e eu acreditava que, caso me concentrasse o suficiente, com bastante afinco, conseguiria fazer o sol surgir naquele espaço e despachar os monstros que me atormentavam à noite. Era a minha força de vontade inconsequente contra a noite que se tornara a minha vida.
E eu procurava manter aquele instante em suspenso, de modo a permitir que minha ilusão se prolongasse. Mas agora até isso não passava de uma lembrança.
A ilusão se esvai e imediatamente volto a ser um menininho, confuso com meus próprios atos. Deixo cair os ombros, enterro o queixo no peito e abraço seus joelhos, escondendo-me de mim mesmo, do que eu me tornara. Um breve sorriso brota em meu rosto, apesar da dorzinha insistente no fundo da minha alma.
Um menino, um menino, apenas um menininho perdido. Um menininho sempre fora de alcance, sempre rodopiando para longe, como uma pipa levada pelo vento.
É, não tenha tanta certeza sobre as coisas que você não pode ver.
Maya. Tudo é ilusão. Será mesmo?
Como naquelas poucas e tão curtas reuniões em que nos encontrávamos – às vezes – em alguns finais de ano. Nunca mais em nosso Ubatuba.
A última lembrança desembrulhada, ou muitas vezes, mesmo antes disso, parecia que todos se retraíam inconfessadamente arrependidos de terem se permitido mergulhar tão fundo nas lembranças, trazendo à tona dores que pareciam esquecidas e que, no entanto...
No momento seguinte, sob um pretexto ou outro, todos nos afastávamos
para um refúgio interior, e em pouco tempo a felicidade das recordações partilhadas não passava de lembranças que pareciam não ter ocorrido.
Então chegava a hora de ir embora, a despeito de tantas lembranças incompletas e assuntos que nunca se fechariam na exatidão da saudade.
Como se eu fosse um apresentador equivocado, eu mostraria com um gesto incompreensível e irreal a cena que ficara inacabada lá atrás e todos se esforçariam para ver o que lhes havia sido prometido.
Mas já havíamos passado a época de promessas, mesmo que não soubéssemos disso, mesmo que não nos déssemos conta disso.
Eu talvez esperasse que acontecesse alguma coisa como um caleidoscópio de lembranças, no qual os fragmentos de imagens se revelassem de uma clareza enfim encontrada que pudesse de alguma maneira trazer um sentido, uma explicação, uma justificativa, a tudo o que de bom e de ruim nos acontecera.
Mas estas imagens nunca se uniam, nunca se combinavam, e então logo todos me acenariam um adeus que significava adeus-não-até-breve. E eu iria embora.
Nunca o estaria indo, de verdade. Mas iria. De alguma forma.
É, mesmo que eu não o demonstrasse atrás do sorriso falso, eu ficava perturbado por não conseguir fazer com que me entendessem realmente. Ou quando, inevitavelmente, achava que os outros não acreditavam em mim.
Ficava estarrecido, sentindo como o mundo estava frio e vazio lá fora.
Mas, sabe, eu tinha que ir embora. Mesmo não o querendo eu tinha que ir embora.
Então eu parava de contar as maravilhosas histórias da carochinha que contava para mim mesmo, buzinava um adeus rápido e virava meu olhar para a frente, bem para a frente, o olhar que afundava numa profundeza impenetrável, irretornável.
Mas eu tinha que ir. E eu ia.
E tão rapidamente como eu me havia escondido por trás daquele véu, meu olhar voltava para o que eu chamava de normalidade. Sentindo uma onde de infelicidade crescer dentro de mim.
- Chegando em casa, vou tomar um remédio para dormir – eu me prometia. - Talvez sonhar.
Sonhar? Mas era querer demais, não era mesmo?
- Eu voltarei logo – eu me prometia, me iludia.
Mas minha promessa, minha ilusão, logo se transformava em algo imaginário, talvez irrealizável.
E o que quer que me acontecesse ao longo daquela rodovia que me levava mais uma vez para longe, eu sentia que sempre estaria rodando por estradas que só me levavam ao inferno onde nascem os pesadelos.
Para se livrar de si mesma a pessoa precisa abandonar seus medos e ressentimentos, não é mesmo?
É, eu observava a maneira como eu olhava para mim mesmo, de um jeito frio, como se tivesse feito algo de errado que nunca poderia ser perdoado.
Eu, que simplesmente me propusera ser feliz. Só isso.
- Mas é querer demais, não é mesmo? – eu me perguntava, infinitas vezes sem conta.
Então me esforcei para não revelar mais o meu desgosto.
Porque eu sentia mesmo saudades do lugar que ficara perdido em algum lugar impreciso do passado, do meu passado, como uma pessoa que recorda a casa de sua infância olhando-a através da lente filtrante dos olhos sentimentais.
Sei, tantas coisas se foram, o que aconteceu, aconteceu. Ficar nutrindo estas impossibilidades, descontar tudo nos outros como poucas vezes fazia, em mim mesmo, tudo aquilo era simplesmente um desperdício de tempo.
Mais cedo ou mais tarde eu precisava parar de ter tanta esperança, tanta expectativa que, desta vez, as coisas aconteceriam como devem ser.
É, mais cedo ou mais tarde, eu precisaria parar de viver a vida ao avesso.
Sei, sou diferente. Uma daquelas pessoas aparentemente simples, mas realmente complexas. Totalmente complexas e, às vezes, quase sempre, indecifrável.
Sei, sou diferente. Quieto demais. O que significa que, quando implodo...
- Existem perguntas – eu disse finalmente, falando comigo mesmo – que não faço nem a mim próprio. – Respostas?...
Por isso eu estivera olhando aquele álbum velho cheio de fotografias velhas, buscando avidamente os resquícios de minha infância em fotos que, às vezes, ganhavam vida, tornavam-se memórias de uma família, antes da vida acontecer e a destruir.
Porque para cada ganho aparente vem uma real perda indiscutível. E, em alguns dias, você precisa chorar por suas perdas, elas não podem ter acontecido em vão.
Mas eis que na distância a estrada sem fim é pouco a pouco substituída por uma praia sem fim.
O mar – quase sem ondas - quebra mansamente na areia branca. Onde estão três pequenas crianças.
O mais velho cava aos poucos uma pequena poça de onde retira a areia mais escura do fundo do mar.
De seus dedos pequenos escorrem água e areia, que sobrepostas desajeitadamente, também aos poucos começam a dar forma a um castelo, um lindo castelinho de areia.
Sabe, é um trabalho de paciência. Porque, além de ser pacientemente elaborado, construído aos poucos, de vez em quando o próprio peso, ou uma onda desavisada, acaba derrubando parte dele.
E é preciso então reparar os estragos, para que ele ganhe altura.
Ou é preciso, então, começar tudo de novo.
Até chegar a um castelinho lindo, um só, ou que muitas vezes se vê cercado de outros.
Sei – você me diria - castelinhos de areia.
Não, não são só castelinhos de areia.
Porque, além de terem feito parte de muitas vidas, mesmo que depois levados pelas marés de volta para o fundo do mar, ainda são lembranças de uma infância possivelmente feliz, como saber?
Porque, agora, só agora, eu me dou conta – talvez tardiamente, ainda que tardiamente – de que isso também possa ter sido um simbolismo.
Um simbolismo revelador – naquela época - do que seria a vida.
Ou do que é a vida, sem os nossos sonhos.
Porque agora, só agora, eu me dou conta das analogias que explicam e me entristecem tanto.
Castelinhos de areia.
Castelinhos de sonhos.
Castelos que desabam parcialmente.
Sonhos que acabam parcialmente.
Castelos que desabam totalmente.
Sonhos que acabam totalmente.
Castelos em lembranças.
Sonhos em lembranças.
Castelos danificados pelas ondas do mar.
Sonhos danificados pelas ondas da vida.
Castelos sendo refeitos.
Sonhos tentados serem refeitos.
Castelos deixados para trás.
Sonhos deixados para trás.
É...
Castelinhos de areia que abrigariam nossos sonhos, e no entanto...
Como se fosse só uma tarde na praia da nossa vida, quando tudo poderia ser uma alegria que se estenderia para todo o sempre.
Sei, esta história poderia ter sido contada diferente.
Como se fosse um conto de fadas, o princípio seria o era-uma-vez.
Mas é aí que os recursos literários começam a fazer falta.
Porque não é uma simples história, produto da fantasia.
É uma história real.
Dela escorre sangue. O nosso sangue.
Mesmo que em forma de castelinhos de areia deixados involuntariamente um dia para trás.
Como se tivéssemos escolha, não é mesmo?
FINAL
Agora, novamente, vejo-me sozinho diante da porta fechada de uma casinha de pau-a-pique coberta com sapê, lá no alto de uma grande pedra, a casinha abraçada e abrigada por infinitas árvores, destacada por um céu eternamente azul. Mesmo que se faça noite em minha vida, em nossas vidas.
Vejo outra vez meus pezinhos procurando com cautela as pequenas pedras que serviam de degraus desencontrados que me levassem até ela, que me levavam até ela, que me levaram tantas vezes até ela.
Mas agora, incompreensivelmente, a porta está aberta, como se me esperasse, como se me convidasse a entrar, como se me dissesse entre-você-é-bem-vindo, entre-fique-aqui-é-o-seu-lugar.
Paro na soleira da porta e olho para o interior daquela casinha, olho para meu próprio interior.
Vejo uma pequena mesa de madeira rústica, bancos rústicos, a pequena toalha florida, a pequenina lamparina de querosene.
Dou alguns passos, adentro uma saleta onde me acena com lembranças o moedor de cana. A seu lado, junto à porta divisória, um aparador com outra toalhinha alegre estampada de flores, uma moringa de barro com água sempre fresca, a grande caneca de alumínio.
Mais à frente, edificado sobre o chão de terra batida de toda a casa, o fogão à lenha. Meus olhos sobem e encontram o esfumaçado no alto, o esfumaçado contínuo provocado pela eterna queima de lenha, por todos os sonhos nossos que foram sonhados ali. Que viraram cinzas ali.
Agora parado, como se não soubesse mais para onde ir, vejo-me com uma pequena caneca de ágata nas mãos, um pouco de café do terreiro, café adoçado com garapa, sabor de uma infância longínqua que não volta mais.
Volto-me para a pequena cozinha emoldurada por paredes de pau-a-pique, desta vez vejo mamãe diante do fogão onde ela frigia as incertezas, dourava as esperanças, enchia nossas vidas de fantasia.
Como aprendera a fazer com o exemplo de vida e os ensinamentos de vovó Maria da Graça.
Outra Maria.
Esta, a minha mãe, a nossa mãe, a Maria do Rosário.
Vovô João. João de Deus.
Como se todos estivessem de mãos dadas com Deus, à espera de que alguma coisa maravilhosa acontecesse e mudasse a vida de todos eles, de todos nós.
Mas eles estavam apenas sendo amparados, apenas sendo consolados, nada iria mudar. Como não mudou.
Não em termos terrestres, não no que achamos ser esta vida às vezes tão madrasta e tão dura, tão sem sentido.
Uma lua grande e dourada subiu aos céus. Como os quadros que agora não consigo ver mais na parede da sala escura, lá fora a lua grande e dourada subiu aos céus e está emoldurada por estrelas, incontáveis estrelas, infinitas estrelas.
A lamparina está acesa, da chama pálida desprende-se um fiapo de fumaça escura que busca o céu, mas encontra a palha do sapê que se enegrece pouco a pouco, como se quisesse ficar eternamente entre nós e não perdida e diluída num céu sem limites como se tornaram nossas lembranças.
Como nossos sonhos, que precisavam ir tão longe, mas...
Na mesa de madeira, sentadas tristemente diante de pequenos pratos vazios, três crianças sonham com o que comer. Enquanto um adulto não sabe bem o que fazer para remediar toda aquela desgraça.
Então, como se fosse um raio de luz muito brilhante que adentra inexplicavelmente a pequena cozinha, a lenha começa a crepitar alegremente no fogãozinho tão grande que tem tão pouco a nos oferecer.
Mamãe começa a sorrir e – de certa forma – nos pega pelas mãos, começamos a brincar de roda, ela diz que está nos levando para um mundo mágico e mais feliz, onde as crianças sorriem e os adultos não choram escondidos pelos cantos, mesmo que nunca deixem suas lágrimas serem vistas.
Na pequena panela de alumínio um pouco de arroz, o que sobrou de ontem, o que foi economizado de ontem, da fome da ontem que se estendeu para hoje e para a sobremesa do amanhã.
Então, um único ovo é partido e a banha chia também alegremente na frigideira de ferro, como se entoasse mais uma cantiga de roda, da roda de nossa vida. Temperado com uma pitada generosa de não-faz-mal.
Sei, é impossível, mas juro que um aroma inebriante e inesquecível sobe daquela frigideira. Juro.
E então o único ovo frito, com gema mole, é delicadamente colocado sobre o resto de arroz branco temperado com lágrimas, com tantas lágrimas, lágrimas que se tornarão futuramente uma doce e triste lembrança de um tempo que se foi e não voltará mais, nunca mais.
Sob a expectativa das três crianças, expectativa que faz com que a fome seja esquecida por alguns momentos, aquela mulher mágica nos leva agora para um mundo mais feliz.
Sob nosso olhar atento, o ovo é esmagado cuidadosamente com o arroz branco, que aos poucos se torna dourado como a vida de cada um de nós deveria ser.
Sob o sorriso lindo e amoroso e também faminto de mamãe, ela nos serve o que chamou de arroz amarelinho. E nós, as três crianças, comemos com prazer e apetite aquele prato tão simples e ao mesmo tempo incrivelmente, indescritivelmente, elaborado por sua fantasia.
E comemos o arroz amarelinho com aquela-vontade-de-quero-mais.
Mesmo que mamãe não coma quase nada, mesmo que não tenhamos consciência disso em nossa tão pouca idade, de certa forma o alimento se multiplica como o episódio bíblico da multiplicação dos pães e dos peixes.
Mesmo que não haja pão.
Mesmo que não haja peixe.
Mesmo que...
E, juro, iguais aos pedaços de mandioca com suas crostas douradas que vovó nos fritava, nos parecia não haver nada mais gostoso em todo o mundo. Juro. Juro. Juro...
E não havia, não havia.
Como não há até hoje.
Vejo-me agora sozinho diante de uma mesa que não existe mais numa casinha de pau-a-pique coberta de sapê que também não existe mais.
Pego em minha mente torturada uma segunda xícara e sirvo um café para uma tardia e tão procurada visitante: a Esperança.
Ela veio apropriadamente sozinha, não trouxe com ela nossos sonhos batidos.
Tomamos o café em silêncio, partilhando aquele silêncio pleno de gritos de sofrimento, de indagações, de porquês, sem coragem de olhar um para o outro.
Então uma cigarra retardatária começa a cantar lá fora e o encantamento se quebra, talvez para nunca mais voltar.
Uma grande borboleta azul revoluteia por algum tempo e depois também desaparece, como se me acenando um adeus amargo.
Deparo-me sozinho, segurando duas pequenas xícaras de ágata vazias.
Depois de um momento de indecisão, no qual eu não sabia bem o que fazer, enfim respiro fundo.
E as coloco dentro da pia da saudade com muito cuidado, como se fossem muito frágeis, frágeis como as tentativas de meus absurdos.
***
DEDICATÓRIA
Dedico este livrinho a todas as pessoas de minha família que me ajudaram a levantar castelinhos de areia. E a me lembrar deles com infinita saudade.
E que, por isso mesmo, por mais que doa, fizeram e fazem a vida, a nossa vida, ter valido a pena.