Jornal Evolução Notícias de Santa Catarina
Facebook Jornal Evolução       (47) 99660-9995       Whatsapp Jornal Evolução (47) 99660-9995       E-mail

Sentimentos - Fernando Coimbra dos Santos

passageirodachuvagmail.com

"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".

 


Veja mais colunas de Sentimentos - Fernando Coimbra dos Santos

Igaibira Canoa Entre Dois Mundos Cap. VIII ao Cap. IX

Quarta, 27 de junho de 2018


(continuação)

 

VIII

Como disse, era 1967, um dos chamados Anos de Chumbo.

Comecei a conhecer gente de nome no meio policial, principalmente da Repressão.

Até hoje eu ainda me pergunto: quantos fios de circunstâncias devem se entrelaçar, antes que seja tecida uma tapeçaria imaginária?

Quanto desta tapeçaria imaginária é verídica, parcial ou devidamente manipulada para atender eventuais interesses dominantes?

Quanto – ou o quê – sabemos do período hoje chamado Anos de Chumbo, ou Ditadura?

Quanto – ou o quê – destes fatos são verdadeiros ou maquiados? Quantos merecem nossa credibilidade?

Nos dias de hoje muitos fatos têm sido apresentados à geração atual de uma maneira no mínimo parcial. Tornou-se um modismo crucificar a chamada Ditadura, sem que se apresente a outra face da mesma verdade: o Terror.

Tornou-se conveniente – pelo silêncio imposto aos remanescentes dos chamados órgãos de repressão (Forças Armadas, Polícia Política) – mostrar os subversivos como indefesas vítimas de um regime dito autoritário.

Leia, pense um pouco e, só então, tire suas próprias conclusões.

O texto que se segue é de autoria dos jornalistas Paulo Markun e Ernesto Rodrigues. São algumas situações que fizeram história. Ou, pelo menos, deveriam ter feito Porque retratam verdades e realidades muitas vezes ignoradas, despercebidas ou simplesmente convenientemente manipuladas. São necessárias para uma melhor compreensão da verdadeira essência das coisas. Porque os fatos devem ser como eles são, não como eles parecem ser. Ou como são, às vezes, contados.

Na época, os dissidentes do regime político eram rotulados de Subversivos? De simples opositores?

Na realidade haviam inicialmente os Subversivos. Eram pessoas que discordavam do governo. A expressão de sua discordância seria a manifestação pura e simples da Democracia. No entanto, aos poucos muitos deles começaram a agir de outra maneira. Explodindo bombas, sequestrando, matando pessoas (muitas inocentes e sem qualquer ligação com o regime dominante), assaltando bancos. Esta maneira violenta foi o chamado Terrorismo. E que obrigou a adoção de medidas duras: combater o fogo com o fogo.

Os opositores, de início, levaram a melhor. A Polícia começou a combater as ações do Terrorismo como se fossem crimes comuns. As considerações da imprensa com a  morte do ex detetive carioca Mariel Moryscotte, ocorrida em 08 de Outubro de 1981 revelaram esta situação.

Mariel havia sido agente da Repressão, sua morte foi consequência direta com o Jogo do Bicho, mas suas ações – e de tantos outros policiais – estavam embasadas no modus-operandi da época, o qual aqui nesta edição especial é parcialmente retratado para uma melhor compreensão dos fatos.

Os militares e a Polícia estavam despreparados para o que enfrentavam. Mas, aos poucos, aprenderam com os erros. E a Repressão tornou-se extremamente eficiente.

 

A HISTÓRIA DE UM POVO É TAMBÉM A HISTÓRIA DE SEUS BANDIDOS

Estamos todos errados. Estudantes, intelectuais, donas-de-casa, empresários, operários do ABC, todos pensando que o Brasil é a inflação, o enfarte do presidente, as eleições de 1982 e, de repente, descobrimos que o Brasil é Mariel Moryscotte. Ou melhor, o Brasil não é simplesmente a Constituição ou a Lei de Segurança. O Brasil, pelo menos na versão carioca, é o mundo fantástico e violento do jogo do bicho, do futebol, da macumba e do carnaval.

O que se passa hoje na questão do jogo do bicho não é uma simples luta entre banqueiros, nem um combate entre polícia e bandidos, nem um simples caso de corrupção que envolve até o Judiciário e a política.

E se eu (Paulo Markun, em 1982) dissesse que Mariel está para nossa sociedade industrial assim como Lampião está para a sociedade rural nordestina? Exatamente. Que Mariel era uma espécie de Lampião do asfalto e que poderia merecer aquela definição de E. J. Hobsbawm, de “bandido nacional”. Não há dúvida. Se tivesse nascido há uns 200 anos na Catalunha ou na Sicília seria um “salteador de estradas” e viveria de “atividades rapinantes”. Ou, se fosse inglês, seria um pirata prestando serviços à coroa inglesa e ao comércio marítimo internacional.

Vivendo, contudo, no Rio, ele faz parte de um enredo tipo “samba do crioulo doido” onde jogo do bicho, esquadrão da morte e corrupção envolvendo Judiciário, polícia e política se misturam. Mas a confusão do enredo da Escola de Samba Unidos do Brasil só existe para os menos avisados. Há uma grande coerência nisso tudo que está acontecendo. Mas isso a gente só pode entender se operar um deslocamento na análise dos fatos. Quer dizer, assim como a renúncia de Jânio Quadros pertence muito mais à psicanálise do que à política propriamente dita, o assassinato de Mariel e os quiproquós em torno da repressão ao jogo do bicho não dizem respeito somente à Secretaria de Segurança. Na verdade, são um dos capítulos mais apaixonantes da sociologia e da antropologia brasileiras.

Por isso sou de opinião que se convoquem cientistas sociais para participar deste processo. Esse é um crime de utilidade pública. Não é todo dia que temos de mão beijada a erupção de um fenômeno como este.

As fundações de pesquisa deveriam investir maciçamente neste estudo; Bem dizia o antropólogo Roberto da Matta: “No Brasil a Constituição é passageira e o Carnaval permanente. O carnaval, digamos, e outras dramatizações e rituais que explicam muito mais a ideologia (ou ideologias) no país que toda essa vasta bibliografia acadêmica europeia que importamos.

Carecemos hoje de novos modelos teóricos que deem conta deste país descomunal. Gerações anteriores providenciaram modelos interpretativos que tiveram sua validade. De alguma maneira se podia compreender melhor o país vendo as matrizes de Casa Grande & Senzala e dos Sobrados e Mocambos (Gilberto Freire). Livros tão diversos no gênero quanto na qualidade, como Brasil, Terra de Contrastes (Roger Bastide). As Raízes do Brasil Sérgio Buarque de Holanda), Bandeirantes e Pioneiros (Viana Moog), A Redução Sociológica (Guerreiro Ramos), e outros, cumpriram uma certa função. Mas a realidade é inesgotável e é preciso engendrar novas formas de compreensão desse país para se evitar a esquizofrenia que se tem toda manhã quando no café lemos os jornais e descobrimos que somos os habitantes equivocados de um país que mal conhecemos.

 

BANDIDO TAMBÉM TEM HISTÓRIA

No seu livro Os Bandidos, Hobasbawm dá um significado social e histórico aos bandidos nas diversas sociedades. Ele estuda o “ladrão nobre” tipo Hobin Hood, “o vingador”, tipo Lampião, e os guerrilheiros haldkus, da Península Báltica. Estudando a máfia, os bandidos chineses e russos, Hobsbawm também abre um espaço considerável para Lampião, com referência ao Padrinho Cícero e a outro cangaceiro, Antônio Silvino.

Está lá registrada a contribuição brasileira à história universal do banditismo. Um registro incompleto, é verdade. É urgente que alguém escreva a história da marginalidade brasileira. Urgentíssimo que se componha a História dos Bandidos do Brasil, que nas universidades deve ser estudada ao lado da História das Ideias no Brasil (João Cruz Costa), História Econômica do Brasil (Caio Prado) ou da História Concisa da Literatura Brasileira (Alfredo Bosi). A história de um povo é também a história de seus bandidos.

Não estou brincando não. Nem blasfemando. Recentemente alguns historiadores franceses criaram o que chamam de “história nova”, uma maneira de estudar a história do país ou das comunidades não através das datas, revoluções e personagens, mas de um modo de estudar alguns aspectos antes julgados desprezíveis e que, no entanto, informam mais sobre a estrutura ideológica da comunidade que esses compêndios de história clássica. No Brasil, por exemplo, enquanto não se estudar devidamente o jogo do bicho, o futebol, a macumba e o carnaval, pouco se conhecerá dessa coisa chamada cultura carioca.

Nenhum bandido surge aleatoriamente. Cada sociedade tem o bandido que merece. E a história que vem de Lampião a Mariel é a ilustração da passagem de um universo rural feudal para uma sociedade urbana e industrial que, no entanto, não eliminou seus problemas estruturais. E assim como em literatura a gente pode organizar o estudo dos escritores em diversas gerações estudando os substratos históricos de cada grupo através de títulos como “O Modernismo de 1922”, “A geração de 45”, “As vanguardas de 1956”, também na história social do crime em nosso país se poderia disciplinar tal coisa através das gerações.

Por que não falar por exemplo de Lampião e a geração de 30? E que tal Zé da Ilha, Sete Dedos, Cara de Cavalo e a geração dos anos 40 e 50?  E por que não Tião Medonho e Mineirinho e a geração 60? É fundamental analisar Lúcio Flávio e a geração 70. E, finalmente, Mariel, o “homem de ouro” da geração 80. Assunto que dá direito a um subtítulo: a morte de Mariel e a abertura política do Governo Figueiredo.

Alguém pode dizer: esses bandidos não são “autores”, são “personagens”. Engano. São mais concretos que dois terços da literatura brasileira. E mais: são símbolos. Eles dramatizam, ritualizam e exemplificam uma série de conflitos latentes de nossa sociedade. São símbolos vivos. Deles escorre sangue.

 

NEM BANDIDO, NEM POLÍCIA

Muitos se lembram, nos anos 70, quando Lúcio Flávio Vilar Lírio explodiu nessa frase: “Polícia é polícia e bandido é bandido”. Referia-se à sua exaustão diante da figura ambígua de Mariel. Estava cansado de ter que dividir o roubo continuamente com a polícia.

Pois bem, Lúcio Flávio errou. Muito mais certo está o Gal. Muniz, Secretário da Segurança, quando reconhece que o jogo do bicho está aí e o jeito é legalizá-lo como forma de controlar e eliminar a corrupção. Certamente o Cel. Cerqueira partilha muito mais da teoria de Lúcio Flávio. Mas quem está com a razão é o Gal. Muniz. Porque do lado dele estão não só a história e a sociologia como a própria realidade brasileira.

Polícia não é polícia e bandido não é bandido. Tal diferença só existe nos fichários dos órgão de repressão. Exemplo primeiro: durante a Segunda Guerra Mundial, o exército Americano através do FBI firmou um acordo com a máfia siciliana para o desembarque das tropas aliadas na Itália. Como Mussolini havia engrossado contra a máfia, esta era sua inimiga. Os aliados não tiveram dúvida: guerra é guerra, e, por consequência, o mafioso, de repente, passou a ser herói.

Segundo exemplo: em 1926 a Coluna Prestes andava solta pelo interior do país infernizando a vida das polícias estaduais e o exército não conseguia deter os revoltosos. Diante disso o governo resolve convocar o Padrinho Cícero para ajudá-lo. Exatamente. O famoso messias cearense, político de enorme intuição, que mantinha ótimas relações com Lampião, resolveu chamar esse “bandido nacional” para lhe propor, em nome do governo, que fosse dar combate à Coluna Prestes.

Lampião chegou a se entusiasmar com o projeto, e além dos armamentos recebeu a patente dada pelo próprio Padrinho Cícero. Talvez sonhando em mudar de lado, ajeitar sua vida junto ao Poder. Advertido, porém, por um “coronel” seu amigo, Lampião deu uma contramarcha, Tivesse ido em frente, vejam só, e a história do comunismo e das esquerdas brasileiras teria sido outra.

Existe, portanto, um sistema de trocas entre ilegalidade e crime. E esses papéis, às vezes, se misturam. A PM carioca continuamente expulsa de seus quadros alguns criminosos. Já na Rússia do Czar, era diferente. Quando o indivíduo ia ser soldado, ele morria para o mundo. Seu compromisso era perpétuo. Por isso, dia Hobsbawm, “seus parentes liam o serviço fúnebre ao se despedirem dele à saída da aldeia. Homens que voltam de longe, sem amo nem terra, representam um perigo para a estabilidade de hierarquia social. Os ex-militares, tal como os desertores, constituem matéria-prima natural para engrossas as fileiras do banditismo”.

Mas do exército pode sair também o bandido-revolucionário, como Preste e Lamarca. E revolução e criminalidade podem também se encontrar. Quem leu o primeiro livro de Fernando Gabeira encontrou lá uma passagem onde narra seu encontro com Lúcio Flávio quando ambos saíam presos, num barco: “No mesmo porão iam uns 15 presos comuns. Um deles, que tinha um rádio de pilhas na mão, aproximou-se de mim. Parecia descendente de imigrantes: meio louro e de olhos claros. Perguntou-me se queria ouvir um pouco de rádio e começou a conversar. Sabia quem eu era e queria conhecer a minha história. Rapidamente consegui me desvencilhar de minha história e fazer com que me contasse a sua. Era Lúcio Flávio Vilar Lírio e, no cabo de algumas horas de viagem, propunha que fugíssemos juntos quando chegássemos ao PP, na Milton Dias Moreira.

 

ABERTURA E JOGO DO BICHO

No Brasil há várias saídas para a revolta: a revolucionária (guerrilha dos anos 60 e 70), o banditismo (Lampião), o messianismo (Antônio Conselheiro) e, finalmente, a malandragem. O jogo do bicho trabalha com o banditismo e a malandragem. Os bicheiros não são uma comunidade revolucionária. Como disse Castor de Andrade, eles estão sempre em cima do muro. No que, aliás, se assemelham ao clássico político pessedista. E tanto não, têm uma intenção revolucionária: financiam o carnaval que, tecnicamente, é a anti-revolução quando não seja uma rebelião erótica instantânea após a qual tudo continua como dantes no quartel de Abrantes.

Os jornais recentemente deram destaque à figura do Capitão Ailton Guimarães, dizendo que ele atuou no DOI-CODI durante os anos brabos da repressão. Segundo essas versões ele teria passado da repressão para a contravenção, sendo hoje (1982) um dos grandes bicheiros do Estado do Rio. Ora, se existe uma relação entre revolução e banditismo, outra relação existe entre banditismo e a repressão. Como não lembrar os inúmeros casos em que as forças da repressão pilharam as casas das vítimas, submeteram-nas a sevícias e abusos sexuais numa atividade semelhante à rapina dos bandos primitivos?

Como não lembrar do Delegado Fleury para quem Frei Tito e o pior dos criminosos eram a mesma coisa?

Se a abertura política visa desmobilizar esta “indústria do anti-comunismo” é preciso desmobilizar também a incrível indústria da corrupção montada em torno do jogo do bicho. Se a abertura possibilitou que os marginais da nossa política (guerrilheiros, banidos, cassados) ingressassem de novo na legalidade, é necessário agora legalizar este imenso universo de tantos outros marginais, que no Rio dizem ser 300 mil. A democracia é exatamente o regime que luta para que não haja marginalizações. E já é tempo de acabar com a indústria da marginalidade não só política e ideológica, mas a marginalidade social que cria as falsas diferenças entre bandido e mocinho.

Depois dos anos 60 aprendemos todos que é falso esse mundo de oposições entre direita e esquerda, capitalismo e comunismo, o certo e o errado. Aliás, entre nós, é preciso acabar com isso também de que governo é governo e oposição é oposição. É necessário construir um sistema menos reacionário que este.

Bandido não é bandido e mocinho não é mocinho. Cristo, considerado marginal pelo Império Romano, foi crucificado entre dois bandidos, e ainda levou um deles para o céu.

Nem sempre bandido é bandido e nem sempre polícia é polícia. Tudo depende das testemunhas e de quem é o escrivão de plantão na delegacia da História.

 

IX

Ainda não havia ingressado na Polícia quando, no ano de 1965, ouvi na rádio Nacional, pelo Repórter Esso, a notícia que o Detetive Milton Le Cocq d’Oliveira fora assassinado num tiroteio pelo bandido Manoel Moreira, o Cara de Cavalo.

A morte do detetive levou os colegas à comoção, não descansaram enquanto o bandido não foi morto, resistindo à prisão.

Fundaram, na sequência, a Scuderie Detetive Le Cocq. Em termos simples, esta denominação se fundamentou numa homenagem póstuma visando também a união e o congraçamento da classe policial, cujo lema era, como sempre ensinava Le Cocq, “Humildade, Lealdade, Solidariedade”.

O emblema era uma caveira que encimava duas tíbias cruzadas, representando o perigo da função policial. Entre as tíbias, as iniciais “E.M.”, significado de “Esquadrão Motorizado”, grupo de elite de motociclistas a que Le Cocq pertencera na extinta Guarda Civil do então Estado da Guanabara.

A Scuderie estava se expandindo, em 1966 solicitei admissão e fui aceito, sendo nomeado Assessor de São Paulo.

Pacificador.

Dos dicionários: Pacificador = aquele que pacifica.

Muitas vezes, com o uso da violência.

Violência no sentido de força. Controlada. Opcional.

Tipo: Sou da Paz: ou vocês tomam jeito ou vou aí e arrebento todo mundo.

Afinal, fui integrante do Esquadrão. Esquadrão dE Morte, ali só tinha gozador.

Mas, voltando a falar seriamente, uma simples questão de escolha, em suma. Ter a coragem de fazer o que precisa ser feito, nada mais que isso. Como diz a frase: “Amar é ter a coragem de fazer o que é preciso”.

E nada mais precioso que a vida, principalmente quando é a de quem amamos.

Eu fazia diferenciação ente subversivo e terrorista. Subversivo, para mim, era quem não concordava com o regime vifente e queria mudar isso através de meios pacíficos. Terrorista era quem usava a violência, matando e assaltando. Eu podia aceitar o primeiro, achava que era uma questão de ideologia. Combatia o segundo sem tréguas. Fiquei mal visto em muitos setores por causa desta diferenciação particular.

Como bem dizia Le Cocq, “- O bandido é covarde, não gosta de topar com o policial pela frente, prefere atirar pelas costas. Antes que mate, deve morrer. Eles têm que aprender que valente é a Policia.”

Mariel Moriscotte, o Ringo de Copacabana, conhecido como policial matador, declarou em entrevista ao Jornal O Globo: “- Eu sou do Esquadrão da Morte. Não desse esquadrão que mata às escondidas e joga os corpos na Baixada Fluminense. Para mim, bandido que resiste à bala tem tantas chances de morrer quanto eu.”

Por sua vez, do outro lado da linha tênue, o terrotista Carlos Marighella doutrinava em seu Manual do Guerrilheiro Urbano: “- É claro que o conflito armado do guerrilheiro urbano também tem outro objetivo. Mas aqui nos referimos aos objetivos básicos, sobretudo às expropriações. É necessário que todo guerrilheiro urbano tenha em mente que somente poderá sobreviver se estiver disposto a matar os policiais e todos aqueles dedicados à repressão, e se estiver verdadeiramente dedicado a expropriar a riqueza dos grandes capitalistas, dos latifundiários, e dos imperialistas.”

Conscientizaram-se da diferença básica ente os dois lados da chamada linha tênue? Le Cocq e Mariel sempre se pronunciavam baseados no fator  “resistindo à prisão”. Já o endeusado e pacífico Marighela simplesmente resumia “se estiver disposto a matar os policiais e todos aqueles dedicados à repressão”.

Na parte que trata de execuções em seu Manual do Guerrilheiro Urbano, outro ensinamento que retratava bem quem foram:

“Execução é matar um espião norte-americano, um agente da ditadura, um torturador da polícia, ou uma pessoa fascista no governo que está envolvido em crimes e perseguições contra os patriotas. Ou um dedo-duro, um informante, um agente policial, um povocador da polícia.

Aqueles que vão à polícia por sua própria vontade fazer denúncias e acusações, aqueles que suprem a polícia com pistas e informações e apontam a gente, também devem ser executados quando são pegos pela guerrilha.

A execução é uma ação secreta na qual um número pequeno de pessoas da guerrilha se encontram envolvidos. Em muitos casos, a execução pode ser realizada por um franco atirador, paciente, sozinho e desconhecido e operando absolutamente secreto e a sangue frio.”

Simples, assim. Só por isso já dá para se ter uma pequena idéia dos diferentes princípios que moviam os dois lados.

Quando Le Cocq morreu vítima de uma bala assassina que só o matou fisicamente, seus companheiros fundaram em sua memória a Scuderie Detetive Le Cocq, visando concregar a classe policial em torno de seus ideais.

Com o passar do tempo, grupos surgiram na clandestinidade, exterminando marginais e deixando junto aos corpos dos mesmos cartazes com o símbolo do Esquadrão da Morte: a caveira com as tíbias cruzadas e as iniciais E.M.

Nada tivemos a ver com estes grupos, apesar da imprensa e certos setores do Poder Judiciário tentarem nos ligar a eles.

Sempre que um ou mais bandidos morreram em tiroteio, foram lavrados os competentes Autos de Resistência que, fazendo parte integrante do inquérito, seguiam para julgamento onde os tribunais absolviam na forma da Lei os policiais envolvidos.

Não por falta de provas. A própria Lei faz justiça, fundamentando-se nos quatros aspectos legais fundamentais: exercício regular de Direito, estado de necessidade, legítima defesa putativa e estrito cumprimento do dever legal.

Milton Le cocq d’Oliveira era um homem de fibra. Era um homem de cuidado. E era um idealista, o que o tornava duplamente perigoso. Como servidor da Lei, para ele era um ideal. Quando fizera seu juramento de defender a Lei com a própria vida, não estava simplesmente cumprindo uma formalidade de rotina como faziam tantos. Esta era a diferença entre um homem como Le Cocq e os policiais mesquinhos que aprendera a conhecer tão bem.

Seu juramento para ele era sagrado, e ele o cumpriria até o fim. Perseguia um bandido porque achava que entregá-lo à Justiça era uma necessidade de honra, esta era sua missão, como representante da Lei.

Todos os homens honestos que conhecera duravam pouco. No mundo que ele aprendera a conhecer, sobreviviam os mais espertos, os mais duros, os mais impiedosos. E isto nada tinha a ver com honradez e justiça.

Mas Le Cocq era um homem especial, ele não se fizera da noite para o dia.

Ele crescera em meio a lutas, forjara-se na violência. Era um homem duro. E era sagaz, era hábil e inteligente. A diferença entre um homem como Le Cocq e os bandidos eram os princípios diferentes que os moviam.

O senso do dever estava acima de sua vontade, não lhe cabia decidir.

Sua missão era uma só, poderia realizá-la ou não.  Neste caso, morreria tentando.

“- Vamos que os bandidos nos esperam.”

Ele ia na frente. Quando era a hora da decisão entre a Lei e o crime. Sabia que um dia, no front da cidade violenta, poderia tombar. E se uma bala o varasse, estaria morrendo como sabia que iria ser. Ele de um lado com a arma da Lei, alguém do outro lado com a arma do crime.

Sua coragem e o amor que devotava à Polícia o fizeram o homem símbolo, o exemplo e quase a lenda, levando à frente seus companheiros de luta em defesa da sociedade.

Milton Le Cocq d’Oliveira, detetive do Rio de Janeiro, morreu.

Ficou o símbolo no qual se transformou para os que têm na Polícia uma razão na vida, no dia a dia enfrentando a morte.

Entre tantos que tombram no cumprimento do dever, le Cocq ficou como o homem lendário que varava os morros puxando os companheiros para os encontros decisivos com aqueles que eram demais na sociedade a que feriam.

Na escalada dos morros, na varredura das favelas, le Cocq ia na frente. Matralhadora na mão, boina enterrada quase cobrindo os olhos lampejantes nas trevas das vielas, lá ia ele desafiando o perigo, como sempre gostou de viver. E assim morreu para se transformar no símbolo de uma Polícia valente que não teme o risco porque, acima dele, vê-se o dever da defesa da Lei.

Hoje Le Cocq está vivo na lembrança de quantos tiveram missões perigosas. Um toque de silêncio, longo, profundo, como nossa saudade e lembrança por eles, todos eles.

Para os que não o conheceram, basta dizer que Le Cocq era o policial padrão que ia sempre além do que se exige de cada profissional.

Sua vida é uma resposta aos que subestimam ou menosprezam a classe dos defensores da Lei. Sua morte é o exemplo do quanto podem dar à sociedade aqueles que tão pouco pedem em reciprocidade: amor ao trabalho, perseverança na defesa do bem comum, obstinação na batalha contra o crime.

Le Cocq tinha aparência caipira vestido com austeridade. Amava muito sua família, e sua vida podia ser vista através de seus olhos que traziam a origem francesa. Um camponês de mãos e alma limpas. Ninguém podia dizer que aquela carcaça de cidadão pacífico ocultava a coragem de um tigre nas horas decisivas.

Era um homem comum.

Ele sabia que não existem homens extraordinários: existem homens comuns em situações extraordinárias. E ele era um deles.

Formara-se em seu espírito a convicção de que tinha um dever: livrar a sociedade de marginais, diminuir o número de matadores frios, desses que eliminam pais de família com um sorriso ordinário nos lábios.

Le Cocq tinha ódio físico a estes monstros, era um ódio impessoal, orgânico, medular. Fazia parte de sua natureza, sentia-se assim, como um daqueles pais que ao voltar para casa recebiam a bala vinda da .45 de um marginal.

Ia buscar o bandido maconhado nos caminhos do morro, ou nos porões escuros dos cortiços. Arrastava-se em silêncio nas noites, como um gato caía sobre sua presa e a trazia bem segura. Esta era a sua vaidade, de caçador: trazer o bandido vivo. Este foi o seu mal.

Na época, muitos comparavam Le Cocq com o detetive Perpétuo de Freitas.

Com Le Cocq era diferente, o submundo levou bala. Ele chegava com a turma, cercava o barraco, dava voz de prisão, se houvesse a mínima resistência armada, atirava.

Le Cocq não queria acordo, o marginal teimoso morria. Quando seu grupo surgia era aquela orgia, corria até quem não devia.

Le Cocq dizia: “- Entre escolher o policial morto ou ferido, pefiro que o bandido morra. O bandido é covarde. Se ele ver força, ele recua.”

Achava muito importante tirar a roupa do assaltante. Motivo: abate moralmente, torna-o uma presa mais fácil atavés de um interrogatório razoável. Razoável porque não temos uma Polícia científica, temos uma Polícia empírica. O interrogatório razoável é aquele em que não se utiliza meios científicos.

Tratando-se de um marginal, de vez em quando tem-se que dar um cascudo que é para ele se lembrar que não está sendo tratado como uma pessoa decente.

Tem que haver uma distinção entre o interrogatório de um trabalhador e o de um assaltante. Se os dois forem feitos da mesma maneira nós estaremos sendo injustos com o trabalhador. Esta é a razão pela qual, em algumas ocasiões, o marginal necessita levar uns cascudos.

Ninguém falou em pau-de-arara.

Como explicaria o detetive Sivuca; “-Sabe não, irmãozinho? Eu conto. É um pau mais ou menos deste tamanho (abre os braços). E aí... uma arara fica andando prá lá e prá cá em cima do pau (imita com dois dedos o movimento das perninhas da arara). É por isso que chamam de pau-de-arara.”

E Le Cocq era um visionário: “- Não importa a quem nós favoreçamos. Do favorecido com a morte do marginal não podemos aceitar nada, a não ser obrigado. Não podemos aceitar dinheiro para matar ninguém. No momento em que começarmos a aceitar dinheiro por termos eliminado marginais deixaremos de ser Polícia, vamos ser mercenários.”

Já Mariel Moriscott – que nunca participou da Scuderie – explicava anos depois: “-De acordo com a Lei, se você vê uma pessoa cometendo um crime tem que meter a mão na carteira e dizer: boa noite, é a Polícia. O bandido olha para sua carteira e lhe dá um tiro na cara. Pronto, fica assim.

É o que a Lei manda. Eu não, peguei em flagrante, grito logo: mão na cabeça. Não obedeceu, morreu. Todas as vezes que troquei tiros com marginais e eles se entregavam eu lhes dava uma chance. Sempre. Eu acho que marginal também é gente, todos merecem uma chance. Mas eu não ia ficar esperando o bandido atirar primeiro. Senão eu dançava.

Estando atirando em mim, não atiro para pegar numa perna, é na cabeça, no peito, é para matar. Para sobreviver num lugar de feras, tem-se que se ser mais fera que eles. Vagabundo tinha que ser enterrado de pé para não ocupar espaço.”

E completava:

“-Violência gera violência no sentido do Esquadrão da Morte, esse esquadrão covarde que algema para trás e vai para a estrada e mata sem nenhuma reação do bandido. Mas o policial que enfrenta cara a cara o bandido e o bandido atira nele, ele deve atirar para matar. Essa é a minha concepção. A Polícia deve agir à altura da criminalidade, à altura da reação do bandido.”

Por minha vez, em 1970 eu declarava em um jornal: “-Sou favorável à pena de morte. Um assassino que tenha matado quatro, por exemplo. Dizem os chamados Direitos Humanos e os pacifistas que a morte dele não trará os quatro de volta. Concordo. Mas, inquestionavelmente, não haverá a quinta morte.”

 “Bandido bom é bandido morto.” (Delegado José Guilherme Godinho Ferreira, o Sivuca, década de 80). Esta visão jutifica-se na ótica da sociedade. Na ótica policial e da Repressão, “bandido bom é bandido vivo”. Simplesmente porque bandido morto não dá informações.

Um dia, em visita à sede da Scuderie – que na época era na rua Bambina, em Botafogo, Rio de Janeiro – no final da tarde peguei uma carona numa viatura que seguia para a Tijuca.

Eu estava hospedado no apartamento de um tio paterno, o Orlando, que então residia no prédio nº 1 da rua do Matoso.

A viatura contornou a praça da Bandeira e ingressou nesta rua, que na época tinha mão dupla.

Foi quando o rádio avisou os policiais que o bandido Lúcio Flávio Vilar Lírio estava visitando a mãe, que também residia naquela rua.

- Está armado, irmãozinho? – perguntou-me um deles.

- Estou – respondi.

- Pode nos dar apoio nesta prisão, sem se arriscar? Tem experiência nisso?

- Sem dúvida, trabalho em Capturas – respondi.

- Mas como é da Polícia de São Paulo, cuide para não se envolver diretamente, combinado?

O motorista parou a viatura numa transversal e seguimos a pé. Os policiais se identificaram na portaria, recomendaram ao funcionário que não avizasse o procurado, subimos pela escada evitando o elevador.

Um de cada lado da porta, evitando ser baleado através dela, apertaram a campainha e começaram a dar batidas, gritando:

- Noca, é a Polícia, saia de mãos na cabeça.

A pronta resposta do bandido foi dois tiros que perfuraram a folha da porta. Noca era o apelido do assaltante.

- Noca – repetiu o policial – saia de mão na cabeça, você não em chance. Sua mãe está aí dentro, não vamos deixar que ela leve um tiro também, certo?

Houve silêncio do outro lado. Então o bandido se manifestou:

- Está certo, vou jogar minha arma.

A porta abriu uma fresta, um trinta e oito foi jogado para fora, um os policiais com cautela o pegou e o tirou do alcance de quem saísse.

- Está sozinho, Noca? Ou tem mais alguém do bando com você?

- Estou sozinho – respondeu. – Só com minha mãe.

- Então saia com as mãos na cabeça.

Houve um instante de tensão, no momento seguinte a porta acabou de ser aberta por ele e o assaltante saiu calmamente. Com cautela foi tirado da frente da porta e algemado por um policial enquanto lhe dávamos cobertura e acautelávamo-nos contra surpresas, podia haver mais bandidos no apartamento.

Com cuidado, depois que Lúcio Flávio estava dominado, entramos no apartamento procurando mais algum, mas além de sua mãe que chorava não havia mais ninguém lá.

No dia seguinte o 1º Setor de Vilgilância Sul – em cujos fundos funcionava a Scuderie – recebeu a visita do então policial Mariel Moriscotte, que posteriormente declarou para o jornal carioca O Repórter:

“– O Lúcio virou herói. Um herói que só está espalhando o câncer em nossa sociedade.Fazendo com que jovens inexperientes, ainda sem personalidade formada, sigam o mau exemplo de um crápula, de um canalha. Para mim, ele é um pé-de-chinelo. Então você vê: um bandido que assalta, faz misérias e depois entrega o dinheiro na mão de outro cara só porque este cara é policial, para mim ele é pé-de-chinelo. Pilantra. Frouxo. Se ele fosse um bandido de verdade, não faria um negócio desse.

Por que o Flávio queria me matar? Por que eu o protegia? Não, era porque eu o combatia.”

Esta declaração foi consequência a um questionamento da imprensa  quando Lúcio Flávio explodiu na frase: “Polícia é polícia e bandido é bandido”, referindo-se à sua exaustão diante da figura ambígua de Mariel. Estava cansado de ter que dividir o roubo continuamente com a polícia.

Com maus policiais. Mercenários, como diria Le Cocq.

 

(continua)

 

 

Leia:

 

Igaibira Canoa Entre Dois Mundos Cap. I ao Cap. II

 

Igaibira Canoa Entre Dois Mundos Cap. III ao Cap. V

 

Igaibira Canoa Entre Dois Mundos Cap. VI ao Cap. VII 

 



Comente






Conteúdo relacionado





Inicial  |  Parceiros  |  Notícias  |  Colunistas  |  Sobre nós  |  Contato  | 

Contato
Fone: (47) 99660-9995
Celular / Whatsapp: (47) 99660-9995
E-mail: paskibagmail.com



© Copyright 2025 - Jornal Evolução Notícias de Santa Catarina
by SAMUCA