Jornal Evolução Notícias de Santa Catarina
Facebook Jornal Evolução       (47) 99660-9995       Whatsapp Jornal Evolução (47) 99660-9995       E-mail

Sentimentos - Fernando Coimbra dos Santos

passageirodachuvagmail.com

"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".

 


Veja mais colunas de Sentimentos - Fernando Coimbra dos Santos

Flamboyant Florido cap IX ao cap. XI

Quarta, 29 de agosto de 2018


(continuação)

IX

No isolamento de seu quarto ficou por longo tempo diante do envelope, sem coragem de saber o que mais ele continha.

Mas isso era necessário. E não podia deixar de fazê-lo.

Respirou fundo, colocou o conteúdo sobre a mesinha do quarto, pegou a primeira folha dobrada e separada, as explicações (esperava) que o músico lhe devia e deixara. Era concisa:

 

“Meu querido amigo (permita-me chama-lo assim, pois assim você se tornou).

Por que demorou tanto? Não se preocupe com a resposta, nós a sabemos, não é mesmo? Cada coisa a seu tempo.

Fico feliz que seu tempo tenha chegado, às vezes a vida se torna dura demais. Às vezes nos cansamos de esperar.

Há muitos anos e em outro lugar, um dia eu estava a sonhar, mas meu mundo ia ficando cada vez menor. Tudo parecia exatamente igual. E nada mais era igual.

Um dia, como você, fui trazido para cá. Uma data que não pude esquecer. Porque, a partir daquele dia, nada voltou a ser como era. Como nada voltará a ser como era em sua vida.

Incompreensível? Só aparências. Mas isso é assunto para uma longa conversa pessoal no dia em que ambos estivermos do outro lado da ponte do arco-íris.

Não temos só nossos sofrimentos. Temos também nossas quimeras.

Definem esta palavra como sendo um sonho fantástico, fantasias, desejos difíceis de alcançar. Será mesmo?

Só se entende o sofrimento quando se vive dentro dele. Mas isso você já sabe, não é mesmo?

Agora vem o mais difícil: inventar uma vida para si. E para muitos que precisam de você.

Espero estar deixando meu legado para você, e que ele se torne o seu.

Deixo-lhe tudo. Eu não preciso de nada disso. Eu preciso de você. Nós precisamos de você.

Nas folhas à parte que se seguem, algumas instruções que – tenho certeza – você fará o impossível para realizar.

Obrigado por ter vindo.

Até um dia.

 

(No lugar da assinatura, de seu nome, uma apropriada clave de Sol).”

 

 

X

Tornou-se decidido a realizar (cumprir) o legado do músico. Descobriu que – mesmo sem que tivesse se dado conta disso anteriormente – aquele inesperado e inacreditável legado se tornaria exatamente talvez a razão que precisava para sua vida que julgava tão inútil.

Este simples fato o fez sentir como se estivesse num trem que mudasse bruscamente de direção. Não tinha volta. A única opção era continuar neste trem até o final da linha.

Como a senhorinha d’O Relicário lhe dissera, “temo que não há a possibilidade de uma recusa, não é uma simples questão de pegar ou largar”.

Como às vezes acontecia, começou inexplicavelmente a divagar, seus pensamentos surgiam desencontrados, incoerentes, sem nexo aparente.

As coisas poderiam ter sido tão diferentes - pensou.

Não – reconheceu - não são as coisas que poderiam ter sido diferentes, são as pessoas. As pessoas é que poderiam ter sido diferentes.

E ele queria, ele precisava, mais que tudo, se tornar uma pessoa diferente.

Nunca, em sã consciência, poderia ter imaginado que aquele ancião que segurara o sax contra o peito com tanto sentimento, logo faria parte do passado que recordaria. Sempre com uma pontada de dor.

Mas, ao mesmo tempo, sabia que a simples e rápida passagem daquele homem em sua vida era tudo de que precisava para se reerguer.

Quando Deus fecha uma janela, abre uma porta. Cabe a cada um de nós  encontrá-la. E era o que ele estava fazendo agora. Procurando sua porta.

O legado do musico era simplesmente uma coisa maravilhosa, sublime, até. O músico não tivera dinheiro para realizá-lo, mas ele tinha. Tornara-se o instrumento para que a ideia, o objetivo, se materializasse.

Sorriu, comovido.

- Como a senhora d’O Relicário diria, meus desígnios...

Talvez aquilo, enfim, desse um sentido à sua vida, a seus dias.

A exposição da intenção era clara, viável, exequível, necessária. Quanto mais apreendia os detalhes, as entrelinhas, mais as possibilidades se descortinavam, se revelavam, se apresentavam, se desdobravam e se completavam.

Em todos os dias que se seguiram ele conversaria com o morto (?) muitas vezes, o morto (?) que se fazia tão presente.  Ele nunca tivera uma participação tão clara na retirada de alguém dos braços estendidos da morte. E, nesse momento, soube que fizera exatamente isso. E sabia

que, acontecesse o que acontecesse depois, e onde quer que sua vida o levasse, ele sempre teria esse instante, que seria uma luz capaz de o guiar para fora do mais negro dos túneis.

Redenção, de repente, cresceu em sua mente. Ele esqueceu a imundície, as favelas, a nuvem negra de poluição, o calor insuportável, as multidões atordoantes das cidades grandes onde vivera.

Em vez disso, via o céu dourado ao entardecer, o rio imenso que ficava para além das casas, a beleza das antigas construções coloniais.

Em vez da umidade rasgada e do calor escaldante, ele era abençoado pelo calor suave da manhã, em vez dos ônibus perigosamente apinhados, via as ruas em festa com gente proclamando sua humanidade, um grande contraste com o que vivera até então.

Não existe isso de escrever certo por linhas tortas. Existe escrever torto por linhas certas.

Um dia, ele se perguntara: “Quem é o homem mais rico do mundo?”

Não teve resposta. Agora, ela o atingia, irrevogável, inquestionável: “O ladrão de lágrimas. A riqueza de um homem se mede pela quantidade de lágrimas que ele extrai de outros homens em seu funeral.”

Então se indagou se seria preciso que houvesse tantas mortes para que as pessoas se dessem conta do valor umas das outras. Isto, quando davam. Era outra pergunta que teria que procurar a resposta certa.

Pouco a pouco foi compreendendo a diferença entre a morte do músico e a de tantos outros ao longo de sua existência, foi tomando consciência da interminável sucessão de despedidas que a vida nos reserva.

Há momentos em que a realidade parece existir em uma dimensão paralela. Observamos de fora, vemos o quadro todo. Ela está ao nosso lado, sem ponto de interseção. Não conseguimos interagir.

Ele baixa a cabeça e assim permanece, com os antebraços apoiados na mesa. Depois fecha os braços em torno de si, como se abraçasse a si próprio. É como se tivesse subitamente encolhido — afigurava-se tão pequeno, tão indefeso...

Teve um desejo incompreensível, doloroso, impossível.

Queria pegar o sax e tocar até que o dia amanhecesse e trouxesse um outro mundo, onde pudesse esquecer as dores e contradições de sua alma, de sua vida.

Inexplicavelmente, lembrou-se de sua mãe (quase esquecida, no pouco que pensava nela, até por uma forma de defesa), ele pequenino, ansioso diante dos conhecimentos e consequências que a vida aos poucos lhe trazia sem pedir licença, decorrente da tragédia na vida de um amiguinho:

– Mãe, você não vai morrer, vai? – perguntara, baixinho.

A pergunta pela qual a mãe já vinha esperando. E temendo.

Deixou seu afazeres, limpou as mãos no avental, abaixou-se, abraçou-o, encostou sua testa na dele.

– Meu amor, um dia eu vou morrer, sim. Porque todo mundo morre um dia. Mas, sabe, ainda pretendo ficar aqui por muito, muito tempo.

Ele assentiu com a cabeça, as testas subindo e descendo juntas, então disse:

– Mas você... você não está pensando em ir embora, está?

Ela sabia exatamente em que ele estava pensando. Ou em quem estava pensando. Abraçou-o ainda mais forte e respondeu:

– Não, querido. Não estou pensando em ir embora. Não vou deixar você nunca. Prometo.

– Promete mesmo? Com mindinho e tudo?

A mãe ergueu o dedo mindinho e o colou no dele, dizendo:

– Mais que isso. Prometo com o mindinho e com o corpo inteiro!

Mas um dia a mãe pareceu esquecer aquela promessa e se foi para nunca mais voltar.

Respirou fundo, contornando os olhos marejados que ameaçavam transbordar. Era apenas uma lembrança. Mas não era apenas uma lembrança.

E aquilo o fez sentir no coração, com uma intensidade mais dolorosa que nunca, a dor da separação.

Então as palavras da senhorinha se fizeram presentes, vívidas, consoladoras, quando falara sobre o músico que também se fora:

- Morrer é uma palavra muito forte, filho. E também muito inexata. Vamos dizer que ele foi para outro nível de existência. Muito mais elevado, por sinal. Agora ele vive dentro de nossos corações.  As fronteiras entre a vida e a morte são muito tênues. Acha que um dos nossos seria capaz de fazer alguma coisa assim tão... tão prosaica?

Acreditou.

- Um dia estaremos todos juntos do outro lado da ponte do arco-íris - consolou-se.

 

XI

Muitas vezes, ao entardecer, caminhava vagarosamente até o pequeno lago que existia na propriedade. Gostava de brincar consigo mesmo, dizendo que era o seu mar, o mar de sua infância do qual sentia tanta falta e que nunca mais vira.

Naquela tarde não havia uma brisa sequer, mas ondas oceânicas surgiram inconcebivelmente na superfície do lago. Surpreso e embevecido, viu ondas que se propagavam suavemente de início, e depois ondas

maiores que se quebravam e batiam na margem do lago. Uma delas formou uma crista e quebrou perto dele, espirrando água em sua roupa e no seu rosto. Sentiu o gosto em seus lábios, e era indiscutivelmente salgado.

Caiu de joelhos, como se estivesse diante de um milagre. E não era isso, de certa forma, que estava acontecendo?

- Eu não sabia que isso era possível – disse a si mesmo, maravilhado.

- Tem muita coisa que você não sabe - o lago pareceu escarnecer, bondosamente.

- Tenho medo de não conseguir... – confessou, baixinho.

- Não - disse o lago (mas havia ternura em sua voz). - Siga em frente com a sua vida. O músico deu-a para você. Agora você só precisa crescer e tentar ser digno dela.

A expressão em seu rosto era neutra - quase confusa - e então a

confusão foi substituída por um sorriso, como se o mundo tivesse acabado de se reconfigurar em algo que fazia sentido.

Uma pequena região de sua mente se lembrou de uma sequência

alternativa de eventos, e então a perdeu, como se tivesse acordado de um sono reconfortante e olhado em volta, depois puxado a manta para se cobrir e retornado para o seu sonho.

Mas o lago (agora um mar, o seu mar) ainda não havia terminado.

- Acho que ele gostaria saber se valeu a pena – disse o lago, provocativo.

- Se valeu a pena o quê? – perguntou.

- Você - respondeu o lago, secamente.

Por um momento a confusão de seu rosto se refletiu nas águas de seu mar. Então perguntou, com voz sumida, temendo a resposta:

- E eu... passei?

A expressão nas águas que agora quebravam em ondas calmas era indecifrável sob o céu que escurecia. Então o lago respondeu com suavidade, incompreensível:

— Não existe passar ou ser reprovado em ser uma pessoa, querido.

A lua que aos poucos se refletia no lago estava cheia, e ele se pegou

instantaneamente pensando nos santos loucos da história, aqueles que foram pescar a lua num lago, com redes, convencidos de que o reflexo na água estava mais próximo e mais ao alcance de suas redes do que o globo que pairava no céu.

- Da próxima vez que ele mandar notícias do outro lado da ponte do arco-íris – pediu – diga que mandei lembranças. E agradecimentos.

- Vou dizer – falou o lago. – Ele vai ficar feliz de saber que você se lembra dele.

Sentiu-se irresistivelmente comovido.

- Diga-lhe também que estou cuidado de seu sax.

O lago pareceu rir.

- Ele sabe, querido, ele sabe... Cuide-se.

- Espere... Diga-lhe também que eu sinto falta de nossas conversas. Foram poucas, mas todas de qualidade.

- Ele sabe, querido, ele sabe... – repetiu, como se fosse um eco.

As ondas cessaram, seu mar se tornou novamente um lago de águas calmas que ondulavam suavemente sob a brisa da noite. Ele se perguntou se aquilo acontecera de verdade.

Então se lembrou das palavras da senhorinha d’O Relicário: “– Esta é uma cidade mágica, filho”.

- Ela parece três ou quatro décadas mais velha que eu – reconheceu. – E

poderia ser três ou quatro mil anos mais velha, ou mil vezes mais que isso. Eu confiaria nela para ir até os portões do Inferno sabendo que iria voltar.

A pedrinha de gelo em seu coração pareceu se aquecer naquele momento, e derreter. Começou a se sentir inteiro e a salvo de novo.

Colocou as mãos nos bolsos, começou a voltar para o hotelzinho que por enquanto se tornara o seu lar, assobiando um blues sem se dar conta do que fazia. Parou, voltou-se para o lago que brilhava à distância sob o luar.

- Eu amo você, meu oceano – gritou. Envergonhou-se em seguida, como se cônscio que alguém tivesse ouvido aquela atitude de criança.

— É só faz-de-conta, na verdade — falou, sentindo como se estivesse

acabando com o encanto da infância ao admitir aquilo. — Meu lago. Não é um oceano. Não pode ser. Oceanos são maiores que mares. Meu lago é só um lago.

Inconcebivelmente um grito lhe respondeu ao longe:

- Sou do tamanho que preciso ser.

Recomeçou a andar, imaginando um oceano correndo por baixo do universo inteiro, como a água escura do mar que ondula sob as tábuas de madeira de um velho atracadouro.

Um oceano que se estende de um infinito ao outro e ainda é pequeno o suficiente para caber dentro de um laguinho se você olhar com jeitinho.

De repente não sentia mais frio, sabia tudo, não estava mais com fome e o mundo grande e complicado era simples, compreensível, era fácil de desvendar. Ele ficaria ali até o fim dos tempos, num oceano que era o universo, que era a sua alma, que era tudo o que importava.

Ele ficaria ali para sempre.

 

Leia:

Flamboyant Florido Intróito ao cap. II

 

Flamboyant Florido cap III ao cap. IV

 

Flamboyant Florido cap V ao cap. VIII

 



Comente






Conteúdo relacionado





Inicial  |  Parceiros  |  Notícias  |  Colunistas  |  Sobre nós  |  Contato  | 

Contato
Fone: (47) 99660-9995
Celular / Whatsapp: (47) 99660-9995
E-mail: paskibagmail.com



© Copyright 2025 - Jornal Evolução Notícias de Santa Catarina
by SAMUCA