Psicólogo Clínico Gestalt-terapeuta
CRP 12/07911
Contos de primavera
Dia após dia lá estava ela, aguardando a chegada do ônibus que a levasse ao ponto mais próximo ao colégio em que estudava. Apenas deduzi isso, pois, a verdade, eu nunca tive a certeza. Sabia apenas que ela se amorenava ao sol enquanto o coletivo não chegava. Sua pele era dourada e seus cabelos lisos e negros se moviam ao sabor do vento. E que estava sempre com seus fones de ouvido brancos ligado a um celular surrado pelo tempo. Quanto a mim, cabia imaginar qual seria a canção que tocava na profundeza daquela alma. E dia após dia nos encontrávamos no mesmo ponto, ela com seus fones e seus cabelos ao vento, eu com algum livro com as folhas desbotadas. Mas, de algum modo, todo aquele encontro diário fez com que nos aproximássemos. Cada vez mais próximos na parada do ônibus, depois mais próximos nos assentos do ônibus, depois nossas pernas se tocavam quase sem querer quando a curva nos jogava um contra o outro, depois nossos olhares se cruzaram timidamente e um sorriso apareceu no canto de nossas bocas. Até que um dia nossas bocas se encontraram. Soube, então, que ela gostava de balas sabor cereja. E foi só isso que eu soube dela. Nunca soube o seu nome, onde ela estudava, se trabalhava, qual a sua idade, já que ela nunca tirou seus fones do ouvido enquanto nos beijávamos. Também nunca trocamos uma sequer palavra ao longo desses três meses, e parece que aquilo que poderia ser dito não fazia a menor diferença ou falta, quando todo o resto era suficiente para nós. Sua pele dourada, seus fones, sua bala sabor cereja em sua boca, tudo isso supria qualquer palavra.
***
Foi amor à primeira vista. Amor não, paixão. Paixão à primeira vista, à segunda vista, à terceira... à vigésima... sei lá... Não me interessavam mais os dias, as horas, os outros, só queria saber daquela pessoa. Toda vez que via ele meu coração rufava dentro do peito. Não dava mais para esconder. Meu corpo transbordava de paixão, exalava paixão, meus olhos eram oceanos de paixão... Mas que tolices eu estou dizendo, até parece que existe outro dentro de mim! É isso! Existe realmente outro dentro de mim... Ele já está em meu coração, está impregnado em minha pele como tatuagem. Precisaria então falar com ele, mas como? Já sei, mandarei um bilhete e assim chegarei com calma. Deixe-me pensar no que escrever... Que droga, eu sei o que estou sentindo, mas não consigo achar as palavras... Dane-se, vou ser sincera e objetiva: “Estou gostando de você”. E assim enviei o bilhete. E logo veio a resposta com alguns questionamentos. Entre estes: que também era comprometido. Mas isso não mudaria o que eu sentia, e fui tentando conhecê-lo melhor naqueles maravilhosos dias que nos falávamos. Nunca fui tão sincera com alguém, disse para ele tudo aquilo que eu sentia, o quanto estava apaixonada, o quanto o desejava, e ele foi gentil me escutando, compreendeu aquele meu sentimento delirante e quase obsessivo de que uma mulher sem paixão é uma mulher sem nada. Contudo, o meu coração despedaçou-se quando ele falou que se desligaria da empresa por motivos outros. Como faria agora? Como ficariam meus dias sem ele? Mas ele se foi... Despedindo-se de todos. Deu-me um tchau e falou alguma coisa que eu nunca saberei, pois, naquele momento eu estava fixo em seu olhar. E as únicas palavras estúpidas que consegui dizer foram “boa sorte!”. Fiz o que pude fazer para mostrar meu amor por ele, mas no final, as nossas bocas não se encontraram, nossos braços nunca se abraçaram, nossas vidas jamais se completaram. E a primavera se foi.
(A Cintia Rodrigues)