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Sentimentos - Fernando Coimbra dos Santos

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"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".

 


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Igaibira Canoa Entre Dois Mundos Cap. XVII ao Cap. XVIII

Quarta, 25 de julho de 2018


(continuação)

 

XVII

Tive o privilégio de trabalhar com o saudoso Dr. Maurício Henrique Guimarães Pereira quando ele era Delegado Seccional em Taubaté, SP.

Posteriormente tornou-se Delegado Geral do Estado de São Paulo.

Seus méritos, competência, honradez, honestidade e exemplo de vida pessoal e principalmente profissional, deveriam tê-lo tornado o Policial Modelo do Estado de São Pulo.

Não aconteceu oficialmente, não de Direito, mas de fato. Porque assim está ele na lembrança dos bons policiais que o conheceram, mesmo não tendo necessariamente trabalhado diretamente com ele.

Seu nome, entretanto – nas homenagens por mim e por muitos consideradas insuficientes –  batizou o prédio da Delegacia Geral de Polícia do Estado de São Paulo e a Penitenciária de Presidente Venceslau (SP).
Porém, em oito anos de polícia civil conheci e convivi com muitos delegados-maçaneta. Alguém sabe o que é isso?
Para os que não, eram os delegados que abriam portas servilmente para outros delegados (superiores), achando que assim seriam promovidos.
Vi muitas vezes no DEIC – Departamento Estadual de Investigações Criminais, delegados que ao invés de plantão ficavam estudando. E nunca passavam nos concursos.
Conheci e convivi não só com delegados-maçaneta, mas também com investigadores-maçanetas, escrivães-maçaneta, peritos-maçaneta…
Público e notório que ninguém entra na Polícia apenas pelos “lindos olhos” ou por indicações. Raros os que sobem nos quadros da SSP por indicações. Acontece, mas felizmente os apadrinhamentos são raros.
Dr. Maurício não foi só merecidamente um mito da polícia paulista, foi o maior policial que conheci. Era odiado pelo simples fato de ser decente, competente, de combater ferozmente e sem tréguas os maus policiais, os corruptos, os incompetentes, os desinteressados.

Como dizia Milton Le Cocq d’Oliveira, o legendário Le Cocq,“Nem sempre o bom agente policial é aquele que é bem visto aos olhos dos chefes. Às vezes é mal visto, mas cumpre sua obrigação. Não é permitido criticar a Polícia, mas ele faz crítica ao seu superior imediato, briga pelos companheiros. Apresenta sempre um saldo positivo. O mau policial é aquele que nunca é processado. É o que não opera, que vem à delegacia e fica sentado. Atende a todos com um sorriso, não resolve caso de ninguém. Em sua ficha não tem elogios. Também não tem punição. É um inútil”. (Le Cocq, anos 50/60).
Dr. Maurício era um destes bons policiais.  E também pagou seu preço por ser assim.
Como disse, tive o privilégio de trabalhar com ele. E o merecimento de ter-me tornado seu amigo pessoal, aquele amigo que às vezes, em nossos poucos encontros, conversávamos sobre Lao Tsé. Alguém aí que o critica sabe quem foi Lao Tsé? Não, não foi o chinês contrabandista lá de Santos.

Eu já havia saído da Polícia, mas nunca perdi contato com o meu amigo.

Chegava inesperadamente na DEAT – Delegacia Especializada em Acidentes de Trânsito (Detran-SP), onde era titular, anunciava-me e era prontamente recebido.

Tempos depois também inesperadamente chegava na Delegacia Geral de Polícia, anunciava-me, nunca esperei mais de dez minutos para ele se sentar a meu lado, chegava até a deixar esperando colegas que já estava atendendo. Ficávamos conversando por meia, uma hora, eu procurava ser breve para não atrapalhar seu trabalho, mas era benquisto e ele gostava sinceramente de conversar comigo.

Isto provocava curiosidade indisfarçável e inveja incontida em outros delegados que eram obrigados a aguardar uma vaga em sua agenda sempre lotada e atribulada, que por certo se perguntavam “quem era aquele idiota que era recebido pelo chefe com tanta deferência”.
Estes que hoje denigrem seu bom nome (e de seus familiares-seguidores) por certo continuarão a passar a vida abrindo servilmente portas. Há quanto tempo não fazem um curso? Há quanto tempo não se reciclam? Quantos dizem que têm “tantos anos” de Polícia quando na verdade esta “experiência” é o triste fato de que estão “tantos anos” simplesmente fazendo repetitivamente as mesmas coisas?
Cristo, considerado marginal pelo Império Romano, foi crucificado entre dois bandidos, e ainda levou um deles para o céu. Nem sempre bandido é bandido e nem sempre polícia é polícia. Nem sempre os “Dr. Maurício” de hoje serão reconhecidos e valorizados. Tudo depende das testemunhas e de quem é o escrivão de plantão na delegacia da História, como disse antes. Lamentavelmente.

Precisei de um favor dele uma vez, quando ele chefiava o Departamento  Territorial de Polícia do Estado de São Paulo.

Eu acabara de me formar e deixara a Polícia.  Em Ubatuba um vagabundo me reconheceu e quis tirar umas diferenças comigo. Simplesmente lhe dei uma violenta bofetada no rosto que o derrubou no chão. E fui cuidar da minha vida.

O delegado de Ubatuba não gostava de mim, tivéramos uns entreveros em Taubaté. O escrivão de Ubatuba era um velho conhecido de Cruzeiro, também havíamos nos desentendido por causa de um traficante que tinha sua cobertura.

No dia seguinte recebi uma intimação para ser ouvido e indiciado por lesões corporais. O vagabundo havia dado queixa, surgira a oportunidade de me darem o troco.

Não compareci, fui para São Paulo conversar e me aconselhar com Dr. Maurício, já Delegado Geral de Polícia.

Expliquei-lhe o caso, consternado. Ele riu.

- Só isso? – perguntou.

- Doutor...

Levantou-se, colocou a mão em meu ombro, deu-me um abraço, naquele dia havia gente do governo do estado aguardando em seu gabinete.

- Vá cuidar da sua vida, meu filho – disse-me despedindo.

- Mas, Doutor, meu tapa cortou a boca dele por dentro...

Ele foi pronto, riu novamente.

- Afta, meu rapaz. Tenha uma boa viagem.

No outro dia fui à Delegacia, o delegado simplesmente me fuzilou com os olhos, tudo estava cancelado como se nunca tivesse existido.

Porém os fatos não se encerraram ali. Eu havia sido um policial “cana dura”, mas era justo. Nunca dei dois tapas quando podia (ou precisava) dar um só, também figurativamente falando. Procurei ajudar muita gente quando via que era preciso dar uma oportunidade, fiquei credor de muitos favores a serem retribuídos, se fosse o caso.

A semana ainda não findara quando um marginalzinho que prendera certa vez em Taubaté se aproximou e me confidenciou que o escrivão havia dado um revólver ao bandido que recebera meu tapa. Com a incumbência de me matar.

O escrivão lhe fornecera meu endereço, e a recomendação que tivesse cuidado para não errar, já que eu era bom atirador e continuava a andar armado. Fui novamente à Delegacia.

O escrivão estava sozinho, entrei e fechei a porta de sua sala, encostando-me na mesma para que ninguém a abrisse. Olhei-o fixa e friamente, ele se desconcertou.

- Não tire as mãos de cima da mesa – aconselhei baixinho. – Você não irá gostar do que vai acontecer se fizer isso.

- Não... o que você quer?

Cozinhei-o em fogo lento, queria que ele sofresse, suor brotando em sua testa, suas mãos tremiam.

Fui incisivo e direto:

- Soube que você deu um revólver para o seu comparsa. Só passei aqui para lhe dizer que estou sabendo para que e lhe avisar que estou indo atrás dele. É melhor que você o encontre antes, porque se eu o pegar vivo, o levarei para o Doutor Maurício. Se ele resolver me enfrentar ele vai morrer. E depois é atrás de você que eu venho.

- Não... é mentira... eu não...

Interrompi-o.

- O recado está dado. Para seu bem, encontre-o antes de mim.

E saí, deixando-o a tremer em sua mesa. Soube posteriormente que ele conseguiu encontrar o vagabundo antes de mim, pegou o revólver de volta e mandou que o ordinário saísse da cidade para não mais voltar enquanto eu lá estivesse.

 

XVIII

Estava formado há dois anos. Saíra da Polícia, desencantado com o número cada vez maior de mercenários que se locupletavam dela para enriquecer indevidamente. Estava desiludido com a Scuderie, para mim sagrada e que, no entanto, estava tão conspurcada, tão destroçada por maus associados, os mercenários que Le Cocq se referia com tanta propriedade e exatidão.

De início pensara em me tornar um Perito Criminal Engenheiro, realizar pelo menos parte de meu sonho, mas tive a consciência que iria morrer na bala assassina de um mau colega, não na de um criminoso. E fechei mais uma página em minha vida.

Qual foi a gota d’água que transbordou o copo?

Ainda era policial quando, sozinho, parei a viatura defronte a um bar de má fama no Largo da CTI em Taubaté, desci e entrei. Quatro pessoas lá além do dono, quatro vagabundos que me olharam temerosos e já foram colocando as mãos sobre o balcão, mostrando que não iriam reagir. Mas ninguém dali me interessava.

No calor daquela tarde pedi um refrigerante, paguei, apesar da recusa do dono em receber, fiquei de costas para a parede bebericando-o devagar, aparentemente ignorando os presentes, mas sem deixar a cautela de lado.

Era inevitável, sempre que por ali passava, olhar as proximidades da porta da fábrica. Um dos meus primeiros trabalhos de investigação quando assumi em Taubaté foi me disfarçar de vendedor de amendoim e ali ficar tencionando prender um subversivo.

Vi quando o carro da prefeitura parou e dois fiscais desceram e vieram em minha direção. O chute inesperado me surpreendeu, a cesta na qual trazia os amendoins embalados me foi arrancada violentamente da mão.

Enquanto o outro fiscal me segurava, o primeiro espalhava e pisoteava os amendoins caídos, e destruiu a cesta. Em seguida me prensaram contra a parede, eu não podia reagir sob pena de quebrar o meu disfarce.

- Então você é um vagabundo que acha que pode vender aqui e sonegar a prefeitura – disse-me o primeiro, já me dando um tapa no rosto. Seu próximo ato foi enfiar a mão no bolso de minha camisa, pegar o dinheiro que ali estava e o colocar no próprio bolso. Eu acabara de ser extorquido.

- Espere aí, vamos conversar... – tentei iniciar um diálogo.

Desta vez foi um murro em meu estômago.

- Cale a boca, vagabundo. Aqui quem fala somos nós – interrompeu.

- Me respeite – implorei, vivenciando minha teórica condição de vendedor clandestino – não me bata...

Começou a juntar gente, apreciando o que acontecia. Comigo. Os dois se entreolharam, agora havia testemunhas, deixara de ser aconselhável continuar a me bater. Mas eu não quis me arriscar a apanhar mais, sem poder reagir. Vi a viatura da PM que contornava a praça, dei um empurrão no fiscal que me segurava contra a parede e comecei a correr.

Agindo como se não tivesse visto os policiais, dirigi-me exatamente onde eles teriam que passar. Foi colocar um pé no asfalto e a viatura parou diante de mim, bloqueando minha fuga. Um dos policiais saiu e rapidamente eu estava dominado.

- Prisão em flagrante, agressão contra dois fiscais municipais – disse um deles para os PMs, mentindo descaradamente.

Os policiais se entreolharam. Um filete de sangue me escorria de um corte pequeno no lado do rosto.

- Ele reagiu – explicou o fiscal. – Vamos para a delegacia.

Fui colocado no banco traseiro do automóvel. Felizmente, por descuido, não me revistaram, sequer me algemaram, senão teriam encontrado minha arma. Achei melhor ficar quieto durante o trajeto, mesmo porque não me perguntaram nada. O carro da fiscalização nos acompanhava.

Quando chegamos na Delegacia um dos colegas estava na porta, fingiu que não me conhecia. Ouviu a versão dos fiscais e disse que iria chamar o Delegado. E me conduziu para a sala dos investigadores com um sorriso indecifrável para os demais.

- Esperem aqui fora o Delegado atender – disse aos fiscais que sorriam e gracejavam da minha situação.

Fechou a porta às nossas costas e riu de mim.

- Levou a pior, heim?

Fui até o pequeno lavatório que ficava num canto para lavar o ferimento.

- É... por enquanto. Mas vai ter troco. Pode mandar os dois entrar – disse-lhe, tirando o jaleco branco. Sentei-me então na cadeira da mesa de atendimento, de costas para a porta. Ouvi-a sendo aberta.

- Podem entrar agora – convidou os fiscais.

Confundiram-me inevitavelmente com o pretenso delegado que ali estava.

- Boa tarde, Doutor – cumprimentaram.

Virei lentamente a cadeira giratória e os encarei, a arma displicentemente em minha mão. Os dois ficaram muito pálidos quando viram que era eu.

- Boa tarde, senhores – respondi com deboche. – Podem me relatar o que houve?

E me levantei colocando a arma no coldre, a algema visível a seu lado, caracterizando minha condição de policial.

- Por favor, feche a porta – pedi a meu colega.

Ele assim fez, ficando de costas contra ela, bloqueando-a.

Caminhei lentamente em direção ao que me batera e parei à sua frente, ele me olhava assustado e preocupado com o rumo imprevisto que os acontecimentos haviam tomado.

Estendi a mão esquerda lentamente, palma para cima.

- Meu dinheiro – pedi suavemente.

Ele o pegou e colocou em minha mão.

Olhei-o fixamente por um rápido momento. Então minha mão direita descreveu um arco e atingiu seu rosto com uma bofetada violenta, ele caiu no chão com o impacto. Os bandidos sempre diziam que meu tapa era pior que um murro. Aproveitei que ele estava no chão e desferi um chute em seu estômago, cuidando para não deixar marcas. Seu colega nada dizia.

Sem dizer nada agarrei-o pela garganta e o ergui. Outra bofetada, não tão forte desta vez, ele não chegou a cair.

- Valente, não é mesmo? –disse-lhe com deboche.

Fui lentamente até a mesa, abri a gaveta onde coloquei a algema e minha arma. Então pedi a meu colega que saísse com o outro da sala e cuidasse para que ele não fugisse, que ele seria o próximo a ter uma conversa comigo. E sorri sinistramente, o que deixou o camarada mais pálido ainda.

Voltei até o outro, que esfregava o rosto onde eu o atingira duas vezes. Dei-lhe a terceira bofetada.

- Agora, meu amigo – disse-lhe – vamos esquecer que eu sou um policial. Estou lhe dando o direito de reagir. Agora é de homem para homem. Como se você fosse um...

A quarta bofetada se fez ouvir. Ele se acovardou.

- Não, Doutor, eu não quero reagir, desculpe-me pelo que aconteceu, eu não sabia que era polícia.

Quinta bofetada.

- Se soubesse não teria acontecido, não é mesmo? Como foi? Pensou que eu era um pobre coitado, mais um que você costuma achacar, bater e ficar por isso mesmo?

Sexta bofetada. Estavam ficando mais fracas, comecei a me sentir cansado e com a mão doendo. Abri a porta e fiz o outro entrar. Voltei-me então para ele, que continuava calado, pálido.

- Desta vez você deu sorte – disse-lhe. – Cuide para que não haja uma próxima vez. Pelo menos, comigo.

Apontei para o corredor.

- Vão embora. Não aconteceu nada aqui, entenderam? Senão vamos conversar diferente. E não vai ser bom para a saúde de vocês.

- Sim senhor – responderam, praticamente em uníssono.

Coloquei a mão no ombro do que me batera.

- Um momentinho... você me deve cinquenta. Pela cesta e pelos amendoins que estragou.

Ele pegou a carteira e me deu uma nota de cem. Olhei-a com atenção.

- Quer troco ou quer me subornar? – perguntei com suavidade.

- Por favor... não tenho cinquenta trocado...

Dei-lhe o troco e um empurrão.

- Tenha um bom dia, senhores – disse-lhes.

E agora, ainda não havia terminado meu refrigerante quando um automóvel parou, dele desceram cinco bandidos. Coloquei a garrafa sobre o balcão e voltei a me encostar na parede, atento.

O bar tinha duas portas. Em cada uma ficaram dois bandidos, bloqueando minha saída, o que seria um erro de estratégia. Intencional, no meu caso, não me importaria de abrir caminho à bala se preciso fosse.

E toda a bandidagem de Taubaté sabia disso.

O quinto bandido, o chefe, aproximou-se de mim, voltou-se para o dono do bar e também pediu um refrigerante, colocando a maleta no chão. Então, segurando a garrafa com ambas as mãos para demonstrar que não empunharia nenhuma arma, olhou-me e perguntou:

- Podemos conversar?

- Está com medo de mim? – retorqui.

Ele riu.

- Por que acha isso?

- Quer conversar, podemos conversar. Mas antes, mande estes quatro lá para o outro lado da praça. Ainda não atirei em ninguém hoje. E diga para eles ficarem onde eu possa ver cada um deles.

- Acha que consegue acertar todo mundo antes de levar um tiro?

Foi a minha vez de sorrir um sorriso falso.

- Talvez não, mas pode ter certeza que vou tentar. Só tem um detalhe: a primeira bala é sua. Você não estará vivo para saber o que aconteceu aqui depois. Talvez, quem sabe, poderá perguntar a eles lá no inferno...

Por um momento o sorriso morreu em seus lábios, percebi que ele ficou tentado.

- Vamos deixar como está... vim para conversar – acabou posicionando. Acenou para os quatro que após um momento de indecisão entraram no carro e foram estacionar lá do outro da praça, como eu havia pedido.

Como se fosse uma deixa o bar se esvaziou, somente o dono continuou ali, foi para os fundos e nos deixou os dois sozinhos.

- Dia quente hoje... – começou o bandido.

- Não enrole. O que você quer?

Colocou a garrafa sobre o balcão.

- Cuidado com as mãos – preveni. – Se estiver pensando em pegar uma arma, não irá conseguir.

- Não... se fosse isso nem teria mandado meus amigos para o outro lado da praça.

- Rapaz de juízo – debochei.

Ele me olhou com raiva.

- Bom, vamos ao que interessa. Estou aqui a mando de um delegado. Quanto você quer para parar de atrapalhar os negócios?

- Que negócios? Sabe, eu realmente acabo me metendo em muitas coisas... Tanto que até me chamam de inFernando. Pelas costas, claro...

Ele tornou a me olhar com raiva, eu não estava facilitando.

- Tudo que der dinheiro – acabou respondendo.

- Ah, isso é muito vago. Se quer negociar, preciso saber realmente do que se trata. Que delegado?

Ele disse um nome.

- Tinha que ser... – respondi. – Mas não, nada feito, nem temos o que conversar mais. Agora, saia e caminhe na minha frente até seu carro, sem se virar para trás. E continue a ter cuidado com as mãos.

- Isso não vai ficar assim, você teve sua chance – ameaçou.

- Agradeço, mas nossa conversa acaba aqui. E não se esqueça de pagar o refrigerante antes de sair, é bom deixar o dinheiro em cima do balcão.

Ele me olhou, estarrecido.

- Bem que me disseram que você é louco... me prenderia por isso?

- E não seria um delito, por acaso? – provoquei.

- Está bem. Com sua licença, vou pegar o dinheiro.

- Com cuidado – voltei a recomendar. – Não me faça pensar que, de repente, você quer pegar uma arma...

Lentamente, olhando-me com maldade, ele pegou dinheiro no bolso da camisa e deixou uma nota sobre o balcão. Esperei que ele atravessasse a rua antes de sair do bar, só então fui para a viatura, dei partida e continuei meu caminho.

Lá adiante, pelo retrovisor, confirmei que não era seguido.

Naquela noite, em outro ponto da cidade, deparei-me com dois homens. Um era conhecido traficante, o outro, que portava uma maleta, eu nunca havia visto. O primeiro reconheceu a viatura fria que eu ainda dirigia sozinho, não titubeou um mísero segundo em sair correndo. O outro tentou disfarçar, saiu caminhando lentamente, emparelhei a viatura com ele e o mandei parar, arma na mão.

- Coloque a maleta sobre o capô e ponha as mãos sobre a viatura – determinei.

Puxei seus pés, afastando-os do veículo para lhe tirar a estabilidade e impedir uma reação imprevista. Revistei-o com a mão esquerda e me apoderei de um revólver que ele trazia na cintura. Então o algemei e o coloquei no banco do passageiro, a meu lado. A Rural descaracterizada não tinha o que chamávamos de chiqueirinho.

Peguei a maleta, sentei-me a seu lado e a abri, estava repleta de dinheiro.

- Ora, ora... o que temos aqui?

Ele nada disse. Fechei a maleta, coloquei-a sobre o banco traseiro, olhei em volta para ver se o primeiro bandido não estava nas proximidades constituindo uma ameaça, mas não, ele não era bobo. Nem eu.

Dei partida na viatura e me dirigi para a Delegacia, meu preso calado a meu lado. Depois de alguns momentos ele começou falar.

- Vamos fazer o seguinte – principiou. – Na maleta tem mais de cem mil.

Pegue este dinheiro, deixe-me ir embora e nós nunca nos vimos, está bem? Nunca ninguém irá saber disso.

Olhei-o, zombeteiro.

- Nada feito, nesta você dançou...

Ele me olhou fixamente.

- Não seja tolo, sei o quanto você ganha na Polícia como Investigador.

- Ah, não se preocupe quanto a isto. Sou pago pelo que faço. Se é pouco ou muito, isso é outro problema. Meu.

Ele então riu.

- Quantos anos você têm de Polícia?

- Doze.

Riu, novamente, nem sei do que. Mas logo vim a saber.

- E ainda não aprendeu como as coisas funcionam, seu trouxa?

- E como funcionam? – retruquei, como se não o soubesse.

Num tom de voz suave e baixo, como se fossemos dois conhecidos e não um policial e seu preso, ele continuou:

- Pois você não quer meu dinheiro, que seja. Não entendo como, mas que seja. E agora? Agora você vai me levar para a delegacia. Lá eu vou comprar o delegado. Se ele não quiser, o que acho ser impossível, vou ser autuado e fico preso até ser mandado a Juízo. No Forum vou comprar o promotor ou o juiz. Se eles também não quiserem, o que é inconcebível, vou comprar o oficial de justiça. Um dia ele vai me ligar lá em casa e avisar que a sentença saiu e que a polícia irá me prender. E eu não vou estar lá quando vocês chegarem. Pegue este dinheiro e me deixe ir embora, não complique...

- Puxa, então é assim é? Quem diria...– debochei. – Mas nada feito, tenho uma vida bem simples, não preciso de tanto dinheiro assim. Agora, cale a boca e me deixe dirigir. Sabe, como policial tenho que dar bons exemplos, não quero passar um sinal vermelho, por descuido.

Taubaté nem tinha semáforos naquele tempo.

Chegamos à Delegacia, peguei a maleta, desembarquei meu preso.

Olhei contrariado. O Delegado de Plantão era exatamente o generoso que havia mandado os cinco negociarem comigo à tarde no Largo da CTI.

- Mau, muito mau... – murmurei para mim mesmo.

Empurrei o preso para diante da mesa, colocando a maleta de dinheiro sobre ela. Expliquei os fatos para a chamada Autoridade Policial. Ele abriu a maleta e seus olhos brilharam quando viu tanto dinheiro. Fechou-a rapidamente e determinou:

- Tire as algemas dele, está dispensado. Daqui para frente, é comigo. E feche a porta quando sair.

Obedeci a contragosto, mas hierarquia é hierarquia.

A poucos metros da Delegacia havia um barzinho onde tomávamos café.

Pedi um café, um pão com manteiga, nem havia terminado de comer quando senti um toque no ombro. Voltei-me, era o meu preso.

- E aí, investigador, o café esta bom?

Automaticamente minha mão procurou o revólver, mas a visão do delegado entrando me paralisou. Ele me olhava com preocupação visível.

Meu preso pediu também um café, ergue-o em minha direção como se fosse um brinde, e riu na minha cara.

- Não lhe falei, seu trouxa? – repetiu.

Tive vontade de atirar nos dois. Mas, o que fazer?

Fui embora, desconsolado e desiludido.

Fui embora, desconsolado e desiludido, no dia seguinte levei o caso ao conhecimento do Dr. Maurício.

Hoje questiono minha honestidade, nunca peguei um só centavo que esteve ao meu alcance, sem qualquer risco.

Estava errado, deveria ter pego. Não para mim, o que seria errado, mas poderia ter feito tanto bem para instituições de caridade, através de doações anônimas, ao invés de deixar que fossem para um policial corrupto.

Mais dois meses e me formei, fui atrás de uma indicação de emprego.

Na volta, o ônibus do então Expresso Rodoviário Atlântico sofreu uma avaria na esburacada e precária estradinha de terra, na serra de Ubatuba, ficando atravessado na estreita curva, impossibilitado de se mover.

Descemos todos enquanto o motorista e o cobrador lutavam para trocar a roda que se desprendera.

Foi quando outro ônibus da mesma companhia veio em sentido contrário e deparou-se com a pista bloqueada, seus passageiros também desceram.

Fiquei conversando com um conhecido que ia para Ubatuba, sob a sombra de uma árvore. De repente, estarrecidos, vimos que praticamente todos estavam engalfinhados numa briga feroz.

Um idoso pegou uma alavanca de ferro que o motorista usava no conserto e preparou-se para dar um golpe fatal na cabeça de um oponente.

Num átino de segundo vi duas coisas: o rapaz ia morrer se alguém não fizesse alguma coisa, e este alguém teria que ser eu. A outra foi a pirambeira coberta por capim gordura por onde eu poderia me jogar, caso não me respeitassem e se voltassem contra mim. Dei dois passos para a frente, saquei a arma e dei um único tiro para o alto.

O estampido inesperado do .38 soou alto. Como se fosse um filme que tivesse partido, todos se imobilizaram grotescamente por um rápido momento.

Dei mais dois passos, fiquei no centro da estradinha e, ama para o alto para que todos a vissem, determinei:

- O pessoal deste ônibus pra baixo, o pessoal do outro para cima. O primeiro que bancar o engraçadinho leva um tiro.

Fui obedecido, depois de longos quinze minutos o conserto foi concluído, cada passageiro adentrou seu ônibus e seguimos viagem.

Nossa primeira parada foi em São Luiz do Paraitinga, parada regular do itinerário entre os municípios, fomos todos para o bar ao lado da agência do Atlântico.

Estava bebendo um refrigerante quando senti uma arma em minha têmpora direita, ao mesmo tempo que outra se anunciava conta minhas costas. Literalmente, me petrifiquei, estava rendido por dois policiais militares do destacamento local. Fui rápida e eficazmente desarmado, e estava para ser algemado quando um Delegado da Seccional de Taubaté entrou, também de arma na mão. Felizmente, era meu conhecido, em alguns plantões coincidia de trabalharmos juntos.

- O que está acontecendo aqui? – perguntou, a ninguém em particular.

Um dos policiais prontamente começou a  explicar:

- Doutor, acabamos de prender este perigoso bandido que estava armado...

O Delegado o interrompeu, eu continuei calado.

- Que perigoso bandido que nada – repreendeu. – Ele é da casa, é um policial civil.

Tomou meu revólver do policial e o devolveu para mim.

- O que houve? – perguntou-me.

Fiz um relato sucinto dos fatos, justificando que meu procedimento evitara uma morte. O Delegado então voltou-se para o cobrador que agora muito pálido estava junto à porta, e esbravejou:

- Seu ordinário... irresponsável... mentiroso... e vem me dizer que havia um bandido dando tiro dento do ônibus.

(continua) 

 

Leia:

 

Igaibira Canoa Entre Dois Mundos Cap. I ao Cap. II

 

Igaibira Canoa Entre Dois Mundos Cap. III ao Cap. V

 

Igaibira Canoa Entre Dois Mundos Cap. VI ao Cap. VII 

 

Igaibira Canoa Entre Dois Mundos Cap. VIII ao Cap. IV 

 

Igaibira Canoa Entre Dois Mundos Cap. X ao Cap. XI

 

Igaibira Canoa Entre Dois Mundos Cap. XII ao Cap. XIII

 

Igaibira Canoa Entre Dois Mundos Cap. XIV ao Cap. XVI

 



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