"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".
(continuação)
V
Durante o fim de semana papai tinha perdido deliberadamente umas dez mil partidas do joguinho, bancado o cavalinho inúmeras vezes, e – e esse foi seu principal erro – deixado a filhinha caçula encher seus cabelos de grampos.
Que ele tinha se esquecido de tirar quando chegou uma visita inesperada.
O destino não é gentil com os descuidados.
E assim, em um golpe de recordação tão ardente que ele poderia estar ainda conosco, ali estava meu pai. Cabelos ainda não grisalhos cheios de grampos, óculos de armação pesada, a camisa branca de algodão, mangas compridas mas sempre dobradas acima dos cotovelos, uma xícara de café em uma das mãos e um olhar divertido no rosto.
Ele tinha a rara e sincera qualidade de ser capaz de rir de si mesmo. E nos ensinava isso, mesmo que não se desse conta de que o fazia.
Mas naquele momento, olhando para nós, ele deve ter percebido que nossos silenciosos avisos incompreensíveis não eram simples. Que havia algo muito importante por trás dele.
Seguiu-se um momento de completo silêncio.
Até que o entendimento surgiu.
E ele riu.
De si próprio.
Uma risada gostosa, do fundo da alma.
Nosso pai tinha sido nosso pai, mas também nosso amigo, e um cúmplice
quando se tratava de coisas desse tipo.
Não tirou os grampos.
Não se desculpou.
Não se explicou.
A visita que pensasse o que quisesse.
Importante? O que era importante?
Importante era a felicidade da pequenina.
Importante era brincar e fazê-la feliz, nos fazer felizes a todos.
Mas a vida decidiu participar também.
E nos fez uma brincadeira de extremo e irreversível mau gosto.
Então o mundo começou a se entristecer. Os céus racharam e choveu e choveu e choveu. Foi um mau momento. Eterno.
Quando você ficar mais velho verá que não existe momento ruim ou bom para as coisas, mesmo que as aparências digam o contrário.
Existe apenas o momento.
Alguém, tentando nos consolar, disse que um dia aquela dor passaria, que ela iria se atenuando aos poucos. Que o tempo cura tudo. Mas o tempo não cura nada, o tempo só faz a saudade aumentar e nos consumir cada vez mais.
- Talvez daqui a uns cinquenta anos? – pensei, desconsoladamente.
Mas, no próprio instante em que ouvia aquelas coisas, tive a aterradora certeza de que não desejaria viver cinquenta anos a mais.
Não àquele preço.
Sem papai não estaríamos simplesmente sozinhos: simplesmente não seríamos nunca mais nós mesmos.
Parecia que havíamos de repente sido atirados para outro mundo, mais selvagem, de onde os demais seres humanos haviam sido completamente
excluídos.
Ainda assim, de vez em quando um sorriso um pouco triste (por mais que eu o disfarce) vem de dentro de mim e sobe à superfície.
Um sorriso que me faz parecer muito melhor do que realmente sou.
Porque eu queria poder reescrever completamente a história do passado difícil de uma família.
A nossa.
Como se isso fosse possível.
Tornei-me a metade de um quebra-cabeça de duas peças.
“— Eu sei que vocês merecem coisa melhor, e eu quero ser melhor. Quero ser isso para vocês.”
É o que eu diria para minha família.
Se conseguisse.
Se pudesse.
VI
Caminhei até o automóvel. Era o carro de papai.
Um moderno Volkswagem 1300 vermelho ano 1967, substituindo o obsoleto Chevrolet 1951. Que era verde.
Verde esperança?
Ironia...
Eu o usava agora, mas o porta-luvas estava cheio de coisas que eu não tinha ânimo para tirar de lá: uma caixa de fósforos quase vazia, uma cartela amassada de Melhoral, um jornal com um jogo de palavras cruzadas feito pela metade com a letra do meu pai, um...
Mas era preciso seguir em frente, mesmo que não soubéssemos como fazer isso.
E principalmente: se o conseguiríamos.
Mas lhe devíamos isso, não era uma simples questão entre tentar ou desistir, não tínhamos o benefício da escolha, não tínhamos alternativa.
Porque a vida de papai não foi sobre desaparecimentos. O exemplo da vida dele trabalhou contra isso.
Em cada um de nós, uma vida inteira na qual faríamos o impossível para
esquecer tudo.
Tudo, exceto ele.
Porque ele merecia ser lembrado.
Para sempre.
Mas todo dia, no almoço, no jantar, quando víamos sua cadeira vazia na cabeceira da mesa, sua falta tão presente nos fazia sentir um vazio que não revelávamos para ninguém.
Como se fosse possível.
Como se fosse preciso.
“- Isso não é para nós, não é para mim.” - pensei tantas vezes.
Mas nosso mundo havia mudado.
E nós também.
Mas uma vida tão curta com papai nos ensinou que o amor vale a pena.
Por mais que doa.
Porque, de seu jeito tão simples e ao mesmo temo tão profundo, ele sempre tinha um jeitinho indireto de nos transmitir suas verdades.
- Filho...
Forcei-me a erguer meu rosto para ele.
- Sim, papai?
Atraiu-me para um abraço, colocou depois a mão em meu ombro, olhou-me direto nos olhos, na alma, e completou:
- Filho, as pessoas quebradas só precisam juntar de novo seus pedaços...
- Como o senhor sabe disso, papai?...
- Como eu sei? Pelo jeito como você se importa com as pessoas.
- E...
- E quando você rir... eu quero sorrir. E quando você chorar... – afastou as
lágrimas do meu rosto – quero que suas lágrimas rolem também pelas minhas faces.
É... a esperança ajuda muito a manter a pessoa viva.
Mas, se ela não estiver conosco, receio, talvez nossa vida acabe ainda mais depressa.
Tem coisas de que não devemos nos lembrar,
Mas, e se não quisermos deixar de lembrar?
Ou se não pudermos esquecê-las?
VII
Era o tipo de coisa com que muitas pessoas nunca tiveram que se dar conta, nunca tiveram que se preocupar.
Mas eu me preocupava — nós nos preocupávamos —, porque sabíamos que ter paredes e um teto sobre a cabeça não era sinônimo de segurança.
Às vezes podia ser o lugar mais perigoso de todos.
Porque era ali que tudo acontecia.
As coisas boas.
E as coisas ruins.
Como quando a doença chegou. Era ali que papai estava. Conosco.
Mas, até quando?
Ele não podia dirigir mais, elegi-me seu motorista.
Viajávamos quilômetros sem fim (e ao mesmo tempo tão curtos, para nós que corríamos contra o tempo) em busca da casca do Ipê roxo.
Que diziam ser uma esperança para a cura do câncer.
Infelizmente que se revelou no que realmente era: uma esperança.
Só uma esperança.
À beira da estrada, às vezes, encontrávamos um Ipê roxo florido.
Flores roxas, tristes, que balouçavam sob a brisa fraca como se acenassem um adeus que eu me recusava a ver, mas não podia deixar de sentir.
Retirava delicadamente um pouco da casca, desculpando-me à árvore, não queria magoá-la, mas era preciso.
Deus, como era.
Nessas viagens conversávamos muito.
E o mundo inteiro parecia perfeito.
De certa forma, não havia doença.
De certa forma não havia diferença de idades.
De certa forma não éramos mais pai e filho.
Éramos muito mais que isso: éramos dois amigos.
E ele me falava da vida.
O que ela era, o que ela havia sido.
E principalmente: o que ela poderia ser.
Poderia?
Deveria.
Muitas vezes ele falava talvez por metáforas, mas sempre intuitivas, sempre compreensíveis. Mensagens que me iam direto à alma e ao coração.
- Você tem um cigarro? – perguntou-me.
- Estou tentando parar de fumar, papai... – brinquei com um sorriso.
- Eu também – respondeu. – Mas queria ter alguma coisa nas mãos agora.
Olhei-o rapidamente, mas sem tirar a atenção da estrada.
- Mas o senhor tem uma coisa agora nas mãos, papai.
- Eu? – perguntou, desconcertado.
- Eu! – respondi-lhe com sinceridade.
A compreensão do alcance do que eu queria dizer o atingiu e ele riu outra vez.
- Assim não vale, chefe...
Chefe.
Como me chamava.
Papai respira fundo. Depois estende a mão e a apoia em meu ombro.
A palma de sua mão está magra demais, com um arrepio incontido posso sentir o tremor que a consome.
Mas o carinho com que ele me faz isso deixa claro que ele é um homem especial, um homem raro, um homem de coração.
Eu não sabia exatamente o que era, mas alguma coisa naquele simples gesto de carinho parecia diferente dos anteriores.
Algo nele parecia um pouco mais triste.
Como se ele estivesse se dando conta que seu tempo entre nós estava terminando.
E que ele não queria (nem iria) falar a respeito.
Aquilo se juntou às minhas inúmeras cicatrizes que eu já trazia na alma. As minhas próprias.
Havia muitas outras cicatrizes também, mas que não eram tão visíveis. Aquelas que papai nem chegou a saber que eu trazia, mas me ajudou a curar.
Olho para ele com carinho, cuidando para que meu sofrimento não transpareça.
Dói-me demais vê-lo daquele jeito, meio como se a luz estivesse sumindo de dentro dele.
Uma oração secreta para que Deus o salve. Mais uma oração inútil que se juntou a tantas infinitas outras.
Até o dia aterrador de enfrentar a minha verdade mais dolorosa e mais difícil: pedir a Deus não que o cure, mas que faça o que for melhor para ele.
E dali a alguns poucos dias Deus estende Suas mãos e o leva para Seu reino.
Tenho então que enfrentar a dura realidade da minha súplica atendida.
(continua)