Psicólogo Clínico Gestalt-terapeuta
CRP 12/07911
A disputa
José Carlos e Carlos José nasceram na mesma data, na mesma maternidade e na mesma hora, e, mesmo assim, não eram gêmeos. Coincidência ou não, desde as primeiras horas de vida ambos já competiam.
Exemplo de quando estavam no berçário com mais oito crianças que dormiam em silêncio – somente José Carlos e Carlos José disputavam quem chorava mais tempo, tudo para verem qual deles a enfermeira bonitona pegaria no colo. Às vezes, a moça pegava os dois ao mesmo tempo em seus braços, o que dava empate.
Vicissitude, Carlos José e José Carlos logo na infância se tornaram amigos, e sempre disputaram alguma coisa.
― Vai Carlos, é sua vez!
― Qrrrrrrrrrrr... flupt... Essa foi longe!
― Deixe-me medir... 4,85m... Estabelecido o novo recorde de cuspida.
Era assim, sempre disputavam algo. Era quem conseguia lançar mais alto o balão em chamas antes de cair incendiando os bambuzais. Era quem conseguia retirar o osso da boca do rottweiler Rex. Era quem conseguia comer a maior quantidade de chucrute antes de passar mal.
Da infância para a adolescência nada mudou.
― Vai mais para o lado, José.
― Essa escada vai derrubar nos dois daqui!
― Não antes de eu conseguir ver a vizinha tomando banho.
― Se você conseguir eu também conseguirei.
― Uhauuuu... ― disse Carlos José para aquela visão inesquecível.
― Uhauuuu... ― disse José Carlos para aquela visão que seria por muitos anos a sua inspiração em noites solitárias.
E essa foi a primeira experiência sexual deles... Foi também a primeira vez que ambos quebraram a perna logo após a escada ter rachado ao meio... E também a primeira vez que descobriram como o Saci-Pererê se sentiria tendo que fugir do Paulão, o marido da vizinha.
Na fase adulta disputavam quem tinha o melhor salário, o carro mais potente, quantas mulheres tinham pegado, qual a maior distancia de uma cuspida contra o vento.
Na velhice competiam para saber quem acordava mais vezes na noite para fazer xixi, isso quando dava tempo de chegar ao banheiro. Quem tinha a maior quantidade de doenças. Quem conseguia comer mais mingau. Quem conseguia cuspir a dentadura mais longe e ainda alcançá-la no chão sem dobrar os joelhos.
Mas um dia José Carlos adoeceu e disse:
― Chega Carlos José, não quero mais disputar nada.
― Como assim, meu velho?
― É isso mesmo, quero apenas morrer em paz.
― Ah, te conheço bem, José Carlos, quer ir à frente, não é?
― Não é nada disso!
― Ok. Então essa será a nossa última disputa: quem será o primeiro a passar para o lado de lá?
Pelo que constou no laudo médico, Carlos José e José Carlos morreram de velhos na mesma hora e no mesmo local. Porém, acharam um bilhete no bolso de cada um deles, que estava escrito assim: “Quando me encontrarem aqui saibam que eu fui o primeiro a partir. Atenciosamente, José Carlos”. No outro bilhete: “Eu fui o primeiro a fazer a passagem, pois, como só há uma caneta e sei que o José não foge de uma disputa direi a ele o seguinte: você só irá escrever com ela por cima do meu cadáver, quer disputá-la, então venha. Assinado: Carlos José”.