"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".
INTRÓITO
É para aqui que eu volto. Quando volto. Quando posso voltar. Quando consigo voltar.
Para o lugar em que minha alma se torna um piano, só de teclas brancas, sem os sustenidos e os bemóis.
Quando todo mundo sabe que, para tocar, precisamos também de teclas pretas, muitas teclas pretas.
É por isso que algumas poucas vezes eu volto.
É por isso que algumas poucas vezes eu tenho que voltar.
Para encontrar essas teclas pretas.
I
A ferrovia, naquela cidadezinha do interior, inevitavelmente passava dentro dela, dividindo-a em duas.
A estação e o pontilhão eram os marcos divisórios entre a “cidade baixa” (a de uma presunçosa e discutível elite) e a “cidade alta” (a de uma alegada discutível pobreza), onde ele morara quando criança.
Bem mais ao longe outro marco divisório: o viaduto sobre a linha férrea.
Muitas vezes ele parava a bicicleta no ponto mais alto, ficava olhando a cidade que se perdia até onde a vista alcançava. Então olhava para baixo, quase que como magnetizado, os trilhos convergindo para um ponto no infinito.
Lembrava-se sempre da frase do querido pai, as explicações matemáticas que sempre o obrigavam a pensar:
“ – As linhas paralelas se encontram no infinito”.
Ele questionava:
“ – Mas, pai, o professor disse que linhas paralelas nunca se encontram...
O pai traçava então duas linhas paralelas numa folha em branco. Marcava um ponto na de baixo, riscava uma perpendicular alcançando a outra. Depois traçava uma reta mais inclinada, e outra, e outra, a perpendicular cada vez mais se aproximando mais e mais da reta de baixo.
O entendimento começou a surgir na mente do garoto.
“ – Entendi. Vai chegar uma hora em que a reta inclinada estará na linha de baixo, e também na reta de cima... elas se encontraram no infinito...”
O sorriso bondoso do pai era sua recompensa.
“ – As linhas paralelas se encontram no infinito”.
Bem que parecia, era só olhar para longe, acompanhando o traçado da via férrea.
Mas não era só isso que aquele então garoto via.
Também inevitável era ver – naqueles dormentes – as teclas brancas de um piano. Um interminável piano.
Mas, onde estariam os sustenidos e bemóis, as teclas pretas que literalmente faziam uma música, a mesma música (se convenientemente tocada), ser sentida alegre ou triste?
Depois, muito depois, agora homem feito, retornara àquela cidadezinha que não reconheceu mais como a de sua infância, tudo mudara.
Pelo menos a ferrovia (desativada) ainda tinha a estação e o pontilhão, como se fossem os derradeiros marcos de duas coisas chamadas lembranças e saudades. Temperadas com amargura.
Numa estrada que só agora conhecia deparou-se com outro viaduto.
Lá embaixo, a cerca de trinta metros de profundidade, as duas linhas férreas se encontravam no infinito.
Parou o carro no acostamento, caminhou pela estrada deserta (como sua vida) até o viaduto.
Teve que sorrir quando se flagrou deixando cair uma pedrinha no quase abismo. Flagrou-se também contando os segundos até ouvir o som da pedrinha se chocando possivelmente contra um dormente:
“ – Dois mil e um, dois mil e dois, dois mil e...”
Lembrou-se da fórmula de Galileu Galilei que fundamentava a chamada Queda Livre. O cálculo foi fácil, comprovou os dois segundos e meio.
Foi inevitável lembrar-se incoerentemente de outra explicação do pai:
“ – O som é preguiçoso. Olhe um lenhador ao longe. Quando você ouvir o som do machado contra a lenha, o machado já estará erguido acima da cabeça dele”.
Uma súbita nostalgia tomou conta de sua alma e coração, olhou o céu muito azul, murmurou para si mesmo:
“ – É, papai... só não aprendi como ser feliz...”.
A dolorosa realidade se completou: nem o pai o conseguira ser.
“ – Coisas da vida... – recriminou-se inutilmente.
Nada que consolasse.
Deu uma última olhada para a via férrea, foi lentamente até o carro, deu a partida.
“ – As linhas paralelas se encontram no infinito”.
II
Muitos anos se passaram.
Mas, agora, ele estava à procura daquele segundo viaduto, ansioso, como se necessitado inabalavelmente de ter que atirar outra pedra no abismo e contar os segundos até sua queda chegar ao fim.
Aproximou-se dirigindo lentamente na estrada deserta, raros veículos transitavam por ela.
Surpreendeu-se com uma inesperada constatação: uma moça estava sentada na mureta, precariamente suspensa sobre o abismo.
Passou lentamente, parou metros adiante, desceu, caminhou mais vagarosamente ainda, temendo que de sua aproximação decorresse um desfecho fatal. Só então a moça pareceu se dar conta de sua presença.
Ele viu quando o corpo dela se crispou, prenunciando uma decisão infeliz e irrevogável. Seus olhares se encontraram, ele se imobilizou, por um momento teve a sensação de que – ao menos por enquanto – ela não se precipitaria.
Respirou fundo, tentando se acalmar, tentando fazer com que sua voz soasse calma, aparentando uma calma que não existia.
– Moça, podemos conversar um pouco?
Ela o olhou consternada, olhos opacos que ele adivinhou toldados por uma amargura sem limites.
– Não se aproxime... – impôs ela.
– Não, não vou me aproximar. A menos que você queira. A menos que você deixe. Como chegou até aqui?
Ela riu, um riso inesperado e insano.
– Já ouviu falar em ônibus, seu idiota?
Foi a vez dele tentar rir, como se aquilo pudesse trazer uma normalidade à situação, como se assim pudesse ganhar a confiança dela e se aproximar mais. Então... talvez...
– Claro... a cidade está muito longe para que você viesse à pé... O que está fazendo aqui?
Mordeu os lábios, diante do alcance da pergunta extremamente cretina que fizera. A moça riu desvairadamente outra vez.
– Estou apreciando a paisagem, idiota. Vá embora, você está atrapalhando, você não tem nada que fazer aqui.
Ele ensaiou dar mais alguns passos.
– Não se aproxime... – repetiu ela. – Se você se aproximar mais, eu me jogo...
Ele se imobilizou. Ergueu lentamente uma das mãos, um misto de súplica e oração.
– Por favor... deixe-me apenas sentar próximo de você... Podemos conversar um pouco?
– Não passe daí... – ordenou ela. Riu ensandecida, mais uma vez, uma risada horrenda que se lhe pareceu interminável, uma risada desesperada.
– Cuidado... aqui é muito alto... vou me sentar também na mureta...
Ela o olhou, inesperadamente desafiadora, riu mais juma vez. Mas ele viu lágrimas brilhando em seus olhos, lágrimas que continuavam a lhe escorrer pelo rosto, Mas sua voz estava calma, de uma maneira sinistra.
– Qual é a sua, idiota? Também tem coragem para ver a paisagem daqui de cima? Vá embora... você não tem nada que fazer aqui...
Ele olhou a via férrea trinta metros lá embaixo. Então, depois de um momento de silêncio, disse-lhe como se confidenciasse um grande segredo que guardava zelosamente a sete chaves:
– Em toda a minha vida eu nunca consegui ver só uma linha férrea... os dormentes sempre me pareceram mais o teclado de um piano... um teclado só de teclas brancas...
Ela titubeou.
– Como é que é?... – perguntou, incrédula.
Ele estendeu o braço, como se dedilhasse aquele piano que se estendia interminável.
– As retas paralelas se encontram no infinito – completou, incoerente.
A moça o olhou com mais atenção.
– Você é maluco, é? Que história mais estranha...
Ele continuou a olhar para a via férrea onde só via um piano de teclas brancas, para as oscilantes correntes de luz que ressaltavam os dormentes que eram as teclas brancas e a ausência das teclas pretas de seus bemóis e sustenidos. E pediu a Deus que, de um modo ou de outro, antes que fosse tarde demais, todos nós encontrássemos o caminho de volta para casa.
Pessoalmente considerava a religião um monte de bobagens, mas
quando uma criancinha está se debulhando em lágrimas, querendo saber o que aconteceu com seu amiguinho de estimação, conseguia desenvolver uma crença instantânea em qualquer coisa que dissolvesse parte da dor daquele rostinho.
E era o que precisava naquele momento. Descobrir uma crença, uma forma, de afastar a moça daquilo que ela pretendia, intuía. Talvez, se a salvasse, talvez conseguisse se salvar um pouquinho também. Algumas coisas na vida não dá para a gente escolher, bem o sabia.
O mar ficava a várias horas e quilômetros de distância dali e não se podia escutá-lo, mas mesmo assim ele imaginava que o ouvia. Talvez ele o estivesse tocando em sua alma, em seu piano imaginário que nada mais era que uma linha férrea impessoal e sem sentimentos, insensível.
Pareceu alhear-se, pareceu esquecer da moça, pareceu esquecer de si próprio.
Ela permanecia imóvel. As mãos estavam entrelaçadas sobre o colo: uma
rainha de um conto de fadas abandonada em sua torre para chorar a perda de sua princesa levada pela bruxa malvada.
Por sua vez ele fica passando as mãos intermináveis vezes no próprio rosto, como se estivesse procurando alguma ferida, mas sabendo que nunca a iria encontrar, suas feridas eram muito mais profundas.
Voltou os olhos para ela, como se relutando com o que fazia. Então lhe disse incoerentemente com toda a suavidade de que foi capaz:
– O nosso mundo se espalha para todo lado. Os montes e as árvores e o sol que bate nos telhados são muito mais do que apenas marrom e cinza. Tem cores, tem verdes e vermelhos, tem azuis intensos como os do mar. Você só precisa saber onde procurar...
– Não o entendo... – admitiu ela. - Será que eu flutuei até um mundo diferente, mais gentil? – pensou.
Olhou-o com mais atenção, viu quando uma covinha na bochecha
direita dele se formou, e foi como ser recompensada. Seus olhos se
encontraram por um momento, e ela incredulamente deu-se conta que não queria mais que ele fosse embora.
Ela não sabia que ele sempre achara que teria que assumir pela vida afora, vezes sem conta, o papel do cavaleiro de armadura brilhante. Mas ele estava errado, ele era apenas um mártir, sempre o seria.
Ele aprendera que estranhos podem ser tolerantes e gentis. Aprendeu que aqueles que estão sempre ajudando os outros, se ajudam por último.
É isso que ele fazia. Quebrava-se. Morria um pouco de cada vez. Mas não desistia, isso era mais forte do que ele.
Há agonias que servem para algo. A de Cristo, por exemplo. A dele não servia para nada. Tornara-se um especialista em ocultar seu verdadeiro ser, passou a sofrer de um terrível senso de inutilidade.
Porque, sempre que possível, os seres humanos erram para o lado da esperança.
“– Deus te abençoe, pai – pensou ele, mas sem externar isso em palavras. – Sempre pensei que você era uma lenda e, afinal, você realmente foi uma lenda. De verdade.
Lembrou-se inexplicavelmente de uma das frases de Caio Fernando de Abreu: “ – De vez em quando eu vou ficar esperando você numa tarde cinzenta de inverno, bem no meio de uma praça, então os meus braços não vão ser suficientes para abraçar você e a minha voz vai querer dizer tanta, mas tanta coisa que eu vou ficar calado um tempo enorme... só olhando você, sem dizer nada, só olhando e pensando: “– Meu Deus, mas como você me dói de vez em quando!”.
É...
“ – As linhas paralelas se encontram no infinito”.
Voltou-se para a moça, concedeu-se um meio sorriso com doçura:
– Eu sabia que conhecia você de algum lugar — falou. — Não fizemos a matéria Introdução à Desgraça juntos?
(continua)