Psicólogo Clínico Gestalt-terapeuta
CRP 12/07911
O remorso me acompanhava. Minha assinatura na ficha do hotel e logo em seguida a pergunta.
― São essas as bagagens do senhor?
Respondi que sim ao recepcionista. Ele me acompanhava, agora éramos três, eu, o remorso, e o recepcionista do hotel. Fomos até o quarto. Ele acendeu as luzes, ligou a tevê. Apenas o protocolo.
― Posso ajudá-lo em algo mais senhor? Meu nome é Saint Clair.
Era assim mesmo que se escrevia, pois, olhei em seu crachá. Pensei automaticamente no Santa Claus, em Saint-Tropez.
― Uma garrafa do seu melhor vinho. Tinto. Por favor!
Tirei os sapatos, afrouxei o cinto da calça, desabotoei a camisa. Sentei-me na beirada do colchão, as molas rangeram. Da bagagem, em volto em uma toalha de banho, deixei cair o revolver prateado. Olhei os orifícios ainda vazios em seu tambor. Eram cinco aberturas que eu preencheria com as minhas pequenas amigas tracejantes que aguardavam enroladas num dos pares de uma das minhas meias. Desfiz o nó que as prendia. Coloquei as balas no tambor, uma de cada vez, como quem testa os seus cinco sentidos.
A primeira tinha um cheiro de pólvora em dia de festa de igreja. A segunda um gosto de adaga metálica. A terceira era como um pingente que deslizava por entre meus dedos. A quarta era uma quietude infra-sônica de um relâmpago a milhas de distância. A quinta bala era a visão dos meus alvos.
Santa Claus batia na porta, quis dizer... Saint Clair. Afinal, que tipo de mãe ou pai colocaria o nome de Saint Clair em um filho? Quais seriam os nomes de seus irmãos?
― O seu vinho senhor. Algo mais em que posso ajudá-lo?
Agradeci dando-lhe uma nota graúda.
Tomei o primeiro gole e lembrei-me dela. Lembrei do nosso primeiro beijo em nosso primeiro encontro. Como ela estava linda. Parecia flutuar naquela doce estação primaveril em seu vestido colado rente ao seu abdômen. Decotado e debochado nas fendas dos seus seios, mostrando ao sabor do maneio do vento as suas pernas lácteas.
Mais um gole e o remorso reapareceu nas palavras dela: “Você é solícito demais, carinhoso de mais, romântico de mais, assim não da tempo para o menos, e eu não aguento mais tanto convívio.”
Não entendi quando ela me disse que se sentia inútil perto de mim? Sempre pensei que ela pouco se importasse em ser útil quando o que eu mais quis era que ela se sentisse amada.
As suas negativas começaram a ser frequentes. Não deixava ser abraçada, beijada, tocada. Foi quando eu descobri que ela tinha outro. E depois do outro ela teve outro. Homens que eram menos gentis, menos ricos, menos sensíveis. E todos pareciam se divertir, menos eu.
Girei uma vez mais o tambor prateado em roleta russa para ver as pequenas se movendo em sentido horário. Era o tempo girando e apontando para a morte.
As palavras de Saint Clair fizeram-me pensar: “Algo mais em que eu posso ajudá-lo?” Talvez St. Clair pudesse decidir por mim por quem eu deveria começar? Mas isso era algo que somente eu poderia fazer.
Estava decidido, a última bala seria para mim, logo após ter feito a limpeza na minha alma. Lavaria a minha honra com sangue. E a primeira para ela.
A primeira iria para ela, para a esposa querida que tinha esse pequeno defeito, de se envolver com homens menos, para a esposa que possui um sorriso de almíscar com suas presas níveas e lábios de néctar primaveril e de corpo floral apesar das várias estações anunciadas.
A outra bala, a de número dois iria para o amante um. À bala três iria para o amante dois. A quarta... Para quem ficaria a quarta bala já que sobraria ainda uma?
Não havia refletido para esse detalhe. Sobraria ainda uma bala!
Era desperdício deixar uma das pequeninas solitárias sem poder encaminhá-la. Mais uma taça de vinho e comecei a pensar para quem ela poderia ser direcionada?
Pensei na mãe ou no pai do Saint Clair. Eles bem que mereceriam ter uma bala incrustada no peito, pois, quem são os pais que colocam esses nomes em seus filhos? Mas, Saint Clair poderia ser filho único, e o que ganhava trabalhando no hotel sustentava seus pais? Poderiam eles ser devotos de São Carlos da Normandia?
Não, não iria para os pais de Saint Clair uma das balas.
Quem sabe para o canário belga do meu psicanalista? Pobre pássaro amarelo que não canta. Que fica constantemente com o seu bico para fora das grades de sua gaiola por achar que o ar daquele lado é mais puro que o de dentro. Ar menos rarefeito. Quem sabe eu não acabaria com seu sofrimento?
Ou quem sabe, para o idiota do psicanalista que me recomendaram quando passei a desconfiar das traições da esposa querida? Psicanalista metido a intelectualzinho que fazia palavras cruzadas enquanto eu expunha e exprimia meus sentimentos misturados às lagrimas e ódio. Apontaria a arma para seu símbolo fálico para ver se ele entenderia o que era realmente uma pulsão de morte?
Mais um gole no vinho. Mais um giro no tambor do revolver e estava decidido. Começaria a escrever naquele quarto de hotel o meu romance: “O quarto tiro”.