Psicólogo Clínico Gestalt-terapeuta
CRP 12/07911
Sento em minha cama. Sei exatamente todas as marcas corroídas pelo tempo que lascaram esse leito. É o tempo que tudo devora. Os segundos ingerindo os meus dias.
Não é a minha pele sem elasticidade ou os cabelos grisalhos que me incomodam. É tudo uma questão de ter vivido demais e o que isso representa, porque tudo... Tudo já parece ser tão comum. É uma solidão repetitiva, como algo já vivido muitas e muitas vezes. Desejos antecipados e sentimentos já sentidos.
Olho para o lado. Um copo de água semi-cheio descansa no criado mudo. Alguns remédios para as dores que sinto nas pernas e na coluna. Pernas que um dia fizeram seus próprios caminhos e agora repousam sobre as dobras do travesseiro. Sobre o criado um porta retrato semi-vazio de lembranças trazem meias palavras, um nó na garganta.
Lembro meu marido que já se foi a tanto tempo que começo a perder a sua fisionomia. Um criado mudo com o pó da minha pele. É o pó a que tudo se finda... Vida, pele, retrato, dor. Minhas lembranças consumidas pelas frações dos segundos na fisionomia do meu marido. Pó que não se retira. Não se limpa. Um pó de um tempo esfarelado que jamais irá se recuperar.
Quem sabe devesse utilizar os remédios que estão ao meu lado e me desligar do mundo? Mas isto é apenas um relance da minha imaginação.
Parece até uma ilusão quando tive que trabalhar e cuidar dos meus filhos que ainda eram pequenos, pois, meu marido nos deixou realmente há muito tempo. Quem me ajudou? Minha mãe! Sim, ela me ajudou e serei grata eternamente. Mas ela também se foi e não teve a chance de ver seus netos se tornarem adolescentes e jovens. Quanta saudade dela.
Saudades também dos meus filhos. Por mais que eles estejam tão longe jamais estiveram distantes dos meus pensamentos e da minha vida.
Tenho medo de talvez não conseguir ver meus netos crescerem. Medo de me perder numa solidão em que ninguém venha me procurar quando eu faltar. Isso me gera calafrios.
Estico meu braço. Minhas mãos trêmulas acompanham aquela fotografia empoeirada. Lá estão todos os meus queridos. Luto contra o tempo para que a cada dia eu consiga guardar a lembrança deles. Ou, às vezes, me alio ao tempo para que me de a chance de poder sonhar com aqueles abraços calorosos e fortes.
Coloco o retrato no lugar. Ajeito-me com as pernas estendidas. Tento encontrar uma marca nova na cama, mas, nada encontro. O tempo tem dessas coisas.
Fecho os olhos e sinto uma nostalgia. Parece que meu corpo ficou mais fraco ou será que meu corpo desistiu de mim? É até uma sensação confortante. De repente não sinto mais dor. É como nos sonhos onde eu consigo correr sem sentir o peso do mundo sobre a minha coluna.
Inspiro profundamente, inspiro as partículas de pó, respiro um ar de felicidade. Inspiro fundo mais uma vez. E sinto-me contagiada pela esperança de ver aqueles que tanto amo. Sinto que vou matar as saudades de algo tão comum e bom como o velho cheiro do que foi um dia o meu lar. Digo para mim mesma num tom de graça: Mãe eu estou voltando.