"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".
(final)
VIII
Agora, aturdido, começam as revelações.
Papai não está mais aqui, e ao mesmo tempo nunca esteve tão presente.
Vejo-me dirigindo para ele mais uma vez, sua pergunta me pega desprevenido.
- E então, chefe, pensou no que quer fazer? No que quer ser? Pensou no vestibular?
Mantenho o silêncio por um momento que não quero que se torne longo demais. Não quero que o momento denuncie que estou procurando uma desculpa. Uma saída. Não quero dizer nada que ele não queira ouvir.
- Ainda não sei ao certo...
Ele olha a paisagem que passa rápida na lateral do carro.
- Sabe o que eu gostaria?... – inicia, como que hesitando.
- O que, papai? – respondo, aliviado pela mudança de direção da conversa. Ou assim pensava.
- Gostaria que você estudasse Engenharia. Para trabalharmos juntos. Poderíamos abrir uma firma juntos, o que acha?
Minha ponderação totalmente particular e secreta foi rápida. Eu estava (contra sua vontade, que só queria que eu estudasse) trabalhando na Polícia. Queria ser Delegado.
Mas não houve necessidade de pensar mais, minha decisão foi imediata, como se já tivesse sido tomada há muito tempo.
Decisão que só aguardava o momento certo para se materializar.
E o momento certo chegara.
Coloquei meu sonho secreto de lado, com carinho, para nunca mais pensar nele. Para minha surpresa, minha voz não tremeu.
- Acho que seria ótimo, papai. Vamos fazer isso.
O sorriso que iluminou sua face me comoveu.
E me revelou que eu lhe dera a resposta certa.
E me revelou que eu havia feito a escolha certa.
- Haverá vestibular em Mogi das Cruzes dentro de um mês. É melhor fazer sua inscrição, então – ele me disse, totalmente feliz.
Represento uma alegria que não sinto verdadeiramente, mas que aos poucos assim vai se tornando diante do que vejo em papai, um papai iluminado e feliz, um papai que de repente não está mais doente, um papai que de repente pode não ter mais os dias contados, um papai que, agora, tem a possibilidade de um futuro profissional com o filho mais velho.
1970. Sou aprovado no vestibular, mas a cidade é distante, tenho que sair de casa. Foi quando o perfume da Murta se despediu de mim, o perfume do até-breve-logo-estaremos-todos-juntos-outra-vez.
1971. Segundo ano da Engenharia Civil. A família muda para Taubaté, consigo a transferência, vamos morar todos juntos.
Mais alguns meses.
Então tenho que tomar minha decisão fatídica.
Então Deus leva meu pai embora.
Então não há mais volta.
Meu pai merecia aquilo, e muito mais.
Tudo o que eu poderia fazer e nem sempre fiz.
E fiquei com mal com Deus por levar meu pai.
IX
O mais estranho, depois que papai se foi, é que sua presença se fez mais constante em meus momentos bons e ruins.
Eu, às vezes, olhava para dentro de mim e via papai sorrindo à minha frente. Continuo vendo. Continua doendo.
Muitas vezes (até hoje) eu o vejo olhando para a distância. Quando ele inclina a cabeça daquela maneira que só ele tinha, desconfio que esteja no alto de uma montanha olhando a vista do topo. Mais precisamente: olhando o traçado das estradas que ele amava tanto.
Às vezes, chego a ouvir sua voz.
Muitas vezes ele fala sozinho, é quase incoerente, mas eu sei de seus sonhos, sei que ele não queria ir embora, sei que ele não queria nos deixar.
Então me vem a certeza de que ele está num local onde as fraturas se encontram.
Onde os pedaços da alma e coração se juntam.
Recebendo respostas para perguntas que talvez nem ele soubesse que tinha.
E, numa noite de delírio febril eu sonhei (?) com papai.
Estávamos numa beira de estrada, num belvedere, vendo o campo que se estendia abaixo todo branco, possivelmente coberto por uma improvável geada.
E a estrada seguia para mais alto, ainda.
E ele me dizia:
- Venha comigo... Poderíamos fazer a caminhada até o topo e olhar para a mata, ver as folhas das árvores caídas no chão. Talvez até encontraremos um pé de Murta, o que acha?
Comovi-me, diante de sua proposta.
- Florida? – perguntei - Com flores? Com muitas flores?
- E consegue ver alguma Murta que não esteja florida? – retorquiu, com seu sorriso de paz.
Procurei a resposta apropriada.
- Não, papai... O senhor me ensinou a vê-las sempre assim. Floridas, perfumadas. Meu céu se torna mais azul quando encontro uma Murta florida...
E de repente eu estava sozinho, como sempre me sentia.
E a realidade me atingiu fundo. Então completei o que não tivera tempo de concluir:
– Não estou dizendo que eu nunca havia notado que elas existiam, até que o senhor mostrasse a beleza delas para mim. Mas agora eu as vejo em quase toda parte. E isto meio que se difundiu para o meu modo de olhar as pessoas.
E completei, inconfessável, mais para mim mesmo:
- O que é bom, porque policiais tendem a ficar meio insensíveis com o tempo.
Papai me ensinara a amar livros policiais.
Quase pude ouvir sua resposta:
- Não seria isso que eu gostaria para você meu filho...
Aquilo me doeu fundo.
- Eu sei, papai... Não se preocupe, nunca permitirei que isso aconteça.
Porque, um dia, deparei-me com uma passagem num livro.
O pai sentado na beira da cama do filho pequeno, e lhe dizendo:
“- Filho, se você tivesse a certeza de que iria morrer esta noite, tivesse a certeza de que não teria outro dia, você poderia olhar para o que teria sido sua vida e se orgulharia do que fez? Se não, é melhor começar a se empenhar a partir de agora.”
Como lhe dizer, papai, que eu jamais faria conscientemente alguma coisa que fizesse o senhor deixar de se orgulhar de mim?
Que fizesse minha família deixar de se orgulhar de mim?
Que...
Eu, logo eu, que tinha um complexo de herói quase suicida...
Não, herói não.
Talvez as tentativas equivocadas das linhas tortas de ser uma pessoa boa.
Realmente boa.
Papai havia tentado me tornar uma pessoa forte. Aquela pessoa que tem um tipo de garra inata, aguardando para ser revelada e posta em ação.
O tipo que não se aprende.
Temo tê-lo decepcionado quanto a isso, papai.
Consigo ser forte para os outros.
Falho miseravelmente quando se trata de mim mesmo, perdoe-me.
X
Sento-me no gramado.
Fico olhando sem ver a cidade adormecida que desconhece o meu sofrimento, o meu estado de alma.
Fico olhando sem ver a via Dutra tão movimentada, uma das estradas que meu pai amava.
Fico olhando sem ver um futuro que não valia a pena.
Fico...
Só quando amanhece entro no carro e vou lentamente embora.
Para onde?
Que importa...
XI
Então chegara a hora de ir embora, quando vi minha mãe chorar pela segunda vez em minha vida.
Ela tentou bancar a forte, me abraçou como se não quisesse me soltar nunca mais, tremia muito ao fazer isso.
Beijei-lhe a face, e comecei a sair.
Da porta olhei minha mãe uma última vez, ela estava em pé no meio da sala, olhando para o nada.
Parecia um pesadelo.
E o era, de certa forma.
Mas não importava o que eu achasse.
Mesmo que eu imaginasse que estava embarcando numa espaçonave para ir a outro planeta, eu tinha a consoladora certeza de que mamãe iria atrás para me procurar se eu não voltasse mais.
E não desistiria enquanto não me encontrasse.
E não desistiria enquanto não me colocasse em seu colo e me trouxesse de volta para casa, o seu eterno menino.
Fui para a rua, o vento me trouxe o perfume da Murta que também se despedia de mim.
Só que meu céu, desta vez, não se tornou mais azul.
XII
O tempo passou.
Mas não a saudade.
Aquela “que-falta-você-me-faz”.
E agora, já formado, eu havia parado o carro numa praia deserta de Ubatuba.
Sentado no capô, fiquei olhando a lua refletida no mar tão calmo e que tornava as águas de um prateado-dourado indescritível, nuances apenas perceptíveis pelas variações de nossos estados de alma.
A brisa suave traz até mim o cheiro da maresia mesclado ao delicado perfume da Ciosa que me lembra a parente Murta (talvez) que eu deixara numa Araraquara tão distante e improvável.
O rádio do carro começa a tocar baixinho I’ll be seeing you (Estarei vendo você), e aquilo me destroça o pouco que me restou de alma.
Quase sem o perceber eu me levanto.
Quase sem o perceber eu fecho os olhos.
Quase sem o perceber eu me envolvo em meus braços, abraçando a mim mesmo.
Então, como se num desvario inexplicável, sinto meus pés começarem a se mover lentamente na areia fofa.
Como num desvario inexplicável, sem sentido algum, começo a dançar comigo mesmo.
Louco?
Talvez.
De saudade.
FINAL
E lá fui eu pela vida afora.
Tentando acertar.
Tentando corresponder ao que esperavam (e esperam) de mim.
Querendo acertar.
Precisando acertar.
Éramos sete.
Continuamos sete.
Mesmo que, no lugar de papai, uma saudade.
Incoerentemente, nunca houve uma ausência tão presente.
Mas, agora...
O pai sentado na beira da cama do filho pequeno, e lhe dizendo:
“- Filho, se você tivesse a certeza de que iria morrer esta noite, tivesse a certeza de que não teria outro dia, você poderia olhar para o que teria sido sua vida e se orgulharia do que fez? Se não, é melhor começar a se empenhar a partir de agora.”
No lugar do pai da história, meu pai.
Sentado na beira da cama de cada um de nós.
Da mãe e irmãs maravilhosas que ele me deixou como família.
E perguntaria a cada um de nós, com sua voz suave e plena de bondade:
“- Nega, se você tivesse a certeza de que iria morrer esta noite, tivesse a certeza de que não teria outro dia, você poderia olhar para o que teria sido sua vida e se orgulharia do que fez?”.
“- Filhas, se vocês tivessem a certeza de que iriam morrer esta noite, tivessem a certeza de que não teriam outro dia, vocês poderiam olhar para o que teria sido suas vidas e se orgulhariam do que fizeram?”.
“- Filhos, se vocês tivessem a certeza de que iriam morrer esta noite, tivessem a certeza de que não teriam outro dia, vocês poderiam olhar para o que teria sido suas vidas e se orgulhariam do que fizeram?”.
E nossa resposta unânime (graças a Deus):
- Sim, papai. Tivemos um bom mestre, o melhor deles. Deus o abençoe pelo que nos tornou.
FIM
DEDICATÓRIA
Dedico esta história verídica, parte de nossas vidas, à nossa mãe maravilhosa que teve que se tornar também nosso pai.
Às minhas irmãs maravilhosas, companheiras de uma jornada difícil.
A nosso irmão, que às vezes caminha por veredas tortuosas que só ele sabe, mas sem perder a generosidade e o amor pela vida.
E a meu pai, nosso pai.