Dois ―

 Dois

― Querido, podes abrir essa vasilha de conserva, pois não estou conseguindo tirar a tampa?!

Com as mãos trêmulas, Joaquim fracassa em inúmeras tentativas.

― O que foi, Joaquim, parece estar preocupado?

― Eu não aguento mais, Clôtilde! Preciso te falar algo.

Clô, para os mais chegados, arregalou os olhos:

― Mas você sempre consegue abrir... É outra mulher, não é?

― É algo que escondo de você há tempos – disse Joaquim.

― É outra mulher, com outros filhos...

― Não é isso Clô, é algo íntimo, é...

Com lágrimas nos olhos, Clôtilde interrompe Joaquim:

― Ahhm. Você é meio gay?

― Meio gay... Isso não existe, Clô! Ou é ou não é!

― Caramba, o que é então que faz você não conseguir abrir uma simples compota?

― Calma, Clô! Era o que estava tentando te dizer: é que eu posso ser dois.

― Dois o quê?

― Dois de mim mesmo!

― Mas isso eu também consigo ser: sou mãe, sou sua mulher, sou empresária, dona de casa...

Enquanto Clôtilde satirizava com o marido, numa fração de segundos, dois Joaquins apareceram diante dela. 

― Meu, Deus, Joaquim, qual deles é você?

― Somos nós dois!

― E eu sou agora a “Dona Clô e seus dois maridos”?

― Você é a primeira a saber disso.

― Já desconfiava que não estava tão bêbada naquele dia da festa da Carminha.

― Pois é, éramos eu e o outro eu mesmo.

― Mas meu amor... Precisamos chamar a TV para registrar isso, quem sabe vender a sua imagem e ganhar uma grana. Poderíamos recriar o slogan: “Um é pouco, dois é bom, e três já é demais”. O que você acha?

―É um absurdo, Clô, pareço até uma aberração de circo. Além do mais, sou tímido para aparecer na televisão.

― Tudo bem, desculpe-me. Mas é que fiquei curiosa.

― Com o quê?

― Você nunca tirou proveito disso?

― Só quando não tem ninguém por perto, aí eu assisto e comento o futebol com esse outro de mim; quando não consigo lavar as costas; eu peço ajuda para mim; enquanto um bebe; o outro fuma; enquanto um lava a louça; o outro enxuga... Essas coisas, Clô.

― Ai meu Deus, Joaquim!!!

― O que foi agora, Clô?

― Naquelas horas também?

― De que hora você está falando?

― “Daquelas” horas Joaquim. Era por isso que você não se cansava nunca?

― Clô, vou deixar o meu outro responder a sua pergunta.