Psicólogo Clínico Gestalt-terapeuta
CRP 12/07911
Quando a embarcação o avistou naquela ilhota, através de uma nuvem de fumaça, poucos acreditaram que seria um homem desaparecido há tanto tempo, que fazia uma cocoroca assada na folha de bananeira.
Havia se passado tantos anos que o naufrago mal reconhecia a sua própria espécie. Primeiro tentou afugentar aqueles que o encontraram com estridentes gritos simiescos e batidas com as mãos cerradas contra o peito. Depois se afugentou para a copa de uma árvore, de onde lançava pequenas frutas para alvejar os que se encontravam no chão.
Levou algumas horas para que o fizessem descer. Na verdade, foi preciso tombar a árvore para que pudessem tirá-lo de lá.
A barba longa, cabelo amarelado e as roupas em farrapos denunciavam que ele estava naquela ilha há muito tempo.
Como chegou lá não sabia dizer. Caiu de algum navio? Sobrevivente da queda de algum avião? Quando nadava em alguma praia havia sido engolido por alguma baleia e permanecido em suas entranhas por dias e depois foi cuspido milhares de kilometros longe? Tudo eram apenas especulações.
O naufrago balbuciou algumas palavras distintas:
– Que língua é essa? – perguntaram.
– Talvez Árabe?
– Árabe?
– É por causa da Xamira.
– Xamira?
– A mulher que eu criei, de areia.
– De areia?
– É...
– E essa outra língua que você fala?
– Acho que é latino americano... Para me comunicar com a Suelem.
– E quem é Suelem?
– A outra mulher de areia.
– Você fez duas mulheres de areia?
– Sabe como é... A solidão.
A princípio era apenas para extravasar os instintos mais primitivos, sexo somente. Mas isso qualquer buraco no tronco de uma árvore resolveria essa questão. Contudo, a condição humana faz com que procuremos a companhia alheia e um orifício qualquer não bastaria. Era preciso algo humano.
– Foi quando criei na areia a Suelem.
– Mas porque Suelem?
– Suelem representava o calor da mulher latina. Pernas torneadas, panturrilhas delineadas, e um belíssimo derrière.
Suelem tinha em seu corpo o calor e o sabor da paixão. Era uma mulher que todo homem gostaria de ficar perdido em uma ilha deserta. Que quadris. Espátula. Nuca. Era uma mulher de vento em popa. E que popa! Porém...
– Porém o quê?
– Ela nunca me olhou nos olhos, embora eu não houvesse feito um rosto para ela já que a via sempre de costas. Ela nem sequer esboçou alguma reação quando eu fiquei enfurecido de ciúmes. Ela nem se movia.
– Mas ciúmes por quê?
– Ela estava me traindo.
– A mulher que você criou?
– Sim!
– Mas com quem?
– Não sei, mas não tinha mais dúvidas... Ela me traia. Porém, eu havia pedido por isso... Tinha criado o meu Frankenstein. Suelem era vistosa de mais para ter o amor de apenas um homem.
– E o que aconteceu?
– Desfiz quase toda ela, apenas uma pequena amostra de sua nádega direita ficou visível. A nádega que eu deixaria exposta ao vento e aos crustáceos.
– E esse sotaque Árabe?
– Depois que desfiz a Suelem, criei a Xamira.
– Mulherão também?
– Não. Xamira usava burca.
– Burca?
– Sim, jamais vi o corpo da Xamira, além dos seus olhos âmbar. Queria alguém que olhasse para mim sem ter com ela uma segunda intenção. Xamira era compreensível de mais, obediente de mais, subserviente, e...
– E o quê?
– Xamira nem parecia ser mulher. Era quase um robô. Ela fazia tudo o que pedia.
– E o que você fez?
– Recriei a Suelem. Pedi desculpas. Ela se desculpou.
– Vocês se entenderam, então?
– Sim, mas pedi para a Xamira ficar de olho, e ela como sempre concordou. Se bem que as mulheres árabes não se importam dos homens terem mais de uma mulher.
Algumas pessoas que resgataram o naufrago se aproximaram dele para tirar uma foto com um pau de selfie.
– Pau de quem? – perguntou o naufrago
– De selfie.
Tudo foi explicado aos poucos para não assustá-lo. Selfie tirado... Com Xamira e Suelem de fundo.
Michell Foitte está de férias e retorna na segunda semana de Setembro.
Texto publicado no JE em Fevereiro de 2015.