Psicólogo Clínico Gestalt-terapeuta
CRP 12/07911
2 de Novembro. Finados.
Ando por entre os túmulos. Vejo algumas crianças brincando de saltar por cima dos jazigos, e, logo lembro que um dia fiz o mesmo, embora, em um cemitério, em uma época pueril, o que mais me chamava a atenção era de ler as inscrições metálicas com os sobrenomes e observar as datas de nascimento e falecimento. Hábito que me acompanha até os dias de hoje.
Continuo a andar e percebo como algumas tumbas parecem se desfazer pelo tempo. Paro perto de uma delas, me aproximo para vê-las mais de perto, olho as datas, os sobrenomes. Vejo que mesmo as flores de plástico que lá estão perderam a cor e a vida. Percebo que há muitos anos ninguém vai até aquele retângulo petrificado pelo tempo. Penso na possibilidade de haver alguém da família ou conhecido que pudessem de vez em quando comparecer ali?
Enquanto o sol bate sobre meus ombros, lembro do documentário curta-metragem de Débora Diniz, chamado “Solitário anônimo”. Nesse, que é um filme registro da vida de um homem que foi achado debilitado, quase sem vida, em um gramado, e que foi recolhido e entregue a um hospital local da cidade onde foi encontrado. Esse ‘frágil’ homem havia rasgado seus documentos, justo para que não o identificassem. Junto a ele apenas um bilhete, escrito a próprio punho pelo tal homem, dizia: solitário e anônimo. O cidadão identificado até aquele momento apenas como o “solitário e anônimo” queria apenas uma coisa, que era o direito de morrer solitário – sem a presença de outrem – e, anônimo – sem precisar que o identificassem.
Ao ser encontrado pelo estado em tais condições, foi obrigado a ingerir a comida através de sondas e afins.
“Queria ter o meu direito de morrer”. Sem intervenções, sejam elas quais fossem. Essas foram as palavras do solitário anônimo.
Logo me passam várias questões enquanto estou sentado diante daquele túmulo deteriorado. Lembro que em Florianópolis – cidade onde resido há alguns anos – dias atrás um homem levou um tiro enquanto fazia a limpeza de um túmulo no cemitério do Itacorubi, e isso garante que o estado não consegue garantir o direito à vida, mesmo sendo num local onde descansam os mortos, entretanto, em outros casos o estado impede as pessoas de terem o direito total sobre seus corpos, exemplo disso são os abortos, que nesse país são permitidos só em duas situações, e por isso, calcula-se que mais de 900 mil mulheres, anualmente o façam clandestinamente. E a eutanásia e a sua proibição. Eutanásia é uma palavra grega composta, que significa boa morte ou morte sem sofrimento.
Levanto-me de onde estava, os sobrenomes e as datas ficam para trás quando termino de rezar solitariamente e anonimamente em frente daquele túmulo. As crianças agora brincam de se esconder alegremente entre as casas dos que padeceram. Percebo que a vida está para a morte e vice-versa, assim como temos o direito à vida e o direito à morte.