"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".
Às vezes as pessoas me pegam desprevenido, e pedem que eu conte alguns casos de meu passado como policial em São Paulo. Na verdade, não gosto muito de falar sobre isto, porque certos fatos, como diz o Zen-Budismo, "quem sabe não fala, quem fala não sabe".
Fui conhecido como policial violento. Na realidade, as coisas não eram bem assim, eram mais questão de aparências. Comecei na Polícia Técnica, depois ingressei na antiga R.U.D.I. (Rondas Unificadas do Departamento de Investigações), que hoje corresponde ao GARRA (Grupo Armado de Repressão a Roubos e Assaltos).
Com pouco mais de 18 anos, na primeira ronda tive o desprazer de ser o responsável único e direto por duas mortes. Com cara de l5 anos, no alto de meus 1,73m, e com o respeitável peso de 55 kg, cheguei no inferninho (tipo daqueles em que nem o diabo entra para não se comprometer) , e bradei : "Polícia, todos com a mão na parede".
Dois dos presentes, diante de minha letal aparência de autoridade, riram tanto que acabaram tendo uma síncope cardíaca fatal.
Gostava muito de colocar bandidos no pau-de-arara. No sentido figurado, é claro. Como diria o Delegado Sivuca (RJ): "- Sabe não ? É um pau com mais ou menos dois metros. Tira-se a roupa do vagabundo, isto abate moralmente. Coloca-se o mesmo sob o pau, onde caminha uma arara (imita com os dedos as perninhas indo e vindo). Pergunta-se o que se quer saber, avisando que a arara acabou de fazer sua refeição e está chegando a hora dela ir no banheiro, que é melhor que ele fale logo, antes que ela resolva "fazer o serviço". E ele fala". Ninguém quer voltar para a cela "ararado".
Quando isto não dava certo, passava-se ao chamado pau-de-arara mental. Iniciava-se com perguntas discretas, para relaxar, tipo "qual a cor de sua primeira fralda", "qual o time de sua preferência", coisas assim. Depois que o vagabundo cansava, que seu raciocínio não conseguia mais acompanhar o que dizíamos, passava-se às perguntas que realmente interessavam.
Tínhamos muita consciência da obrigatoriedade do chamado dever cumprido. Era uma questão de honra. Nosso lema de trabalho, era "Mato ou Morro". Isto aparentemente indica uma atitude suicida, mas não era bem assim, era questão da devida interpretação : nos tiroteios, não havendo mato, deveríamos correr para o morro mais próximo
Fomos injustamente acusados de pertencer ao Esquadrão da Morte. Isto nunca existiu, foi uma invenção dos jornais paulistas e cariocas para aumentar as vendas, do que se aproveitou a televisão para aumentar a audiência. Quanto muito, pertencíamos ao Esquadrão de Morte. Já deu para perceber que ali só tinha gozador, né?
Saí da Polícia quando me formei Engenheiro Civil, sob o veemente protesto da classe das Funerárias, que em passeatas alegavam que minha saída era ruim para os negócios, no que foram apoiados pela dos Alfaiates, que argumentavam que deixariam de cerzir inúmeras roupas já que, como se sabe, as balas tem o mau costume de furá-las.
Certa vez – contava eu - cercado por cinco bandidos, um deles se aproximou, apoiou a arma em meu peito, e disparou. Uma das ouvintes, não se contendo, exclamou transita de pavor: "- Mas que horror, ele poderia ter atingido seu coração".
"- Não havia o menor perigo ,– tranqüilizei-a. – Neste momento, eu já estava com o coração na boca".
Éramos muito queridos entre a marginalidade. Quando a equipe chegava, era aquela orgia, corria até quem não devia.
Afinal, éramos pacifistas na integral acepção da palavra. Como se sabe, pacifista é todo aquele que abomina a violência. E era o nosso caso, posição esta que se evidenciava quando dizíamos com toda a delicadeza : "- Ou vocês tomam jeito, ou vamos até aí e arrebentamos todo mundo". E defendíamos os chamados Direitos Humanos, quando bradávamos que "vagabundo tinha que ser enterrado em pé para não ocupar espaço".
Não deixávamos inimigos entre os bandidos, mandávamos todos para o cemitério: conseguíamos emprego de coveiro para todos eles. Quando muito, ao sermos perguntados pelo paradeiro de um determinado facínora que havia sofrido, digamos, um acidente de trabalho, às vezes respondíamos: "- Ah, este já está comendo capim pela raiz".
Na verdade, minha equipe era muito humanitária. Não podíamos ver um preso com fome que pegávamos imediatamente a palmatória e lhe enchíamos as mãos de bolos. Eu, particularmente, com meu sensível coração, não podia ver algum preso com tosse., ministrava-lhe uma generosa dose do laxante mais forte que houvesse.
- Mas isto dá certo, Doutor? – perguntava o doentinho. Eu colocava paternalmente a mão em seu ombro e respondia:
- Claro, meu filho. Deixe fazer efeito, e depois tussa se for capaz.
Minha equipe era também muito religiosa, obedecíamos os ritos de um determinado ramo do espiritismo, trazendo sempre na viatura um singelo e simbólico pedaço de cabo de enxada: o exu-guatambu. De vez em quando ele baixava nos bandidos. Era benéfico, era bom para dar humildade e respeito.
Eu tinha muito cuidado com a integridade física dos marginais. Certa vez um deles acidentalmente bateu com o rosto na minha mão direita que naquele momento estava casualmente fechada. Fiquei apreciando aquela linda coloração marrom-azulada que se espalhava pouco a pouco.
- "Isto não vai ficar assim"- protestou..
-"Não vai mesmo" – confirmei. " Vai inchar e doer um bocado".
Humilde e modestamente, vou revelar para vocês que naquela época eu era conhecido como Pontaria Fatal. Nunca acertava o tiro onde devia.
Certa vez estávamos sendo ouvidos no Forum quando- não sei até hoje o porquê, o digno Juiz rugiu, inexplicavelmente indignado :
- "Como se atrevem a dizer que a vítima morreu de morte natural, se vocês lhe deram dezenove tiros?"
-"Mas, Meretíssimo – respondemos – com dezenove tiros não era natural que morresse?"
Reconheço, entretanto, que minha fama de mau era totalmente injusta e improcedente. Certa vez, numa diligência, um marginal reagiu à prisão a tiros, acertando-me de raspão no lado da testa. Prometi que numa oportunidade iria retribuir igualmente a cortesia, o que aconteceu semanas após. Agora, digam-me vocês com toda a sinceridade e senso de justiça: tenho alguma culpa se ele se mexeu na hora, tenho?