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Sentimentos - Fernando Coimbra dos Santos

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"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".

 


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Flamboyant Florido cap XX ao cap. XXI

Quarta, 26 de setembro de 2018


(continuação)

XX

Começaram a ir pescar todo entardecer. Gabriel mostrou-se um aluno dedicado, sem bem que, para ele, a pescaria fosse só um pretexto para estar ao lado de José sempre que pudesse.

Conversavam, confidenciavam, sofriam juntos, se alegravam juntos. Gabriel começou a vivenciar uma vida de luta e misérias da qual nunca tivera o menor conhecimento.

Às vezes Maria vinha junto, ficava por lá um pouco, depois deixava os dois e voltava para o caramanchão florido onde os aguardava.

Numa daquelas tardes Gabriel começou a arreliar o amigo, que depois de duas horas nada pescara.

- E aí, pescador? Vamos ter que passar na peixaria hoje para não voltarmos de mãos tão vazias?

- Não gosto de pegar peixes pequeninos como o que você pescou - respondeu José, num tom levemente jocoso, sem deixar claro se estava falando sério ou não. - Estou só esperando aparecer o maior de todos. Você vai ver.

Gabriel riu, zombeteiro.

- Isso está me parecendo história de pescador...

Naquela tarde não havia uma brisa sequer, mas como da outra vez ondas oceânicas surgiram inconcebivelmente na superfície do lago. Surpreso e embevecido, Gabriel viu ondas que se propagavam suavemente de início, e depois ondas maiores que se quebravam e batiam na margem do lago.

Uma delas, como da outra vez, formou uma crista e quebrou perto deles, espirrando água em suas roupas e em seus rostos. Novamente Gabriel sentiu o gosto em seus lábios, e era indiscutivelmente salgado.

Então, incrédulo, viu um inconcebível, magnífico e imenso marlim azul oceânico saltar ao longe, preso inapelavelmente à linha de José. (Ali era uma cidade mágica onde coisas mágicas aconteciam, lembra-se?).

Também inconcebivelmente, a lembrança surgiu fácil, necessária, imprescindível, compatível. Em algum lugar impreciso e do qual não se lembrava mais reviu o desconhecido tocando sax, curvando o corpo, se endireitando e gingando como se bailasse com o instrumento, a música bela e viva, iluminando-o por dentro, tocando com sua alma.

Agora o músico era José, o saxofone era uma vara de pesca, a música era um lindo marlim azul que saltava vezes sem conta como se bailasse ao ritmo de uma música maravilhosa, José curvando o corpo, endireitando e gingando como se bailasse com o peixe, a música bela e viva, iluminando-o por dentro e por fora.

Ainda inconcebivelmente para as forças que José não tinha mais, o marlim de mais de três metros de comprimento se entregou, uma onda o trouxe aos pés do pescador que o tomara do mais profundo dos oceanos.

Então o encantamento se quebrou, as ondas cessaram, o oceano se aquietou, voltou a ser o pequeno lago. Mas o enorme peixe, o maior de todos (como José prometera) ali estava.

- Meu Deus – murmurou José, incrédulo – nunca havia pescado um peixe tão grande... preciso mostrar isso para Maria...

Tão incrédulo quanto ele, Gabriel colocou a mão sobre seu ombro.

- Não acredito... isso é impossível...

(O rosto de Sophia, com um sorriso zombeteiro, materializou-se em sua mente, ouviu suas palavras: “- Lembra-se que eu lhe disse que esta é uma cidade mágica, meu filho?”.)

Correram para o bloco, Gabriel chamou o encarregado e lhe deu instruções para remover o imenso marlim azul. Havia carne ali para alimentar a todos por mais de dois meses, caso se dispusessem a comer só peixe. Então voltou os olhos à procura de José.

Alcançou-o próximo ao caramanchão, ouvindo-o chamar ansioso Maria vezes seguidas, sem resposta. O banco do caramanchão onde ela sempre estava agora se encontrava vazio.

Uma enfermeira se aproximou, com cuidado disse que Maria se sentira mal e estava em seu quarto, Gabriel pediu calma a José, acompanhou-o até lá, pararam diante do leito.

Maria estava deitada na cama coberta por um lençol que ondulava quase que imperceptivelmente sob sua respiração calma. Em suas mãos, duas flores, uma azul e outra verde.

Ela sentiu a presença do amado, abriu os olhos à sua procura, sorriu feliz.

Com voz sumida, perguntou:

- Meu querido...  como foi a pescaria hoje?

José, agora aliviado, agora novamente um menino, respondeu com plena felicidade:

- Pesquei o maior de todos, Maria, o maior de todos. Mostrei ao “seo” Gabriel que não era história de pescador...

Maria fechou novamente os olhos, sem deixar de sorrir. Então suas mãos se tornaram flácidas, as flores caíram no chão. José se abaixou para pegá-las, com a dificuldade que a idade lhe impunha.

- Não se preocupe, querida, eu as pego para você.

Estendeu as flores para ela, então ficou terrivelmente pálido, sabendo que alguma coisa estava errada, muito errada. Aproximou-se mais do leito, colocou a mão trêmula sobre o rosto da esposa que amava tanto, sem se dar conta do que fazia começou a murmurar vezes sem fim:

– Por favor, Deus, por favor, por favor, por favor, por favor...

Com um olhar desesperado onde explodia a dor, a incredulidade, e uma absurda esperança, voltou-se para Gabriel e suplicou:

- É mentira, não é? Ele vai voltar, não vai, “seo” Gabriel?

Consternado e abalado, Gabriel colocou um dos braços sobre os ombros de José, depois cobriu os próprios olhos por um instante com a outra mão. Então o abraçou e disse com voz embargada:

- Não, meu amigo. Ela não vai voltar...

José grunhiu alguma coisa ininteligível, jogou as costas para trás e por pouco não foi ao chão. Então deixou escapar um urro que dava a medida exata da dor incomensurável que estava sentindo.

Muito depois deixou-se conduzir docilmente para fora do quarto.

Gabriel se condoeu e se sentiu um inútil por não ter o que dizer, por não saber o que dizer. Ele sabia que seres vivos não podiam ser simplesmente substituídos.

Maria foi a primeira pessoa da família do Flamboyant Florido a ser sepultada no cemitério próximo à grande árvore sempre florida.

Tristes flores...

Jose pouco conseguiu falar. Amparado por Gabriel, depois que tudo acabou, depôs carinhosamente um grande ramalhete de flores azuis e verdes sobre o túmulo.

Com os olhos vazios de quem perdeu tudo o que tinha no mundo, enfim conseguiu dizer a Gabriel, que teve que se esforçar para escutar o que ele dizia, tão baixinho falava:

- Sabe, “seo” Gabriel, Maria e eu tínhamos um pacto. Havíamos combinado morrer juntos. Mas eu pedia secretamente a Deus que a levasse primeiro, se fosse preciso. Eu não a queria sofrendo sozinha neste mundo. Rogava a Deus que então a levasse primeiro, mesmo eu sabendo que iria morrer de saudade depois... Tinha medo que ninguém cuidasse dela... Não sabíamos que alguém como o senhor existia...

Gabriel se sentiu comovido. Com voz entrecortada, respondeu:

- Eu sempre cuidaria dela, meu amigo... como irei cuidar agora de você, o meu querido professor de pescaria...

Apesar de tudo José riu, um sorriso triste, desamparado, irreal.

- Não, “seo” Gabriel, agradeço, mas não será preciso. Sei que vou morrer de saudade... é o meu jeito de reencontrar logo minha Maria...

Por dois dias José esteve ao lado da sepultura, sempre levando um ramalhete de flores azuis. Então, no segundo dia, como sabia como iria ser, como tinha que ser, mansamente morreu de saudade.

Foi encontrado com um sorriso feliz nos lábios.

Gabriel soube inquestionavelmente que aquele sorriso revelava que ambos estavam novamente juntos, do outro lado da ponte do arco-íris, onde um dia os reencontraria.

Novamente a imagem de Sophia se materializou diante de si, ela sorrindo e lhe lembrando: “- Morrer é uma palavra muito forte, filho. E também muito inexata. Vamos dizer que eles foram para outro nível de existência. Muito mais elevado, por sinal. Agora eles vivem dentro de nossos corações. As fronteiras entre a vida e a morte são muito tênues. Acha que um dos nossos seria capaz de fazer alguma coisa assim tão... tão prosaica?

Consolou-se.

Mas suas defesas se romperam quando entrou inadvertidamente na despensa do refeitório e se viu diante de si próprio, de José, e da grande caixa de isopor que voltava repleta de peixes.

Agora, repleta de lembranças.

Com esforço, Gabriel se arrastou de volta da beira do precipício.

 

XXI

A morte do casal, de certa forma, acabou afetando todo o Flamboyant Florido. Nos adultos o sorriso era mais triste, mais contido. As crianças não sabiam ao certo o que acontecera, mas era palpável a tensão entre elas, Gabriel surpreendeu dois garotinhos brigando aos murros.

- Epa, epa , epa... – disse, aproximando-se rapidamente e separando os dois. – O que está acontecendo aqui?

O maiorzinho apontou o outro, com ódio, e respondeu:

- Não gosto deste pretinho.

Gabriel se espantou com a resposta. Tão pequeno, e já possivelmente preconceituoso? Aquilo era inadmissível, em todos os sentidos. Ele sabia que a intolerância não nasce com as pessoas, ela é ensinada.

Levou os dois pelas mãos até um banco, sentou-se, deixou os dois de pé diante de si, olhando-os com seriedade, mas sem ameaça, sem violência, uma tranquila demonstração até inconsciente de autoridade.

O maiorzinho baixou a cabeça ante seu olhar.

Mas, como ser compreensível com uma criança de quatro anos, face ao alcance do que precisa ser dito?

- Em primeiro lugar, Betinho – começou – não se diz “pretinho”. Temos que dizer “negrinho”. Em segundo lugar, é só a cor da pele. Sabe, se vocês se cortarem, o sangue corre igualzinho. E a dor também é igualzinha. Consegue entender isso?

O garotinho assentiu. Gabriel estendeu a mão para ele, e o pequeno se retraiu como se esperasse uma pancada.

- O que haviam feito com aquele garotinho? - pensou, penalizado.

- Calma, não vou bater em você. Eu nunca faria isso, Betinho.

Abraçou-o, beijou-o na testa, fez o mesmo com o outro em que as lágrimas ainda escorriam pela face, que ele enxugou com carinho.

- Não quero mais brigas aqui, certo? Principalmente por causa de cor de pele, isso não quer dizer nada. Temos que ser todos amigos, todos somos irmãos aqui no Flamboyant Florido. Combinado? Agora quero que vocês dois façam as pazes, apertem as mãos, e vão brincar. Mas sem brigas, certo? Nunca mais.

Beijou mais uma vez cada um deles.

- Sabe, Betinho, meu melhor amigo também era negro – contou ao garoto, lembrando-se do saxofonista. – Tenho um retrato dele lá na minha sala. Depois levo vocês dois lá para ver, combinado? Agora, vão brincar. Como dois irmãos, que é o que vocês são.

Desfez os cabelos de ambos num gesto pleno de carinho, os dois sorriram e saíram correndo.

Como se combinados, voltaram-se lá adiante e acenaram um “até logo” para o adulto que os tratara com amor e respeito.

Sem saber de onde, uma ideia literalmente explodiu na mente de Gabriel, que respondeu a aceno e lhes gritou:

- E à tarde vamos ter uma festa com bolo, doces, refrigerantes e bolas de bexiga, vocês são meus convidados.

Ficou vendo os dois se afastarem, braços passados sobre os ombros um do outro, amigos outra vez. Não teve como não murmurar para si próprio:

- Ah, meu Deus...

À tardinha foi a Redenção buscar um velho homem que vendia bexigas, todas de cores diferentes. Trouxe também um grande tubo de hidrogênio, para enche-las, o que aumentou ainda mais a curiosidade das crianças que não sabiam para o que servia aquilo.

Evidentemente, o velho sabia o que fazia, pois deixou o primeiro balão inflar demasiadamente e estourar, cativando ainda mais a atenção de todos os pequenos que o rodeavam.

Conforme as instruções que recebera, inflou uma de cada cor, amarrou cada uma com uma linha e as prendeu separadas em uma longa travessa horizontal. A criançada, extasiada, admirava as bexigas que flutuavam e balouçavam alegremente sob a brisa que soprava, querendo subir ao mais alto dos céus.

Então pegou uma grande tesoura, aproximou-se do balão vermelho, fez um grande gesto teatral de suspense, e diante dos olhares estarrecidos, cortou a primeira linha.

O balão subiu mansamente, cada vez mais e mais, até desaparecer ao longe, sob o aplauso deliciado dos pequenos que nunca haviam visto aquilo.

Depois de ter soltado o balão vermelho, o homem soltou um azul, depois um amarelo e, finalmente, um branco. Todos foram subindo até sumirem de vista. As crianças, de olhar atento, seguiam cada um, imaginando mil coisas.

Então olharam a única bexiga que restara: a preta.

Estranharam. O homem não soltava o balão preto, só sorria para eles sem nada dizer. Até que um dos garotos criou coragem, aproximou-se do velho e lhe perguntou:

— Moço, se o senhor soltar o balão preto, ele subirá tanto quanto os outros?

Gabriel se aproximou, sorriu para o menino. Então chamou Betinho com um aceno, ajoelhou-se, colocou o braço sobre seus ombros, perguntou suavemente, mas de modo que todas as crianças o ouvissem:

- O que você acha, Betinho? Será que ele subirá como os outros?

O menino o olhou rapidamente, confuso, depois voltou a olhar o balão que balouçava como se esperasse alguma coisa especial acontecer.

- Eu não sei... – respondeu, evasivo.

Gabriel riu e lhe entregou a tesoura.

- Betinho, vamos descobrir. Com cuidado, corte a cordinha.

Desajeitadamente o pequeno conseguiu cortar a linha, o balão preto se elevou triunfalmente nos ares, sob os aplausos dos pequeninos.

Então Gabriel recuperou a tesoura, beijou Betinho na testa, e lhe disse com voz amorosa:

- Não é a cor, filho, é o que está dentro dele que o faz subir. Espero em Deus que, um dia, você e todos os demais possam entender e aceitar o que estou dizendo agora.

Levantou-se, cônscio de que suas palavras eram incompreensíveis para tão pouca idade. Mas, um dia, talvez...

Respirou fundo, pediu que a criançada fizesse uma fila, o baloeiro inflou e prendeu uma alegre bola no pulso de cada um. Alegria só sobrepujada pela da criançada, que se deslumbrava com a novidade.

Então, depois que todos estavam com suas bexigas maravilhosas, bateu palmas e bradou:

- Vamos, queridos, a festa nos espera.

A garotada correu aos gritos para a mesa farta, Gabriel ficou a olhá-los com ternura.

Sentiu dedinhos pequenos se fecharem nos seus, era o irmãozinho negro que queria levá-lo para a festa.

Deu a mão para o pequeno. Não importava que um dia iriam seguir caminhos diferentes, importava o agora.

Foram juntos, abraçados, parecendo apenas pai e filho indo para uma festa do colégio.

(continua)

Leia:

Flamboyant Florido Intróito ao cap. II

 

Flamboyant Florido cap III ao cap. IV

 

Flamboyant Florido cap V ao cap. VIII

 

Flamboyant Florido cap IX ao cap. XI

 

 

Flamboyant Florido cap XII ao cap. XIII

 

Flamboyant Florido cap XIV ao cap. XVI

 

 

Flamboyant Florido cap XVII ao cap. XIX

 

 

 

 

 



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