Jornal Evolução Notícias de Santa Catarina
Facebook Jornal Evolução       (47) 99660-9995       Whatsapp Jornal Evolução (47) 99660-9995       E-mail

Sentimentos - Fernando Coimbra dos Santos

passageirodachuvagmail.com

"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".

 


Veja mais colunas de Sentimentos - Fernando Coimbra dos Santos

Igaibira Canoa Entre Dois Mundos Cap. I ao Cap. II

Quarta, 30 de maio de 2018

 Clique para ampliar
 

PREÂMBULO 

Disse o garotinho, mostrando um filete de óleo na água que escorria pela sarjeta:

- Olha só mamãe, um arco-íris morto...

Quantas vezes, em minha vida, eu vi um arco-íris morto escorrendo pela água da sarjeta da minha vida?

 

Igaibira é o nome da árvore com a qual os índios Tupinambás e caiçaras faziam canoas.

Sabiam que para fazer a canoa teriam que matar a árvore, outra igaibira igual aquela dificilmente iria aparecer nas futuras gerações.

Então ajoelhavam-se ao pé da grande árvore e faziam uma oração simples a Deus, ao espírito da floresta  e à árvore, pedindo perdão pelo que sabiam ser necessário fazer.

Diziam que ao primeiro golpe do machado uma grande gota de resina escapava do talho e tomava a forma de uma lágrima, enquanto uma lágrima também escorria do olho de cada um.

Diziam os antigos que naquele momento criava-se um elo mágico, e por isso mesmo aquela canoa seria encantada, tornava-se não uma simples propriedade, mas parte integrante e indissolúvel da vida de quem a possuísse.

Este livro retrata minha ligação espiritual entre dois mundos: o do meu Ubatuba antigo, e o meu mundo dito moderno.

Conta os percursos do que poderia ser chamados história da minha vida, com suas desilusões, suas armadilhas, minhas tentativas de procurar fazer o que era certo. E relata algumas das vezes em que canoas de quem me foram amados e queridos votaram vazias.

Este livro poderia, também, ser chamado “Casinha Pequenina”.

De onde eu jamais deveria ter saído.

 

I

Mesmo depois de tantos anos, o barulho da maré alta na areia fofa junto ao jundu ainda era o mesmo. Continuava com o mesmo som característico de fritura em óleo quente. Como se fritasse (ou continuasse fritando) os meus sonhos e a minha vida, sorri tristemente, constando a analogia.

A onda, contida e direcionada pela costeira, atravessava a praia de areia branca e descrevia um grande arco, retornando infindáveis vezes ao mar sempre azul.

Sentei-me em uma canoa de pescadores sob o abrigo rústico de sape que protegia o casco de madeira do ressecamento do sol. Era uma canoa grande, talvez uns cinco metros de comprimento, escavada em um tronco de pesada madeira de lei. Para leva-la ao mar (ou de lá retirá-la) era preciso deslizá-la ao longo da fofa e macia areia por rolos também de madeira.

Retrocedi minhas lembranças e recordei meu avô materno na luta para construir uma. E depois ainda dizem que o caiçara é um povo preguiçoso.

Acordara de madrugadinha como sempre fazia e fizera. Acendeu uma lamparina de querosene, vestiu-se, e sem fazer barulho para não acordar a família saiu do pequeno quarto, atravessou uma salinha minúscula. Sua casa – construída pelas próprias mãos – era de pau a pique, coberta por sapê, o chão de terra batida imaculadamente limpo.

Abriu a tosca porta de madeira, deu uma olhada para o céu ainda escuro, sentindo o vento, sentindo qualquer indício que lhe revelasse como iria ser o dia. Deu-se por satisfeito, seja lá qual fosse a conclusão a que chegara. E agradeceu, pois seguiu-se o costumeiro sinal da cruz.

Deixou a porta aberta, naquela hora da madrugada os pernilongos não incomodavam mais. Foi até a cozinha menor ainda, pegou um pouco de água na talha com uma lata, colocou-a na chaleira de ágata, não havia  água encanada em qualquer uma daquelas casas do então desconhecido Perequê Mirim, bairro do também então desconhecido município de Ubatuba.

Minhas lembranças são substituídas momentaneamente por um conhecido lá de Araraquara, quando lhe contei onde moravam meus avós maternos: “- Ubatuba? Que bicho é este?” – perguntou incrédulo.

Vovô colocou algumas achas de lenha no fogãozinho improvisado, abanou o resto do braseiro que sobrevivera ao jantar da noite anterior, a chama brotou fácil, anos de longa e assídua prática.

Por alguns momentos, distraidamente, assobiou baixinho alguns compassos de uma melodia qualquer, fez um café fraco adoçado com caldo de cana (inexistia açúcar), comeu algumas peças de biju oriundos do feitio da farinha de mandioca.

Como um serviço pesado o aguardasse, abriu uma exceção e, na pobreza digna do dia a dia, comeu também duas postas do peixe que matara (palavras dele e dos demais caiçaras) no dia anterior.

Escovou os dentes ainda íntegros e fortes, pegou o chapéu palheiro com que cobria seus cabelos que começavam a ficar grisalhos, assoprou a pequena chama da lamparina. Fechou a porta pelo lado de fora, pegou o machado que estava fracamente cravado a uma tora carcomida pelo tempo, colocou-o sobre o ombro, substituindo naquele dia o remo que sempre o conduzia diariamente ao boqueirão, lá no fim do mar, onde os melhores peixes o esperavam.

Desceu com cuidado os degraus escavados na terra arenosa que brotava teimosamente entre as pedras do pequeno outeiro onde construíra sua casa, a casa de sua família.

Pegou a estreita trilha na mata quase que fechada, os pés nus calejados por anos de andar descalço sentindo a ainda frieza da areia. A madrugada começou a clarear, alguns passarinhos começaram a cantar saudando o novo dia (segundo alguns românticos incorrigíveis).

Caminhou silenciosamente até chegar ao pé do morro onde o esperavam dois conhecidos, cumprimentou-os de longe, acenando com o chapéu que já começava a se desfazer com o uso, um sorriso sincero em seu rosto curtido pelo sol, anos e anos no litoral de São Paulo. Apressou o passo e se achegou aos amigos.

- ‘dia, Miguel, ‘dia, Antônio – cumprimentou, em sua simplicidade.

- ‘dia, João de Deus – responderam.

Seus olhos treinados por esporádicas caçadas na mata encontravam facilmente o caminho para o alto do morro. No alto, bem lá no alto, depois de uma fatigante e perigosa subida, encontraram a enorme igaibira que procuravam, cujo tronco faria a canoa que arrancaria o sustento do mar.

Olhando-a respeitosamente, embevecido, já antevendo sua futura canoa, vovô murmurou em sua simplicidade: “- Que boniteza...”.

Naqueles tempos, como reza a História, os caiçaras respeitavam a Natureza  como se respeita a uma mãe, decerto pelo próprio caráter ou pelo sentimento de proteção às coisas vivas que os cercavam em suas vidas.

Sabiam que para fazer a canoa teriam que matar a árvore, e outra igaibira igual aquela dificilmente iria aparecer nas futuras gerações.

Então ajoelharam-se ao pé da árvore e fizeram uma oração simples a Deus e à árvore, pedindo perdão pelo que sabiam ser necessário fazer.

Ao primeiro golpe do machado uma grande gota de resina escapou do talho e tomou a forma de uma lágrima, enquanto uma lágrima também escorria do olho de cada um. Diziam mesmo – os antigos que conheciam e testemunhavam o fato – que naquele momento criava-se um elo mágico, sagrado, e por isso mesmo aquela canoa seria encantada, tornava-se não uma simples propriedade, mas parte integrante e indissolúvel da vida de quem a possuísse.

Como se fosse uma triste marcação sonora batida sincopadamente, os golpes de machado fragilizavam a estabilidade daquela árvore colossal. Até que um forte estalo, como se fosse um grito final de desespero, de adeus da mata que a criara e de agonia, rasgava a manhã e a igaibira desabava com um grande estrondo, destroçando as árvores menores na queda em que fora irreversivelmente precipitada.

Os pássaros se calaram, os animais da mata silenciaram, na própria mata – como se fosse uma homenagem – fez-se um silêncio de morte por alguns minutos, até que pouco a pouco o dia voltasse à sua normalidade.

O tronco foi desgalhado e cortado no comprimento necessário, o grande tronco teria que descer até a praia onde então, pacientemente, os enxós

o escavariam e o transformariam numa canoa graciosa, como se fosse – muito pobremente comparado – um diamante lapidado da pedra bruta. Porque havia sido e continuaria sendo eternamente uma coisa viva, o referido elo mágico que se tornaria parte integrante da vida de vovô até o fim de seus dias como caiçara, como homem do mar.

Um dia a canoa de vovô João de Deus voltou vazia do oceano da vida.

Ubatuba, a minha Iperoig, já estava mudando, já não era a mesma. Meus tios não se interessavam mais em ir buscar o sustento no mar, talvez tenham vendido a canoa de igaibira para alguém. Ou, talvez, ela tenha apodrecido por falta de cuidados. Ou, talvez, tenha morrido de saudade de vovô.

Com uma lágrima a me escorrer suavemente pelo rosto, lembrei-me de como tudo começara em minha vida.

 

II

Era uma casinha pequenina, perdida no meio da mata. Chão de terra batida, cobertura de sapé, paredes de pau-a-pique (bambus entrelaçados e preenchidos com barro). Uma pobreza digna mas feliz, na luta da vida.

Para se chegar a ela, tinha-se que caminhar quase dois quilômetros, por uma picada que se iniciava no jundu da praia. Era um caminho estreito, o chão de areia branca que se estendia quase até o sopé dos contrafortes da Serra do Mar.

O cheiro da mata, das flores, os córregos limpos onde se podia beber água fresca e cristalina. Os pássaros cantando junto com as cigarras, o vento da praia soprando suavemente, retorcendo delicadamente as folhas das palmeiras que de tanto em tanto se faziam presentes.

Uma casinha pequenina. João de Deus, Maria da Graça e mais dez filhos: quatro mulheres e seis homens.

Um dia, outro João chegou ao lugar.

Diferente de João de Deus pescador, João Francisco era engenheiro. E se encantou com uma das filhas de João de Deus, a mais linda morena, a sua Maria do Rosário.

Foi um amor recíproco. E João de Deus, pobre pescador caiçara, que todos os dias tinha que buscar no mar o sustento da família, sentiu-se honrado com aquele moço da cidade, um doutor, que tinha a simplicidade de se sentar no chão, na soleira da porta de entrada, segurando nas mãos uma canequinha de lata com café adoçado com caldo de cana. Não havia açúcar.

Honrado e feliz por uma de suas filhas, a morena Maria do Rosário, que iria sair daquela vida de dificuldades nas mãos de um moço de bem.

O jovem engenheiro tinha seus afazeres, mas sempre havia tempo para, junto de sua Maria do Rosário, esperar João de Deus que voltava da pesca.

De mãos dadas, quando o sol ia quebrando lá no fim do mundo, quando se ouvia mais forte o ronco das ondas na beira do mar, quando a lua matizava tudo de dourado, João Francisco e Maria do Rosário sonhavam juntos uma vida em comum. Mais que tudo na vida, João Francisco só queria ser feliz com sua Maria do Rosário.

A noite da vida veio vindo e levando um a um: João de Deus, Maria da Graça, Jango, Neco, Lauro, Dolores... E um dia, anos depois, a canoa de João Francisco voltou vazia.

Maria do Rosário ficou com suas lembranças.

Maria do Rosário Graça Coimbra.

Maria Coimbra dos Santos.

Maria do Rosário: minha mãe.

Às vezes as palavras são inexatas, inapropriadas, insuficientes.

Porque a volta da canoa vazia de meu pai tinha e continua tendo outros significados, outras percepções, outros sentimentos, outras formas de sentir.

“Quem amamos não morre, apenas parte antes de nós.”

Não é uma verdade?

É, tem que ser. Por mais que não nos console. Mas temos que acreditar, precisamos acreditar, a morte não pode ser o fim de tudo.

Quem partiu antes de nós volta e meia está se fazendo presente de alguma forma em nossas vidas. De repente o reencontramos por um rápido momento, inesperadamente, na forma de sorrir de alguém da família que chegou depois.

De repente o reencontramos num brilho de olhar de um filho, numa expressão, numa forma de olhar que só ele tinha, só ele, ninguém mais.

De repente, sem mais nem menos, sem motivo aparente, sua lembrança às vezes aparentemente esquecida, uma situação estranha o traz de volta por alguns momentos.

E isso dói, dói muito, dói demais, como cada um de nós bem o sabe. De repente o dia bonito, o tão colorido dia bonito, simplesmente se torna preto e branco.

E, por mais que o disfarcemos, alguma coisa se quebra outra vez dentro de nós. Mais um pedacinho de nós se fragmenta. E isso transparece em nosso voz, em nosso semblante, em nossas atitudes, em nossos corações.

Alguma coisa mudou.

Mas é respirar fundo, colocar com delicadeza e amor a saudade de lado, e seguir em frente, mesmo porque não temos outra opção. Mesmo que uma lágrima oculta continue sempre a escorrer eternamente por nossa alma e coração. Mesmo que, aparentemente, não nos apercebamos disso.

É, lá está ela.

De repente as lágrimas teimosas chegam aos olhos. Como muito bem expressaram certa vez, saudade é a lágrima que nos escorre no coração.

E papai, que acreditava firmemente no significado bíblico da palavra Mizpah?

Significado que procurou passar para nós e constituiu uma parte de sua herança?

“Que Deus atente entre mim e ti quando eu estiver separado de vós”.

Muitas e muitas vezes, vezes demais, eu me surpreendo quieto num canto pensando e lembrando papai. E converso às vezes com ele. E, também às vezes, lhe pergunto:

“- Quando você vai aparecer aqui do nada, sem motivo, e me dizer simplesmente que a saudade bateu e que você precisa de um abraço meu?”

É, não adianta mesmo querer tapear.

Quem é mesmo que realmente está querendo e precisando tanto, tanto, deste abraço sem palavras que não diz nada e, ao mesmo tempo, diz tantas coisas?

É, realmente “é muita saudade para muito pouco eu”.

Outra definição boba, mas nem por isso menos sentida:

“Você, que poderia ser tanta coisa, preferiu ser saudade.”

Como se, na maioria das vezes nesta nossa vida, tivéssemos liberdade de escolha. Como se pudéssemos, de alguma forma, ter “preferido” ser outra coisa.

Tive um pequeno cão vira-latas, branco com manchas marrons, uma das quais lhe cobrindo quase que totalmente a cabeça. Mosquitinho, era seu nome.

Éramos duas crianças correndo pela praia, uma humana, a outra canina, mas que no entrosamento inexplicável da pouca idade, não havia diferenças, nós dois nos compreendíamos e nos entendíamos completa e perfeitamente. O cãozinho dormia nos pés da cama, era quem dava ao pequeno dono o último boa noite e o primeiro bom dia. Mais que dono e cão, éramos amigos. Simplesmente amigos.

Na praia da Enseada daqueles tempos, onde vivíamos, ainda não passavam carros, não havia estradas. Um dia a picada na mata foi alargada, e o primeiro Volkswagen que vimos na vida não trouxe só novidade, trouxe também a morte em suas rodas insensíveis.

De início, corremos daquele barulhento monstro de metal desconhecido. Mas a curiosidade foi maior que a cautela e o desconhecimento da infância, e dali a pouco ambos estávamos outra vez na praia, vendo aquele automóvel que ia e vinha para alegria dos poucos moradores, que nunca tinham visto um antes.

O carro parou e todos se aproximaram. O motorista, solícito, pegou mais um passageiro que queria dar a primeira volta da vida. Abracei-me às pernas de meu pai, com medo do barulho do motor. O cãozinho, do outro lado, tentou correr para a proteção do pequeno dono. Mas as rodas o alcançaram antes que chegasse.

Mosquitinho morreu aos poucos, ganindo baixinho. Eu, o pequeno dono, que não compreendia nada, pedia ao amiguinho que parasse de brincar daquilo. Era meu primeiro contato com a morte, que não sabia sequer que existia.

Mosquitinho morreu ganindo baixinho, os olhos se tornando vítreos e perdendo o brilho, o sangue que brotava e escorria de sua boca tingindo de vermelho a areia branca da praia. Às vezes, em sua dor e agonia, ainda conseguia lamber a mão do pequeno dono que não sabia que estava perdendo para sempre seu amiguinho, e que no desconhecimento da vida e da morte o chamava para correr outra vez.

O dono do carro se desculpava, não vira o cãozinho em tempo. Na sua insensibilidade de adulto, dizia-me que não tinha importância, que ele me daria outro cachorrinho. Como se fosse possível substituir simplesmente um amigo especial por outro.

Alguém chegou com uma pá, um buraco foi aberto no jundu da praia. O cãozinho foi levado e enterrado. Ficou na areia branca o sangue vermelho, que dizia que ali perdera a vida o melhor cachorrinho do mundo.

O pequeno dono, aturdido, na pouca idade não entendia que o amiguinho não voltaria mais, e nem entendia o que ele estava fazendo dentro daquele buraco tão fundo que depois aquele homem havia enchido de areia.

O carro ainda deu mais umas voltas e foi embora, a alegria havia terminado. E ainda passou desrespeitosamente outra vez com as rodas sobre a poça de sangue que se formara e que lá ficara.

Passaram-se sessenta e cinco anos, ainda hoje vejo, em minhas lembranças, a alegria de meu pequeno amigo latindo e correndo comigo, as manchas marrons em seu pelo branco, o primeiro cachorrinho que tive. Era pequeno e era um vira-latas. Mas era meu. Era o meu amigo. Era o único amigo que eu tinha.

Alguns anos depois eu devia ter uns sete, oito anos. Caminhava com meu tio Nelson pela trilha que começava a se transformar numa estradinha, ligando a praia às casas do chamado sertão.

Meu segundo contato com a chamada morte aconteceu num final de tarde de um dia indefinível, perdido para sempre em minhas lembranças.

A meio caminho entre a capelinha e a casa do “seu” Afonso, uma única casa pequena e pobre do lado direito. Como era costume, bradamos ambos quase ao mesmo tempo:

_ “ ’cença, passando...”.

Isto significava que pedíamos licença para passar, prevenindo os moradores que ali estávamos em trânsito.

No entanto, naquela tarde não houve resposta. Sentada numa cadeira bem perto da porta, uma mulher embalava ternamente uma menininha de menos de dois anos.

Desconsoladamente, olhos secos onde não haviam mais lágrimas e nem revolta, a mãe balouçava delicadamente a filha que agonizava em seus braços.

Olhos secos e perdidos, voltados para o nada, olhava talvez para dentro de si mesma, para suas lembranças, para sua vida, para o que ela se tornara e, talvez (quem o saiba) o que ela poderia ter sido. Ou como deveria ter sido.

A pequenina respirava debilmente, olhos semiabertos, mortiços, pouco a pouco perdendo o brilho, como se estivesse se despedindo de uma vida que nem mesmo ela queria mais. Também sem revolta, sem amargura, uma muda despedida de um mundo e de uma vida que não a merecia.

E se foi mansamente. Num instante ainda estava ali, no momento seguinte tornara-se apenas e tão somente uma lembrança triste.

Fiquei sem saber o que dizer, sem saber o que fazer. Tio Nelson me segurou pela mão e literalmente me afastou dali, dizendo apenas:

- Vamos pedir para nossa mãe para virmos ao enterro deste anjinho...”.

Nos dias que se seguiram a casa ficou fechada. A mãe lá dentro também fechada para o que lhe restava de vida, imersa talvez em suas lembranças.

Ali sua filhinha não corria mais, não estendia os bracinhos pedindo colo.

Na praia do Itaguá, próximo ao Aquário e ao rio Tavares, na pracinha, muitos dizem que ali colocaram suspensa uma ossada de baleia Jubarte.

Dizem. Porque, agora adulto, eu nunca consegui ver ali uma ossada de baleia. Nas duas vezes em que lá estive, vi uma baleia de verdade, viva, nadando e saltitando alegre e eternamente num mar azul, infinitamente azul.

A morte é um embuste, a morte não existe.

Li uma historinha linda outro dia. É a história de uma onda saltitando no oceano, divertindo-se a valer. Está apreciando o vento e o ar fresco – até que dá com as outras ondas na frente, arrebentando-se na praia.

" – Meu Deus, que coisa horrível ", diz a ondazinha. "É isto que vai acontecer comigo!".

Chega outra onda. Vê a primeira, que está triste, e pergunta:

"- Por que está triste?".

"- Você não está entendendo?, diz a primeira. "Vamos todos arrebentar! Nós todas vamos acabar em nada! Não é horrível?".

Responde a segunda onda:

"- Não, você é que não está entendendo. Você não é uma onda, você é parte do oceano!".

Cada um de nós tem de entender e aceitar que somos uma onda no oceano que chamamos vida. E cada um de nós, mais que a responsabilidade, tem a obrigação de dourar os caminhos dos que nos estão próximos. Temos que encher a vida de fantasia, que seja.

(Continua)



Comente






Conteúdo relacionado





Inicial  |  Parceiros  |  Notícias  |  Colunistas  |  Sobre nós  |  Contato  | 

Contato
Fone: (47) 99660-9995
Celular / Whatsapp: (47) 99660-9995
E-mail: paskibagmail.com



© Copyright 2025 - Jornal Evolução Notícias de Santa Catarina
by SAMUCA