"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".
(Continuação)
X
A dura realidade da nova vida que escolhera como castigo e expiação de seus remorsos se fez presente em infinitas e intermináveis doses homeopáticas.
Administradas aos poucos, bem aos poucos.
Primeiro foi a realidade da noite anterior quando pensara em escovar os dentes e não tivera como fazê-lo.
Depois dormir no chão duro, sem pijama, sem roupas de cama. Sem cama.
Agora, a vontade de um banho e roupas limpas o atingiu com uma agudeza e impossibilidade quase que insuportável.
Urinar foi fácil, era fácil, bastava qualquer cantinho. A revelação de que em algum momento futuro teria que ir além disso literalmente o aterrorizou e petrificou. Que falta lhe faria um banheiro.
Banheiro lembrou-lhe novamente a vontade de tomar um banho. Haveria algum dia um chuveiro novamente em sua vida? Água, numa simples torneira, que fosse?
Fazer a própria comida. Quando conseguisse algum alimento para isso? E o fósforo? E o fogão? E tantas, tantas outras coisas que faziam até parte quase inconsciente de uma vida chamada normal? Coisas que tínhamos, que usávamos, que fazíamos, de uma maneira quase automática, impensada, automática.
Para espantar a fome resolveu dar uma limpeza no local, até mesmo em retribuição à generosidade de Zé-Ninguém.
Desistiu, quando não encontrou nem o que um dia teria sido uma vassoura.
Começou a andar sem destino, sem saber o que fazer.
Passou defronte a uma padaria, o aroma irresistível do pão fresco lhe acenou, convidando-o para um café. Incongruentemente chegou a entrar no estabelecimento, mas a realidade de que não dispunha de um único centavo o fez dar uma rápida meia volta.
Continuou a andar, sentindo-se cada vez mais fraco e faminto. Por volta da hora do almoço teve a desventura de passar defronte uma churrascaria, quase desfaleceu com a vontade e a impossibilidade de se alimentar. Resolveu sair do centro comercial daquele bairro, para manter suas mínimas condições psíquicas.
Passou o dia sem comer nada, seu orgulho bobo ainda era maior que a vontade de mendigar um pouco de comida.
Tentou oferecer um pouco de trabalho em troca de um pouco de comida, nem isso conseguiu naquela cidade que crescera tanto, que era tão rica e, no entanto, tão dura, tão desumana.
A noite chegou. Ele, que decidira não voltar, viu-se novamente diante do cantinho de Zé-Ninguém. Um cheiro indefinível, que depois descobriu ser o de churrasco, lhe atingiu em cheio os sentidos e o estômago que roncava de fome.
- Será que Zé-Ninguém havia conseguido um pouco de carne? – augurou. – E estaria fazendo um churrasco para dividir com ele?
Apressou os passos quando percebeu outro odor inconfundível: o de gasolina. Será que aquele maluco estaria fazendo um churrasco usando gasolina?
- Zé, Zé... – chamou.
Apenas o silêncio lhe respondeu. Avançou, procurando aquele que se tornara seu amigo, seu amparo involuntário. Encontrou-o no cantinho onde sempre ele dormia.
A cruel realidade o atingiu. Brutal. Inacreditável. Inconcebível.
Alguém (ou alguns), maldosa e gratuitamente, ateara fogo em Zé-Ninguém quando ele dormia.
Aquilo, que havia sido um ser humano, estava praticamente irreconhecível como tal.
Teófilo caiu de joelhos, seu estômago se contraindo e distendendo infinitas vezes num vômito impossível.
Depois, depois que conseguiu se controlar e deplorar e chorar o que haviam feito, aquela maldade, uma ideia prática lhe ocorreu no cérebro já conturbado.
Pegou a cédula de identidade que trazia no bolso da camisa e a colocou, junto com a escova de dentes, num cantinho ao lado do cadáver.
Tudo o que Zé-Ninguém tivera fora consumido com ele, a ideia de que ali estava uma forma de se passar pelo morto e lhe fora disponibilizada lhe ocorreu com naturalidade, irreversível, conveniente.
Na manhã seguinte, no noticiário de televisão visto num bar, soube que quatro jovens da classe média alta, para se divertirem, haviam ateado fogo num pobre coitado que dormia no escombros e ruínas do que um dia houvera sido uma casa.
Um pobre coitado que documentos pessoais encontrados próximos ao que restara do corpo identificavam como sendo ele.
Recomeçou a andar sem rumo, aturdido. Aquilo se fizera necessário, era necessário para que sua família tivesse uma nova chance. Sem ele.
Esperava que fosse apenas uma questão de tempo que, pelo nome da cidade que emitira a identidade, sua família fosse localizada e comunicada do desfecho.
Teófilo, agora, estava também oficialmente morto.
XI
Foi questão de tempo, de um tempo muito curto, para que Teófilo também se tornasse um mendigo.
Mendigo, não, um morador de rua, como nossos governantes e imprensa gostam de dizer com tanta propriedade, a mesma propriedade de quando rebatizam favela para comunidade.
Como se isso mudasse a realidade para melhor, de alguma forma.
Já imaginou um governador, em rede nacional de televisão, declarando com alegria e máxima satisfação e competência que a “Favela da Maré” (por exemplo, no Rio de Janeiro) doravante foi denominada “Comunidade da Maré” e que, portanto, a partir daquele momento não tem mais a miséria e os problemas e as desgraças de uma favela?
Teófilo tornou-se desconfiado. E temeroso da cidade grande.
Lembrava-se da frase vívida e premonitória de Zé-Ninguém, quando lhe ofereça pernoite: “– São Paulo é muito perigosa durante o dia, mas de noite é muito pior.”
Por alguns dias ainda perambulou pela grande capital que não o queria, trocando a noite pelo dia. Durante o dia dormia em bancos de praça e à noite – muito mais perigosa e letal – simplesmente caminhava.
Procurando restos de comida no lixo, depois que seus intentos de bicos em troca de alimento se tornaram infrutíferos.
Sua situação física começou a ficar feia de verdade.
Num final de tarde, para ajudar, começou a chover. Procurou abrigo sob um beiralzinho. Tremia muito, não sabendo dizer se de fome ou de frio, talvez (ou com certeza) os dois.
Olhava desconsoladamente a sarjeta por onde escorria um ainda pequeno filete de água suja, comparando-o ao que acontecia à sua alma abalada pelo sofrimento que se impusera.
Aos poucos, vindo lá da distante esquina, um pequeno objeto rolava aos poucos, imobilizando-se às vezes, para em seguida continuar sua trajetória errática por algum tempo.
Distraidamente ficou a acompanhar aquele movimento indistinto, até que a proximidade o fez reconhecer uma laranja, uma única laranja.
A fruta, por um capricho (ou deboche) do destino parou por alguns momentos bem diante dele. Num movimento sôfrego, repentino, Teófilo deu dois passos titubeantes e agarrou a laranja antes que ela despencasse no bueiro.
Estava deteriorada, já bastante passada, rachada em alguns pontos por onde a provável contaminação já devia estar atacando. Mas não era momento para luxos. Aprendera – da forma mais difícil – que não podia ter luxo nenhum, não podia dispensar nada, por pior que estivesse.
Mesmo porque, pior que a fome, só o que lhe corroía a alma e o coração cheio de lembranças e de culpas.
Apesar da fraqueza, não teve dificuldade em partir a fruta em duas. Olhou seu conteúdo, constatou enojado que jamais se aproximaria daquilo em condições normais, mas no segundo seguinte já a levava à boca e a sugava com a urgência incontornável da fome atroz.
O caldo se lhe revelou azedo, amargo, podre, fétido, inservível, inaproveitável.
Mas, como dissera a si mesmo, não era hora de luxos, não se podia permiti-los.
Espremeu o caldo, comeu o bagaço imprestável, ainda deu uma mordida exploratória na casca, mas ela estava podre e amarga demais, teve que jogá-la fora. Um verdadeiro desperdício, constatou desolado.
O resultado inevitável chegou algumas horas depois, a disenteria o atingiu forte e inexoravelmente. Se situação normal já era complicada, a diarreia mostrou-se pior, muito pior.
A começar pela falta de roupa para troca, quando um acesso não era percebido a tempo, com resultado desastroso.
Outro problema era a falta de um banheiro, às vezes tinha que se expor em público, incontrolável. Muitas pessoas sequer tinham a dignidade de um respeito mínimo para com ele, e riam e debochavam de sua situação.
Ficar doente, nem pensar.
Um simples resfriado tinha tudo para se transformar numa gripe que, por sua vez, se transformaria numa pneumonia com desfecho possivelmente fatal. O que, por sua vez, não era tão desprezível assim, talvez fosse uma forma conveniente de acabar de vez com sua vida sem esperança.
Um dia, por ironia, foi morar no cemitério.
Estava em busca da sombra de uma árvore quando de viu diante de um deles. Entrou. Encontrou uma árvore frondosa sob a qual havia um banco. E, ao lado deste, um presente inesperado: uma torneira.
Água.
Aprendera, em suas agruras, que ficar sem comer dias e dias era possível.
Possível, mas não agradável. Muitas vezes, nem suportável, mas fazer o que?
Agora, água já era outra questão muito mais grave e perigosa.
Um simples dia sem água poderia leva-lo – naquele calor – a uma desidratação.
E tapeava a fome, se bem que a fraqueza crescente não se deixasse iludir.
Água ainda era indispensável para um mínimo de higiene pessoal, para a única roupa que precisava ser levada, para substituir a falta do papel higiênico... Enfim, para possibilitar um mínimo de vida. Se é que aquilo pelo qual passava podia ser chamado de vida.
Quando o sol inclemente finalmente se dispôs a ir embora e lhe dar uma trégua, Teófilo resolveu dar uma volta pelo local. Próximo ao muro dos fundos deparou-se com uma sepultura em precárias condições, literalmente destruída pela falta de zelo e manutenção.
Talvez – pensou – quem estivesse enterrado ali fosse nada mais nada menos que mais um esquecido.
- Por que será que algumas pessoas são esquecidas tão depressa? – questionou-se. – E por que outras a gente jamais esquece?
Por outro lado, qual é a importância real de uma sepultura?
Quem realmente sente a morte de alguém não sai por aí alardeando seu luto, as grandes dores são vividas no íntimo.
Abaixou-se, olhou pela abertura que o tempo provocara. O caixão há muito se deteriorara, a ossada, opaca, jazia tristemente, abandonada.
O túmulo era como se fosse um gavetão. Não dava para ficar ali dentro sentado ou em pé. Mas, deitado...
Marcou bem a posição do túmulo, seu futuro abrigo e lar. Voltaria na manhã do outro dia trazendo uma caixa de papelão que procuraria, tencionando guardar a ossada nela. Uma simples questão de respeito, nada mais que isso. E agradecimento.
Não sentia medo.
Sabia que os mortos continuavam mortos, e os vivos apenas esperam a hora de se juntar a eles.
Mortos são inofensivos, já os vivos...
O que lhe faltava era coragem para superar as mortes que povoavam sua vida. A começar pela sua própria.
Teria, apenas, que tomar alguns cuidados. Só sairia do jazigo altas horas da noite, quando tudo estivesse silencioso e deserto. Não poderia permitir que alguém o surpreendesse saindo de um túmulo.
Riu desvairadamente até não poder mais quando a tragicomicidade da possibilidade, e suas consequências, lhe ocorreu.
Em sua nova moradia, Teófilo começou a testemunhar as ironias da vida.
E da morte.
E suas tristezas.
- Acaba sendo engraçado – pensou. – O sujeito passa uma vida inteira de provações, de dificuldades, e quando realmente aprende alguma coisa, ou pensa que aprendeu alguma coisa, a vida já se foi e está na hora de morrer.
Via, vezes sem conta, algumas pessoas realmente atingidas pela dor. A vida parecia estar paralisada na mesma cena há horas mas, olhando com cuidado, percebia-se que quem estava paralisado era o par de olhos que assistiam sem ver o sepultamento. Ninguém estava preparado para dizer adeus, um adeus definitivo e sem possibilidade de volta.
Enterros de crianças o atingiam profundamente.
- Isso devia ser proibido por Deus – chorava, pensando no filho. – Criança devia ser proibida de passar fome, vontades, necessidades, de ficar doente e ser enterrada pelos pais.
E outra aterradora e triste realidade o golpeava duramente.
- E de ter pai como eu fui – sentenciava-se.
Teófilo tornara-se ninguém.
Até que um dia, um Natal, constatou que era muito menos que isso.
Natal: ele se esforçava para que a data não o tornasse ainda mais triste.
Nunca mais comemorara o Natal. Faltava-lhe fé, e família.
Dentro do coração, apenas o calor de Dezembro.
XII
Parou diante de uma escola infantil, festa de Natal no colégio, o palco a céu aberto iluminado pelas estrelas e pelas luzes pequeninas, cânticos natalinos e músicas em tons menores tocando baixinho.
Ele não conseguia participar da alegria, não conseguia se integrar àquela alegria que não lhe dizia respeito, mesmo lá da rua. Sozinho, olhou aquele número infindável de crianças que chegavam, todas tão parecidas entre si na pouca idade.
Sabia que não poderia entrar. Ou não o deveria. Ou não deixariam.
Mas não tivera escolha, incongruentemente devia aquilo – e muito mais – a si mesmo, às suas lembranças de quando era uma delas. E ali estava ele agora, imóvel, do outro lado da rua.
Sozinho, afastado dos demais, apesar de tão perto, sozinho e solitário. Mesmo no meio de uma multidão.
Involuntariamente se viu esforçando para conter as lágrimas teimosas e os soluços de uma emoção dolorosa, imerso numa saudade infinita que não sabia precisar de quê, mas que sentia no mais íntimo de seu ser.
Pelo gradil viu quando o mestre de cerimônias pediu que todos os pais se levantassem e dessem as mãos, irmanados naquele espírito natalino, para entoarem juntos a Noite Feliz.
Antes que alguém porventura se aproximasse dele, viu-se afastando ainda mais de todos, ostensivamente alheio e aparentemente indiferente àquilo tudo. Via a alguns metros todos de mãos dadas, solidários. Surpreendeu-se cruzando os braços, e com amargura reconheceu que abraçava a si mesmo. Abraçava sua solidão, suas lembranças, os anjos e fantasmas de sua vida, sentimentos aparentemente esquecidos e que ali estavam tão presentes.
Não pode suportar mais, e se viu caminhando para um canto escuro da praça lá adiante, no que se tornaria um encontro não marcado consigo mesmo.
Atravessou o jardim e começou a caminhar no escuro da noite. Olhou para o céu onde brilhavam milhares de estrelas. Chegava a ser irônico que, no meio de tantas, não tivesse uma só para si, uma forma de amparo, de esperança na qual pudesse se agarrar nos momentos difíceis que foram e eram tantos – repetiu-se. Onde estava a lua que não iluminava mais o anoitecer de sua vida que sentia tão escura, tão inútil?
Como se atravessasse um portal mágico no tempo e no espaço, viu-se caminhando sozinho numa parte da cidade que desconhecia. Era estranho, ele que andava por toda a cidade, agora caminhava por ruas que nunca havia estado antes, inconcebivelmente.
Ruas desertas, mesmo as casas estavam fechadas, escuras e silenciosas. Melhor – pensou amargamente – melhor que não houvesse testemunhas para a sua dor que estava prestes a extravasar a qualquer momento, mesmo ele não o querendo. E não estava querendo há tanto, tanto tempo...
Pensou em morrer. Desejou morrer. Mesmo sabendo que aquele presente de Natal não era para ele, não era dele.
Seria fácil demais para que sua saída deste mundo e desta vida fosse hoje. Havia muito ainda o que sofrer, muito o que pagar, muito o que lembrar, muito o que lastimar.
Continuou a caminhar sem destino, pelo simples fato de não querer (ou poder) ficar parado, como se assim de alguma forma pudesse se afastar de sua amargura e solidão. Não adiantava, bem o sabia, ela estaria sempre dentro de si, acompanhando-o fosse onde fosse.
Soluços o tiraram de suas reflexões. Num canto escuro, um garotinho chorava baixinho. Estaria perdido naquelas ruas desertas? Quase não o viu, encolhido que estava, num flagrante desamparo e abandono.
O menino se levantou e veio para ele. Os cabelos loiros, o físico franzino na pouca idade, cinco anos, talvez? Os olhos eram grandes, redondos e castanhos escuros, e quando o homem olhou para eles, teve a impressão de estar se vendo num espelho. Tinha seus olhos. Sentiu um aperto na garganta e ficou quase sem poder respirar. Como era possível que aquele garotinho se parecesse tanto com ele? Como podia ser uma réplica perfeita do garotinho de uma das muito poucas fotos de sua infância da qual ainda se lembrava?
Havia lágrimas sentidas naqueles olhos. O mendigo sentiu também os olhos enevoados quando incredulamente se reconheceu naquela criança. Ajoelhou-se diante dela e abriu os braços quase sem se dar conta do que fazia. O garotinho se aninhou nos braços daquele adulto que nada mais era que sua própria projeção futura de anos mais tarde.
Naquela noite mágica, surpreendeu-se abraçado a si mesmo, abraçado ao menino que tinha sido um dia, e que agora, de uma maneira absurda, estava ali diante de si.
Enxugou os olhos da criança, sem se importar com os próprios olhos que também estavam marejados.
- Por que você me matou? – perguntou acusadoramente a criança – Por que você não cuidou de mim?
Surpreso, não teve o que responder naquele instante, diante da pergunta totalmente inesperada. O garoto o olhava firme, ansiando por uma resposta que não vinha.
- Mas... eu não o matei – respondeu. – Também nunca deixei de cuidar de você...
- Não, você me matou sim. Não estou mais dentro de você. O que você fez com a criança que sempre deveria existir dentro de você?
O garoto se afastou do abraço, mas permitiu que o homem ficasse com as mãos em seus ombros, braços estendidos, olhos em seus olhos, diante da inutilidade de uma resposta que não existia concretamente.
- Eu...
Silenciou. Não sabia o que responder.
- Você me matou sim – repetiu melancolicamente o menino. – Você tinha que ter cuidado de mim, não podia ter se tornado este adulto amargurado e sem sentido que você é agora.
Enfrentando sua hora da verdade, ele continuou calado, consciente da falta de alcance de uma resposta. Olhava tristemente aquele garoto que tinha sido.
Como explicar ao menino, a si mesmo, entender e aceitar, que fora a vida que os tornara assim?
Olhava atordoado aquela criança que havia sido, como se estivesse vendo-se num espelho mágico que o houvesse atirado súbita e inesperadamente para tantos anos atrás.
- Você não podia ter permitido que eu me fosse – continuou o garotinho. – Olhe dentro de seu coração, você não vai me encontrar nele. Olhe em suas lembranças, você não vai me encontrar nelas. Olhe em seu presente, na sua vida, onde estou eu? Quando você me perdeu, você perdeu também sua capacidade de viver em fantasia, no mágico mundo faz de conta que todas as crianças têm.
Quis desesperadamente abraçar a si mesmo outra vez, como se de alguma forma pudesse trazer a criança que fora um dia, de volta para sua alma.
- Você não podia ter deixado que eu fosse embora de sua vida. Lembra-se que disse um dia para alguém que era muito bom em brincar de faz de conta, mas que seu faz de conta não era tão perfeito assim? Pois é a minha falta dentro de você a principal causa e consequência de ser assim.
Sem aviso o menininho desapareceu, deixando-o ajoelhado naquela rua escura, os braços esticados no vazio.
Atônito, levou algum tempo para se erguer, esmagado por aquela revelação que o atingia pouco a pouco.
Ouviu passadas que se avizinhavam. Um rapaz de seus vinte anos se aproximava, correndo.
- Quanto tempo não nos vemos – cumprimentou ele, parando.
O mendigo não teve o que responder.
Aquele, talvez pelas próprias circunstâncias, foi mais fácil de reconhecer. Mas, como se cumprimentar a si próprio aos vinte anos? Como responder a si mesmo, vendo-se numa juventude que há tanto tempo não sentia mais, não era mais sua?
- Você também me matou – acusou dolorosamente o rapaz. – Também não estou mais dentro de você. Quando você perdeu a capacidade de sonhar, de se iludir, perdeu também o moço que havia dentro de você. Por que se tornou um velho antes do tempo? Por que você correu tanto na vida?
O homem quis se abraçar outra vez, como uma forma de defesa, como se daquela forma pudesse se manter íntegro. O rapaz rebelde que não sentia ter sido não o permitiu.
- Você também me matou. Você correu demais. Passou a vida tentando ajudar os outros, e foi incapaz de ajudar a si próprio. Passou a vida tentando ter tempo para os outros, e não teve tempo para você mesmo. Onde está o rapaz que você foi, que dizia aos outros para olhar as estrelas, que enquanto elas brilhassem haveria esperança na vida?
O homem olhou para o céu, para as milhares de estrelas que brilhavam no infinito que só não era maior que sua amargura. Por que nunca encontrara a sua estrela no meio de tantas que ali estavam?
Quis responder alguma coisa, mas quando deixou de olhar as estrelas, o rapaz que havia sido também desaparecera.
Olhou desesperadamente ao redor, e nunca a solidão das ruas o atingiu tão duramente. A solidão que se tornara a sua própria vida. Recomeçou a andar lentamente.
Ao longe, caminhando vacilante a seu encontro e mais lentamente ainda, vinha alguém que não conhecia. Só quando o velho parou à sua frente é que se reconheceu naquele ser alquebrado pela vida. Esta aparição foi a mais breve de todas, e o olhou firme e friamente:
- Já se perguntou algum dia se chegará à minha idade? E valerá a pena, você que sempre foi mais velho que sua idade biológica? O que vai ser de sua vida, do que resta dela? Você acha a sua vida vazia. Como dizer que ela é vazia, se você caminha tão cheio de amargura, de frustrações, de solidão, de melancolia e de saudades?
Como responder que seria o mesmo que sempre havia sido? Como dizer que aceitara as coisas como elas eram, e nem por isso elas tinham se tornado mais fáceis ou aceitáveis? Como dizer que se tornara um bom ouvinte, apenas porque quase nunca sabia exatamente o que devia dizer? Ou como dizer? Como dizer que sua forma de amar fora se empenhar para tornar o mundo melhor, mesmo que isto custasse a sua própria vida? E não fora exatamente isto que acabara acontecendo, de certa maneira?
Viu-se subitamente sozinho em seu desamparo, com os fantasmas de seu passado. Ninguém lhe dizia o que fazer, apenas lhe lembravam inutilmente o que estava farto de saber e, pior, vivenciar.
As ruas desertas e desconhecidas desapareceram com o velho, que se tornara ironicamente um pássaro negro como a noite, antes de voar para o infinito onde morava, a gargalhar de uma forma horrenda, estranha, uma mistura de desvario e soluços dilacerantes.
Viu-se novamente em meio ao arvoredo da praça. Os sons normais da noite pouco a pouco o atingiam, trazendo-o lentamente de volta à normalidade.
A festa seguia animada, mas os cânticos de Natal eram como punhaladas em seu coração.
Sentiu as lágrimas correrem em sua face, uma saudade absurda e dolorosa do pai que se fora cedo demais, um sentimento de perda e falta de si mesmo, lembranças e sentimentos que oscilavam nas recordações do passado que se fazia tão presente.
Naquela noite tivera de uma forma inexplicável um encontro não marcado consigo mesmo.
Vira-se criança, moço e velho (se chegasse a sê-lo). Vira-se frente a frente com suas verdades, com suas faltas aparentes, e nada daquilo lhe trazia paz, nada daquilo lhe trazia esperança, nada daquilo lhe indicava uma direção, um rumo a seguir que o trouxesse de volta para a vida.
Retornou lentamente para mais perto do colégio.
Sentiu-se morrer diante do reconhecimento de sua incapacidade de dar e receber amor. Como dar o que não se tem dentro de si? E suas comportas, a couraça protetora em que ilusoriamente se encerrara, se rompeu definitivamente ao som do tema de Pinóquio, quando a fada apareceu e perguntou se ele queria ser alguém na vida.
Quem o visse chorando naquele momento pensaria que era apenas e tão somente alguém sensibilizado, comovido e fragilizado pela festa.
Sem se importar com as lágrimas que corriam, recomeçou a andar.
Sem destino.
Do nada para lugar nenhum, como se acostumara a fazer, mesmo sem se dar conta.
Aturdido, surpreendeu-se diante de uma loja. Do outro lado da vidraça um grande espelho refletiu um vulto espectral que ele, confuso, demorou a ter consciência que era ele mesmo.
Do que se tornara.
Do que restara dele.
Aquela noite realmente era especial, tornara-se a noite das revelações. De suas revelações. Teve então a inesperada conscientização de que precisava dar uma sacudida em sua vida, de tentar acertar as coisas, de – talvez – voltar ao passado e tentar passar uma borracha em tudo o que fizera de errado.
Apesar de tudo, teve que rir do disparate. Não era ele mesmo que gostava de dizer que “viver é desenhar sem borracha”?
Ele, que desenhara tanto, folhas e folhas, infinitas folhas, incontáveis folhas, todas folhas plenas de erros irrecuperáveis, mesmo (ou apesar de) todo o capricho que tentara ter.
Teria tempo, ainda? Seria possível, ainda?
Só havia uma maneira de saber. Uma única maneira.
Tentando.
Quase sem o perceber recomeçou a andar, mesmo não havendo qualquer diferença consciente e realista entre caminhar ou ficar parado.
Estava a quantos quilômetros de casa?
Casa?
Seus lábios se retorceram mais uma vez num sorriso de amargura.
- A casa que um dia foi minha – corrigiu-se. Uma lágrima despontou e correu por sua face crispada. – Minha casa e minha família que um dia joguei fora...
Não, não importava a que distância se encontrava.
Por um longo momento pensou que, se começasse a caminhar para lá naquele momento, agora, um dia com certeza chegaria.
Chegaria mesmo?
Talvez morresse no meio do caminho. Talvez ficasse doente. Talvez a fraqueza e a falta de comida não lhe permitissem andar tanto. Talvez...
- Covarde – recriminou-se, cônscio de que estava protelando aquela decisão. Que estava criando subterfúgios para evitá-la.
Mas – continuou pensando, analisando, refletindo – e se fosse? E se um dia chegasse? O que faria? Simplesmente seria recebido de braços abertos, como se nada tivesse acontecido, como se tivesse sido finalmente possível passar a borracha na folha na qual se revelaria o desenho mais lindo de todos? O desenho mais maravilhoso de todos?
Impossível.
Mas, seria mesmo impossível? Em seus conflitos, continuou a se questionar.
O que dizer? O que explicar? O que prometer?
Prometer?
Justo ele, que era tão bom em nunca conseguir cumprir as poucas promessas que fazia, ele que se tornara tão bom em nunca conseguir cumprir as promessas que fazia, por mais que se esforçasse?
Sentiu-se motivado a fazer uma promessa final para si mesmo. Iria tentar. Ou morrer tentando.
Não sabia o que encontraria, sabia apenas que só teria obrigações, que não teria direito algum. Principalmente o direito de interferir na vida de uma família feliz, possivelmente.
Como estariam a esposa e o filho?
Riu insanamente outra vez, mas com toda a sinceridade do mundo, do seu mundo, do que seu mundo se tornara, do que ele tornara o seu mundo.
O que dizer para a família? Ele, que até havia morrido para eles, para a vida, na encenação macabra do aproveitamento da morte da pessoa que lhe estendera a mão, a quem atearam fogo e que ele deixara a seu lado seus documentos pessoais?
Sacudiu a cabeça, pressionando as têmporas com as mãos. Desejou gritar um urro de desespero, desejou ter uma garrafa de pinga para anestesiar todas aquelas besteiras, aquelas loucuras que tomavam conta dele e que...
Desejou ter uma torneira de água bem fria sob a qual pudesse colocar a cabeça com pensamentos tão febris, mas nem isso havia.
- Faz de conta... – começou.
Riu, desta vez sem tanta amargura. É, faz de conta...
Ele que tornara bom em faz de conta. Ele que tornara o melhor em faz de conta. Ele que vivia fazendo de conta que...
Sacudiu a cabeça, como se pudesse assim afastar aquele torpor, mas só conseguiu se sentir ainda mais tonto.
Noite desgraçada. E com a ironia de que não havia bebido nada, o que explicaria aqueles pensamentos que o estavam deixando maluco.
- E então, seu moço? – questionou-se, forçando-se a uma decisão. – E então?
Percebeu enfim que continuava a caminhar. Não sabia no que aquilo daria, mas teve a consciência de que seria tentar ou morrer de vez.
- E o que dizer, moço, se conseguir chegar lá?
Uma voz indefinível lhe respondeu. Ou, pelo menos, a resposta atingiu seu cérebro já afetado.
Tinha que ir.
E, chegando, se chegasse, então apresentaria todo o seu sofrimento diante de Deus, como uma expiação. Pediria perdão e uma nova chance para si mesmo, se ainda fosse possível, se ainda tivesse algum merecimento.
Parou por um momento, orientando-se.
Decidiu-se.
Rumou para a rodovia e começou a andar. Desta vez com um destino. Desta vez com um objetivo.
Não sabia quanto tempo levaria. Não sabia se o conseguiria.
Um sorriso feliz, indescritivelmente feliz, tomou conta de todo o seu ser.
Não sabia o que o aguardava, mas só havia uma maneira de saber.
Estendeu a mão que tremia, encontrou o apoio que precisava: seus dedos se entrelaçaram na mão da Esperança, seus passos trôpegos se tornaram decididos, irrevogáveis.
Estava de volta para casa.
(Continua)