Psicólogo Clínico Gestalt-terapeuta
CRP 12/07911
Ele adorava roer as unhas. Não era bem roer as unhas, mas aquelas farpas de pele que ficam dependuradas incomodando enquanto não são arrancadas. Adorava puxar com os dedos ou mesmo com os dentes. Enquanto tirava aquelas pequenas lascas, ouvia de Marcel a paixão que ele tinha pela bossa nova. Um disco do Toquinho chiava. Era mesmo um disco com seu chilrear. Nada de Cd ou música gravada em PenDrive. Ana não parecia se interessar pela música nem pelos pedaços de pele. Gostava era dos livros que corriam pela estante do Pedro. Os seus olhos brilhavam quando podia sentir um velho cheiro de folha velha e amarelada. Sábato, Robbins, Rice, Veríssimo, Neruda, Neves. “Basta imaginar e ele está partindo, sereno e lindo e se a gente quiser ele vai pousar”. Além da pele sendo puxada dos próprios dedos, gostava também de sentar-se atrás das pessoas. Desde quando era criança sentava-se atrás dos outros, tudo para poder ver o pescoço, mais precisamente as dobras que os pescoços têm. Essas ranhuras são como as marcas digitais, onde cada um possui a sua particularidade. Assim também são os discos com suas fissuras e que por elas saem o som de que Marcel tanto saboreia, as ranhuras digitais analógicas são... “amigos meus, está chegando a hora em que a tristeza aproveita para entrar”. Tristeza não... Pensava Ana. Sentia algo estranho quando podia simplesmente estar ali frente a frente com os autores e suas obras. Era como se ela mesma pudesse estar conversando com cada linha que fora pensada pelos agentes daquelas palavras ou pudesse sentir que as mãos que escreveram aquelas obras estivessem impregnadas naquelas folhas amareladas pelo tempo. Ana ainda não sabe, mas, as sensações que sente e que estão cada vez mais aguçadas se devem ao fato dela estar grávida. Pedro também não sabe ainda, mas da para imaginar as peles sendo puxadas novamente. Quem sabe seriam motivos suficientes para quando souber que será pai pela primeira vez? Enquanto isso o disco diz: “colhe a mais bela flor que alguém já viu nascer e não se esqueça de trazer força e magia, o sonho e a fantasia e a alegria de viver”. Marcel se pergunta como é possível ouvir alguém que cantou há tempos e que parece nos falar coisas nesse exato momento? Como é possível através de um disco celebrar essas palavras como se estivéssemos naquele momento, naquele exato instante onde alguém dedilhou algumas notas e de repente pronto, uma nova canção? Estranho de mais... – pensa. Pedro ainda não sabe, mas, não apenas olhará às dobras, as pequenas dobras do seu pequeno filho quando nascer, desde o pescoço até às dobras que se juntam às articulações, as das mãos, dos pés, do punho, etc, etc, etc. Pedro também não sabe que seu filho quando ficar mais velho terá o curioso hábito de dobrar as folhas dos livros como demarcação das páginas onde parou de ler, os livros em que Ana tanto gosta sentir o cheiro amarelado pelo tempo. E como diz a letra – pensa Ana – que aprendeu com o tempo gostar “quem já passou por essa vida e não viveu pode ser mais, mas sabe menos do que eu porque a vida só se dá pra quem se deu, pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu...” O filho de Pedro e Ana dobra mais uma página de sua vida, que um dia, para todos, se amarelará.