"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".
(continuação)
VIII
Agora, em meu quarto, em meus pensamentos desencontrados e aparentemente sem nexo, reconheci subitamente que passara a me esquivar de tudo.
E lentamente morri por dentro.
As únicas emoções pelas quais me deixava tocar eram as que vinham de algum filme ou da música.
Sobretudo da literatura.
Com aquele sentimento no coração, comecei a gostar ainda mais dos livros. Devorava-os, consumia-os, refugiava-me dentro daquelas páginas para fugir de todos os meus problemas.
E assim me afastava do mundo que havia me ferido. E assim me afastava cada vez mais do mundo que me havia ferido. Mas meu passado continuava ali, e eu estava rodeado pelos meus fantasmas tão presentes.
Eu não pedia um prêmio por meus sacrifícios, queria apenas saber por que tudo aquilo que fazia na vida nunca era suficiente.
Mas era querer demais, nunca o soube, nunca o consegui, nunca me foi permitido saber.
E agora eu estava olhando para fora, para a rua, pela porta aberta, com um olhar distante, como se estivesse me lembrando de um antigo amor perdido.
Um gato malhado passou junto à porta, parou por um rápido momento e olhou direto para mim, depois se desviou devagar e se afastou mansamente, o rabo enroscando-se preguiçosamente.
Fiquei me perguntando o que é que os gatos sabem a nosso respeito que os fazem nos desprezar tanto assim.
Pelo menos, assim me pareceu naquele momento.
Então vi-me num local impreciso e desconhecido, com a sensação de que as águas lodosas da saudade estavam me arrastando para as profundezas de um caminho sem volta.
Desvio os olhos do gato que não está mais lá e me deparo com dois ou três livros que estariam numa prateleira caso eu tivesse uma. Vou até eles e faço um carinho desajeitado na capa de um deles.
A leitura me faz descobrir a alma das coisas. Ler significa encontrar as palavras certas, as palavras perfeitas para expressar aquilo a que não consigo dar forma.
Por falta de opção, descobri o puro prazer de conhecer os personagens dos livros, de me comparar e até de me medir com eles. Meu mundo interior era intimamente ligado ao deles.
Ler sobre gente que vivia situações difíceis, duras, até piores do que a minha me aliviava e fazia com que eu me sentisse menos só, graças a uma espécie de humilhação coletiva.
Em algum lugar do mundo, havia outras pessoas como eu. Sentia-me menos abandonado e sobretudo aprendia muitas coisas que eu não conhecia.
Porque, embora as histórias fossem inventadas, talvez, o sentimento era real, e percebia-se que o escritor sabia o que estava descrevendo.
E eu queria me tornar um deles.
Minha vida se encheu de pessoas novas, dotadas do poder de mudar meu estado de espírito, de me sugerir pensamentos novos e novos modos de ser e sentir.
No momento em que me dei conta disso, acordei de um longo sonho.
Ou assim me pareceu.
É, eu passo muito tempo numa janela contemplando o mundo e seus modos.
Mas logo a seguir a realidade crua e dura me atinge.
Isto não é um livro, é vida. Pior: é a minha vida.
Alguma coisa me passa pelo rosto, alguma coisa um pouco irônica, e ao mesmo tempo um pouco triste. Talvez uma forma de sorriso amargo, não o sei bem.
Algumas coisas na vida não dá para a gente escolher.
Não, não adianta nos tapear, não é mesmo? Muitas coisas na vida não dá para a gente escolher.
Olhei para fora, para a noite agora sem lua, para as oscilantes correntes de luz e o fluxo escuro e constante do rio sob a chuva fina que caía, e pedi a Deus que, de um modo ou de outro, antes que fosse tarde demais, nós todos encontrássemos o caminho de volta para casa.
O trem na estação ficara há vários anos de distância da minha vida e eu não podia mais escutá-lo.
Mas mesmo assim eu imaginava que o ouvia.
Os sinais estavam todos lá. Eu os havia notado, mas eu ainda não sabia quão profundas eram as cicatrizes em mim. Eles me mostravam quem eu nunca queria ser. Mas era. Estava sendo.
Eu implorava, sem o saber conscientemente, por uma segunda chance.
Mas, quem nesse mundo recebe uma segunda chance?
Eu não queria ter o olhar de... desesperança absoluta.
O tipo de olhar que dizia que ninguém esperasse que nada mudasse.
Mais que tudo, eu precisava acreditar nisso.
Que ainda houvesse a possibilidade de uma mudança.
— Você não tinha como saber – disse eu para mim mesmo.
E então completei:
— É algo que não fico me falando – tentei me explicar.
O passado tão presente nunca ia embora, e não foi projetado para isso.
Estaria sempre lá e deveria ser reconhecido.
Com esta súbita consciência senti um tremor percorrer meu corpo e, então, a realidade tremeu nos meus braços. Eu me segurei mais apertado quando tudo de repente desmoronou, e tudo o que eu estava aguentando por anos se estilhaçou.
Procurei me controlar, mas era eu quem estava tentando juntar os cacos de mim mesmo.
Então me forcei a atravessar a sala tão vazia, um coração com poucas esperanças e o peso incomensurável da minha angústia, forçando-me a ir caminhar nas ruas desertas.
Buscando as estrelas que eu não via na noite da minha alma.
Quando andava, eu às vezes me virava para olhar para trás.
Tinha a impressão, em certos momentos, de que eu vivia num mundo à parte, só meu.
Há agonias que servem para algo. A de Cristo, por exemplo.
A minha não servia para nada.
Tentei murmurar algumas orações, sobretudo para que me ajudassem a suportar o barco da vida que às vezes quer virar nas horas de tempestade.
Claro que isso não fazia sentido, nada em mim sabia que diabo poderia ou deveria ser feito, ou o que estava realmente acontecendo, não sabia de nada a não ser que talvez estivesse me agarrando a um mundo que já não existia mais.
— Não é para mim – pensei tantas vezes, disse-me tantas vezes. — Não é para mim.
Mas o mundo havia mudado, e eu também.
Eu não queria que o mundo estivesse lá e não queria pensar no motivo, mas logo cheguei ao ponto em que o maldito mundo era tudo o que eu conseguia ver quando caminhava solitário pelas ruas desertas, mesmo que fosse a única coisa que eu não olhasse de jeito nenhum.
Quando você está destruído emocionalmente, você às vezes corre.
Mas nem sempre foge de algo.
Às vezes, desamparado, você corre em direção a algo. Pelo menos, assim achamos. Ou esperamos.
Eu estava me tornando um especialista em ocultar meu verdadeiro ser.
Não sabia qual iria ser o meu futuro, se é que teria um.
Meu rosto é um rosto em uma busca desesperada por segurança, com certo entendimento de que não existe isso.
Procuro a segurança no fato de não ser visto.
É um hábito que você pode adquirir: desejar se manter invisível.
E não lhe adianta muito na vida, acredite.
Em mim, não adiantou.
Eu vivia na esperança de milagres. Milagres que não aconteciam.
Queria, ao menos, de alguma forma, de alguma maneira, ter um amigo em quem confiasse, em quem eu pudesse confiar, contar meus segredos.
Trocar histórias, contar piadas, expor velhas mágoas,
Mas não há ninguém.
Abro um sorriso. Sei como é tentar segurar uma criatura que gostaria de estar em outro lugar.
Então meu coração vacila. Só um pouquinho.
As mãos servem para outras mãos humanas segurarem – reconheço aturdido. Os braços humanos servem para abraçar outros seres humanos.
Queria estar de volta, no meio de uma grupo de pessoas, em uma casa de família, e não quereria ir embora nunca mais.
Um lugar que consertasse meu coração partido.
Há fantasmas aqui.
São os fantasmas dos acontecimentos.
Então, de subido, do nada, ouço o apito do trem que vai deixar a estação, o apito que ouvi tantas vezes em minha infância sem me dar conta do que me significaria futuramente.
Lembro-me de ter fechado os olhos por um breve segundo e gravado aquele som, pois queria guardá-lo comigo para sempre.
E guardei.
Preciso de uma dose de sensação de lar.
É nisso que preciso acreditar para seguir em frente.
Mas era como tentar baldear um oceano com uma colher de chá.
Isso é o que me assombra à noite.
Não os mortos que encontro, mas os vivos que deixo para trás.
A começar por mim mesmo.
IX
O fato é que nunca são as diferenças entre as pessoas que nos surpreendem. São as coisas que, contra todas as expectativas, temos em comum.
Como nosso sofrimento. Porque, sempre que possível, os seres humanos erram para o lado da esperança.
Arrependimentos. Claro que pensamos em arrependimentos, mas não é o arrependimento das coisas que você fez que toca nossas mentes.
Talvez seja a melancolia pelas coisas que jamais teremos a chance de fazer.
Um dia alguém me confessou que, pior que nos arrependermos de alguma coisa que havíamos feito, era nos arrependermos das coisas que por algum motivo não havíamos feito, que havíamos deixado de fazer.
Por exemplo, olhando para trás, quando me magoavam de alguma forma, sempre achei mais fácil não dizer nada.
Agora eu fico na dúvida – quase certeza - se o verdadeiro fardo não foi, o tempo inteiro, meu silêncio.
Aos poucos eu comecei a aprender que usava um falso humor para afastar a dor. Já vira outras pessoas fazerem isso. Em geral, alguma coisa no passado lhes causara uma ferida afetiva, e elas usavam o humor ou o sarcasmo para mascará-la. Para não pensar no assunto.
Quando o pior é uma possibilidade, é bom mantê-lo em perspectiva. Sem
que a gente se esconda dele. Sem fugir. Ele pode acontecer.
E, se e quando acontecer, é melhor ter pensado nele de antemão. Desse jeito, a pessoa não é esmigalhada quando o pior se torna realidade.
Mas nunca o fazemos, não é mesmo?
– É, o mundo, a vida, é um lugar difícil. Acaba depressa com a esperança.
Quando se parte o coração, ele não volta simplesmente a crescer. Não é
uma cauda de lagartixa. É mais parecido com um enorme vitral que se estilhaça em milhões de pedaços, e não volta a colar.
Os corações estilhaçados não se emendam nem saram. Não funcionam desse jeito.
Talvez eu esteja dizendo uma coisa que você já sabe. Talvez não. Só sei que, quando a metade morre, a coisa inteira permanece em dor. Por isso, você fica com o dobro da dor e metade de todo o resto.
Pode passar o resto da vida tentando remendar o vitral, mas não adianta. Não há nada capaz de juntar os pedaços. Temos de olhar para situações muito ruins e encontrar um jeito de melhorá-las.
Todo dia é como se fosse uma partida de xadrez.
Nós contra o mal.
Alguns poucos dias, vencemos. Na maioria, não.
E fazemos tudo isso por causa de uma simples palavra: esperança. Ela corre nas nossas veias. É o que nos alimenta.
Como se alguém nos perguntasse como o conseguiríamos.
Ao que, apropriadamente, responderíamos:
– Um passo de cada vez.
– E por quanto tempo você acha que consegue manter isso?
– Por quanto tempo for necessário.
– E se você não aguentar?
– Eu aguento.
– Mas como você sabe?
– Qual é minha alternativa?
Senão acabamos esperando por um conto de fadas que nunca se realiza. É só ir pondo um pé adiante do outro.
É, simples assim. O problema é descobrir como fazê-lo, não é mesmo?
Tenho olhos fugidios. Eu gostaria de poder olhar as pessoas nos olhos sem esconder nada do que eu sinto.
Porque esconder coisas dói, pode acreditar.
Para isso ter um fim, você precisa ir até o fim. Senão irá andar como um fantasma o resto de sua vida.
Mas isso você também já sabe, não é mesmo?
É como se você entrasse numa sala escura e houvesse uma faixa de luz fraca por baixo de uma porta do outro lado. Você abre essa porta e ela leva a uma segunda sala, um pouco mais iluminada do que a primeira, e há outra porta do outro lado, com luz por baixo. E você continua em frente, uma sala depois de outra, salas e mais salas, luz e mais luz.
Que só iluminam o que você vivencia.
Você conta uma história dessas, e as pessoas acabam olhando para você muito atentamente, bem nos seus olhos, anunciando sua solidariedade, quando na verdade o que fazem é tentar espreitar sua alma, ver que marcas e manchas ficaram ali.
Um sorriso triste arqueia meus lábios. Minha fisionomia triste dá lugar a um sorriso largo.
E então eu minto descaradamente:
— Eu sou uma pessoa que sempre vê o copo meio cheio.
Triste e infrutífera ilusão, triste e infrutífera tentativa, quando todos sabem que sou uma pessoa que só consegue ver o copo meio vazio.
Talvez eu tenha um coração de ouro, estando este enterrado bem lá no fundo. Quando é comigo mesmo. Conseguem entender isso? Já passaram por isso?
É verdade que meu coração machucado esteve bem o dia todo, mas, quando penso assim, uma pulsação intensa de dor toma o lado direito de meu peito, irradiando-se para fora de minha alma, como se o ferimento me castigasse por mentir tão descaradamente.
Às vezes sento-me relaxado em meu banco por toda uma curta eternidade, apático, os olhos fixos à frente, como um homem esperando por um ônibus que se faz tardio. Fico sentado ali, parecendo mais perplexo do que triste. Por mais que o tente disfarçar. Por mais que o tente dissimular.
Sei que sou um homem estranho, as pessoas vivem me dizendo isso.
Quando não dizem, pensam. Eu simplesmente vejo isso no rosto de cada um.
Eu sempre invejo as pessoas que considero especiais, as pessoas as quais, pelo jeito, jamais serei uma delas. O tipo de gente que sempre admirei: alguém com um objetivo difícil que dá os passos necessários para alcançá-lo.
Mas há um seleto grupo que invejo ainda mais: os que conseguem atingir seus objetivos.
Com algumas pessoas existe uma linha tênue: nunca se sabe se elas se fazem de boas ou se são realmente boas.
E o que isso tem a ver com o que eu dizia? Talvez nada, mas é assim.
Sou solidário, mas transparente: é assim que são as coisas e não há nada mais que eu possa fazer.
Eu não convido as pessoas a entrarem em minha vida, mas também não as impeço de vir para dentro. Debalde, talvez com a ilusória e inatingível esperança de que um dia surja uma alma salvadora que me ajude a sair de tudo isso.
Eu tentava fazer graça quando dizia “Porque é assim!”, mas, na realidade, não se importava muito com o que dizia. A explicação: eu só não queria ficar onde eu estava. Sentindo o que estava sentindo.
Às vezes queria poder me dizer, com suavidade e sinceridade:
— Minha nossa, eu não brinco em serviço.
Como se pudesse, como se conseguisse, ser eficiente assim com meus sentimentos conturbados. Com minha solidão sempre onipresente. Com meus desvarios alucinados.
Quantas vezes me determinei:
— Não preciso que ninguém seja gentil comigo.
Mas eu me iludia. E sabia que estava me iludindo.
Porque isso implicava em um adeus irreversível.
E dizer adeus é morrer um pouco.
X
Uma dessas noites relevadoras doeu em mim o conhecimento de que eu tinha perdido para sempre qualquer pequeno fragmento da esperança que, por um breve instante, ela permitira que eu pensasse que era meu.
Foi um momento doloroso na qual a verdade inconfessável me atingiu, e descobri inapelavelmente que o diabo existe.
Mas nunca revelei este instante para ninguém.
Ninguém jamais descobriu a verdade sobre esta história toda, que mudou a minha vida para sempre.
Podem tê-la intuído, mas ficaram na dúvida (quase certeza). Porque eu havia me tornado um mestre em esconder meus verdadeiros sentimentos, o que verdadeiramente sentia. E vivia.
Os lençóis da casa onde vivo agora não são cheirosos como antes. Ainda recordo o perfume dos lençóis da minha casa que deixei tão longe.
Na minha atual, só houve aquele perfume quando coloquei em minha nova cama o lençol que havia trazido. Mas a solidão se tornou a minha habitual e constante companheira, e levou até todos os cheiros gostosos que ainda permeavam minhas lembranças e recordações.
Desde que minha esperança e ilusões foram embora, nem sequer os silêncios foram os mesmos.
Com a esperança os silêncios eram belos, eram redondos, suaves e acolhedores, ao passo que agora os da saudade são incômodos, ásperos e longos. E, para ser sincero, para mim são até muito ruidosos. Não me agradam nem um pouco
Antes de perder a fugidia esperança, eu tinha algumas convicções a meu respeito. Ela procurou me fazer compreender que minhas convicções estavam erradas e finalmente, depois de muito tempo, eu consegui perceber isso.
Demorei um pouco, ou melhor, demorei demais, e, quando afinal cheguei lá, quando me dei conta disso, a esperança já se fora embora.
Ela me faz falta. Agora que entendi muitas coisas e procuro mudar, não consigo estar com nenhum outro sentimento. Não me encaixo mais: para isso ainda precisaria das minhas velhas convicções, que não existem mais.
É, até isso eu perdi. Ou me foi tirado, não o sei bem.
De certa forma, como se fossemos um casal. Como se nós dois fossemos um casal: eu e a esperança.
Há histórias que duram anos e, nesses anos, os dois se apaixonam um pelo outro e se desapaixonam. Alguns param de se amar, mas mesmo assim continuam juntos. Outros resolvem se deixar, mas para isso precisam de tempo.
Antes, tentam compreender se têm mesmo certeza ou se é apenas uma crise passageira.
Se, no final, se convencem de que realmente acabou, ainda assim precisam encontrar um jeito de se separar, de certa forma encontrar as palavras certas para aliviar a dor.
Há pessoas que podem perder nisso vários meses, às vezes até anos. Também há quem tenha perdido nisso uma vida, sem nunca dar o passo decisivo. Muitos não conseguem se largar, simplesmente porque não sabem para onde ir ou então porque não suportam a ideia de ser responsáveis pela própria dor.
Uma dor intensa, que só alguém com quem vivemos em intimidade pode sentir. Isso quando a deixamos transparecer, não é mesmo?
Tem-se a convicção de que uma dor repentina é muito forte e faz mais estrago do que uma dor menor, mas repetida em doses diárias.
Essas relações continuam até mesmo se quem está para ser deixado já tiver entendido tudo.
Porque preferimos fingir que não é nada. Porque preferimos acreditar que não vai acontecer. Não conosco.
Esperança não é a última que morre? Errado, tolinho, deixe de se iludir.
Somos nós que morremos por último.
Muitas vezes encontramos pessoas mais serenas. Talvez porque nunca tiveram grandes ambições na vida. E, por isso, ficaram menos desiludidas.
De repente me dei conta de que o silêncio em que estava vivendo era cheio de apelos. Senti também que, se me virasse para olhar o que eu me tornara, começaria a chorar. E não devia, não naquele momento.
Talvez, mesmo, em nenhum outro.
Eu devia ser forte, estava ali para ser forte, para me sustentar, e tinha de me comportar à altura. Mas sentia como se meus olhos fossem um dique que continha um mar de lágrimas.
E naquele momento o dique era frágil, tinha pequenas rachaduras.
Então me concentrei permanecendo imóvel, a fim de bloquear a sensação de aflição que vinha crescendo dentro de mim.
Percebi que não aguentaria mais, estava quase perdendo o controle e desmoronando, quando inesperadamente comecei a experimentar dentro de mim uma sensação estranha. Como se minha fragilidade fosse substituída por uma força. Não tinha mais vontade de chorar.
Meus pés, sob a cadeira na qual me sentara, estavam apoiados no chão só com as pontas. Eu mantinha as mãos unidas, entre os joelhos, com os dedos entrelaçados.
Como se fosse uma segunda pessoa, enquanto olhava aquele homem dobrado sobre si mesmo, diante de sua vida, diante daquele dia que parecia não acabar nunca, afinal comecei a chorar. Debrucei-me ainda mais e procurei rapidamente conter as lágrimas, eu não podia me permitir submergir em minha solidão e todos os sentimentos que ela me trazia.
Restou-me então me lembrar da fugidia esperança. E me agarrar a ela.
Naquele momento faria a mesma coisa da primeira vez: eu a seguraria com força e a manteria apertada contra a parede, para que nunca mais ela me deixasse.
Eu precisava realizar um milagre, mesmo sem me dar conta disso.
Agora, porém, a parede estava entre nós.
É, penso frequentemente na esperança e em seus hábitos estranhos e muitas vezes incompreensíveis. Nela, que conhece exatamente as porções de comida a servir no meu prato. Nela, que conhece as medidas da minha vida.
Então, talvez, eu quisesse poder encontrar o improvável gênio encantado naquele meu pratinho rachado.
Talvez, se eu o esfregasse da maneira correta que buscava inutilmente há tanto tempo (tempo demais), talvez enfim o gênio surgisse.
Não para me trazer alguém de volta.
Ou, talvez, precisamente para trazer alguém de volta: eu próprio.
E como eu precisava disso...
Mas, talvez, de uma forma arrogante, ele apenas me diria de uma forma totalmente incompreensível:
— Vou lhe dar um conselho, e depois faça o que achar melhor. Sua força é a autenticidade. Não se esforce por ser o que não é, Ao contrário, lute para continuar como é. Você não deve procurar nada, já tem tudo, confie. Limite-se a tomar consciência de si mesmo. Acredite mais em você, procure ter um pouco mais de autoestima. Não busque uma linguagem nova, mas sim aprenda a escutar aquilo que você já possui. Defenda sua espontaneidade e com isso obterá também a naturalidade que se adquire ao longo do tempo pela confiança em si mesmo. Lembre-se de que viver é a arte de se tornar aquilo que já se é.
E se esfumaria para nunca mais voltar.
Exatamente como a esperança das coisas mudarem em minha vida.
Existia ainda a esperança? E, se existisse, por onde andaria ela?
Não em minha vida, certamente. Não naquela casinha onde agora eu morava sozinho com os fantasmas da minha vida, do que ela se tornara.
Quisera poder levar aquilo para um tribunal, caso ele existisse e isso fosse possível. No tribunal dos meus sonhos o inocente jamais seria condenado.
(continua)