"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".
(Continuação)
III
Trinta anos antes, quando Teófilo nasceu, foi a primeira vez em sua vida que o pai, Valdeci, sentiu-se verdadeiramente aterrorizado.
Nervoso, incapaz de se manter sentado, caminhava incessante e incontrolavelmente de um lado para outro no corredor que acessava a sala de espera da maternidade.
Como num desvario, oscilava dolorosamente entre pensamentos desencontrados e conflitantes. Apesar de querer muito o esperado primeiro filho, recriminava-se com o sofrimento da esposa confiada a mãos de estranhos, chegando a maldizer (apesar de tudo) a noite em que a engravidara.
Não sabia precisar, ou se decidir, entre dois fatos imediatos: sua incompetência e despreparo para lidar com a situação, ou o medo do futuro desconhecido que o dominava.
Ouviu vagamente um grito seguido de choro quando Teófilo chegou ao mundo.
Muito tempo depois (assim lhe pareceu) uma enfermeira lhe trouxe, ali mesmo no corredor, o menor ser humano que ele já vira em sua vida.
Desajeitado, tentando controlar o tremor que denunciava seu medo e nervosismo, suas mãos desajeitadas enfim conseguiram segurar o bebê que dormia. Morrendo de medo de derrubar a criança. Ou de a estar segurando forte demais. Ou de a estar segurando fraco demais. Ou...
Seu filho.
Seus olhos não podiam se desprender do minúsculo pedacinho de vida que estava em suas mãos inábeis. Um maravilhoso sorriso idiota arqueou seus lábios, veio-lhe a vontade enorme de gritar, gritar ao mundo que ele era pai, que ele segurava o filho, que ele era o mais feliz dos homens.
Estático, esquecido da enfermeira à sua frente, era como se o mundo inteiro estivesse apenas esperando que ele voltasse a respirar.
Aquilo fez um dia normal se tornar um dos dias mais felizes de sua vida.
Aos poucos foi retornando, o incrível nível vibratório a que fora arremessado começou a se estabilizar. Recomeçou a escutar os sons do mundo que, mesmo sem se dar conta, havia deixado simplesmente de ouvir.
Olhou o pequeno com adoração, maravilhado. Seu filho. Seu. Seu. Seu.
Olhou-o com olhos cheios de vida, olhos que já viram muitas coisas, mas que também mostravam-se dispostos e empenhados em continuar aprendendo.
Aquele bebê foi a melhor coisa que aconteceu em sua vida, reconhecia. E o tornava importante, era único e o enaltecia como pai e principalmente como ser humano.
Ah, como precisava contar aquilo à esposa. Como precisava dividir com ela aquele momento de felicidade, inesquecível.
Segurou firmemente a criança contra o peito, avaramente, não a querendo dividir com ninguém, nem mesmo querendo devolvê-la à enfermeira que continuava pacientemente calada à sua frente.
Deu-se conta que outra pessoa de branco se aproximava. O sorriso maravilhosamente idiota que ainda tinha nos lábios vacilou e morreu quando finalmente se deu conta da expressão séria demais do médico.
- Parabéns, é um lindo menino – disse-lhe o profissional. – Mas, por favor, entregue-o à enfermeira, ele precisa mamar. E nós dois precisamos conversar.
Estendeu relutante o pequeno para a moça, acompanhou-a com os olhos até que ela desaparecesse numa das salas do corredor, então voltou-se para o médico que continuava a fita-lo com seriedade demais, calado demais.
Só então percebeu que havia, naquele momento maravilhoso, alguma coisa errada, muito errada. Confuso, sem saber o que pensar, de repente intuiu o aparente desequilíbrio da balança dos fatos, o elo faltante naquela alegria e felicidade incomensuráveis: sua esposa.
- Doutor...
Não conseguiu prosseguir, aterrorizado pela expressão condoída do médico que colocou uma das mãos sobre seu ombro.
- Infelizmente houve um problema com sua esposa. Nós a perdemos. Só conseguimos salvar seu filho, sentimos muito.
Por um momento tudo pareceu se imobilizar, o mundo pareceu parar de girar. Então a compreensão da crueldade do acontecido explodiu em sua alma, um urro bestial de desespero escapou de seus lábios e ecoou por todo o hospital.
Quedou, incerto, deu alguns passos desorientados e sem destino, sem saber para onde ir ou o que fazia. Então começou a esmurrar a parede, as mãos se rompendo naquele desespero e a manchando com seu sangue, até ele ser contido e dominado pela equipe médica.
IV
Uma semana transcorreu depois do enterro. O sofrido pai, visivelmente derrotado pelo duro golpe, não permitiu que sua dor afetasse a vida do filho, vida que começava de maneira tão injusta e imerecida. Não se deixou culpar o filho pela morte da mãe, como muitos fazem.
Balouçando suavemente o pequenino que dormia em seus braços, como se o fizesse consigo próprio de alguma maneira inconcebível, Valdeci conversava ternamente com o bebê, como se falasse com um adulto que o pudesse compreender, naquele diálogo monologado.
- É, filho, a gente passa por cada uma... Quando pensamos que já se foi tudo de ruim, a vida nos mostra que não foi nem o começo. Sabe, tento continuar acreditando que Deus sabe o que faz e que somos ignorantes demais para entender estas coisas.
Buscou com os olhos distantes o retrato da esposa que lhe sorria consoladoramente no porta retratos sobre a estante. Voltou-se para a criança.
- Não há de ser nada, tudo bem, ela descansou desta vida. Deus é pai e com certeza a acolheu junto a Ele num lugar bonito e feliz. Sabe o que eu queria mesmo? Queria poder sonhar um sonho em que sua mãe viesse nos mostrar como é que ela está, contar que a dor acabou e que ela está num lugar melhor do que nós.
Buscou consolo novamente na fotografia, desviou os olhos ao perceber que estava começando a sentir raiva, a se revoltar com o que aquela vida madrasta lhe fizera.
- Filho, sua mãe tinha o sorriso que mulher alguma tem neste mundo, era o sorriso mais lindo que eu já vi. Eu nem acreditei quando ela sorriu para mim a primeira vez e me dei conta que ela estava sorrindo para mim, só para mim, foi quando me apaixonei por ela...
Sentiu uma inevitável lágrima fugidia escorrer por seu rosto.
- Sabe, filho, eu penso nela o tempo todo. Eu nunca vou esquecê-la, e vou ensinar você a conhecer a mãe maravilhosa que teve. Um dia vou lhe contar toda a nossa história, para que você saiba o quanto ela era única e especial.
Fraquejou, por um momento. Colocou o pequenino adormecido no berço, ficou a olhá-lo penalizado.
- Isso devia ser proibido por Deus, meu filho. Deixar um pequenininho como você sem a mãe logo de começo. Sabe, eu estou fazendo força para não chorar mais, para não me desesperar mais. Você precisa de mim, e sua mãe não gostaria de me ver assim. É, a vida nos prega algumas peças, nos passa algumas rasteiras, acabamos caindo de boca, nos arrebentamos de verdade, ficam as lembranças... e a dor que isso trás...
Afagou ternamente o rostinho do filho.
- Sabe, há muitas coisas que a gente vê, que a gente passa na vida, que faz com que a gente vá dormir rezando para não amanhecer no dia seguinte. Mas a gente amanhece, filho, a gente amanhece...
Um profundo suspiro de desalento escapou de seu peito.
- Ainda bem que a gente amanhece, você precisa de mim, e eu preciso muito de você. Ainda bem que você não me entende, filho. Eu nem devia estar lhe dizendo estas coisas, perdoe o seu pai que está tão fraco e desamparado, que nem sabe mais o que diz...
Ligou a fraca luz do abajur, apagou a do teto. Fez um carinho desajeitado no rosto que lhe sorria eternamente na fotografia na estante.
- É, moça, minha moça, você me faz falta... muita... Ainda sinto um vazio em meu peito, sabendo que este vazio sempre estará ali, todas as vezes que eu me lembrar de você com saudade. E mesmo quando eu não pensar em você. E isso não quer dizer que eu irei esquecer de você, não se esquece quem se ama, sadia disso? E tenho que tomar conta de nosso filho, não é mesmo? Boa noite, querida...
Saiu lentamente do quarto do filho após se certificar que o pequenino dormia alheio ao sofrimento do pai. Deitou-se na cama de casal agora grande demais para ele só e infinitamente pequena para embalar suas lembranças e saudade.
A revolta recomeçou, insidiosa. Por um rápido momento se permitiu sucumbir à sua dor, chegou a maldizer Deus por ter feito aquilo com ele, com seu filho, com a moça maravilhosa que tinha uma vida toda pela frente. Começou então a falar com aquele Deus que não lhe consolava:
- Meu Deus, acho que perdi a fé... Não que eu não acredite no Senhor, não que eu tenha passado a acreditar que Deus não existe... Mas não o vejo mais em minha vida, Senhor...
Como vou falar e ensinar de Deus a meu filho? Não posso tirar isso dele, meu Deus, ele já perdeu a mãe, não posso permitir que ele também perca o Senhor. Por favor, me ajude... Meu mundo se tornou muito duro, não há mais lugar para meus sonhos.
E não é esse o mundo que quero para nosso filho, meu Deus... Minha vida se tornou muito difícil, Senhor, como vou comemorar o aniversário de meu filho e lidar com o fato de que terei também de reviver a data da morte de minha esposa?
E o nome de nosso filho, meu Deus? Seu nome foi escolhido por ela, e o Senhor a levou, a tirou dele. Teófilo significa Amigo de Deus, não é mesmo? Será que ele conseguirá ser seu amigo, Senhor? Quando ele souber que o Senhor lhe tirou a mãe?
Acabou adormecendo, vencido por puro cansaço, com medo de não ouvir o pequeno chorar caso acordasse com fome ou alguma dor.
E então sonhou (?).
A esposa estava linda, diante dele, sorridente, deslumbrante, ele a olhava com a adoração de quem ama. Ela abraçou-o, um abraço amoroso e necessário que afastou toda solidão e distância, então segurou suas mãos, olhou-o nos olhos e lhe disse:
- Obrigada... por tudo. Você era tudo para mim e eu sei que era tudo para você. Não chore mais. Eu gostava tanto de te ver sorrir. Quando estávamos juntos, não havia tristeza, você só sabia dar risada e me chamar de pequenina. E eu achava graça nisso, mesmo que você não o compreendesse. Eu me divertia porque você nunca percebeu que não era eu que não era pequena, mas que você é que era grande demais. Não quero que você chore mais, quero que se lembre de mim com aquele sorriso lindo que eu sempre gostei, o sorriso que fez eu me apaixonar por você. Continue se lembrando de mim, e eu vou existir para sempre. Continue se lembrando de mim, e eu estarei sempre junta de você e de nosso filho. Crie ele para nós, com bastante amor, torne-o um bom homem, eu lhe peço. Um dia nos reencontraremos, um dia você chegará e eu estarei esperando por você. Até lá nosso filho precisa de você, nunca se esqueça disso, eu lhe peço e o confio a você.
Acordou, confuso e sobressaltado. Por mais que não o quisesse admitir, teve a revelação que não podia permitir que aquele sofrimento crescesse ainda mais. Pelo bem dele e do filho.
Ainda assim, sabia que seria perseguido até o fim de seus dias pela sensação de que havia deixado algo muito precioso pra trás, algo que nunca mais poderia recuperar. Mas que estaria sempre diante de si, bastaria estender as mãos. Tolo, seus dedos se fechariam no vazio...
Teria derramado uma lágrima em seguida, mas naquele noite, por aquela noite, elas já haviam se esgotado
Sabia que aquilo talvez fosse uma ilusão, talvez não passasse de um delírio de sua imaginação atormentada, mas tornou-se o melhor delírio de sua vida. Seu filho precisava disso. E ele também.
V
Teófilo já estava com três anos.
Passara a ser uma rotina diária irem até a pracinha toda tarde quando Valdeci chegava do trabalho e abraçava o filho, que estava sendo criado com a ajuda os avós.
Muitos aparentavam ter nos cuidados com os filhos mais uma obrigação que qualquer tipo de afeto. Valdeci jamais deixaria que isso acontecesse, não ele. Devia isso à esposa que partira, ao filho inocente, à sua própria alma.
Jamais teria com o filho uma vida morna. O que nos leva a escolher uma vida morna? A resposta talvez esteja na distância e na frieza dos sorrisos, na frouxidão dos abraços, na indiferença do “bom dia”, quase que sussurrados por uma infundada obrigação.
A beleza de um lugar é feita pelas pessoas que nele vivem. E a da vida, também. Valdeci queria uma vida linda para o filho, queria um lugar maravilhoso para que ele vivesse, já bastava não ter a mãe, nunca a ter conhecido, nunca ter sido segurado e embalado por seus braços amorosos.
O pequeno, ao vê-lo virar a esquina a caminho de casa, abria um sorriso radioso de boas vindas e corria de encontro ao pai. Valdeci sempre o repreendia com suavidade, temendo um tombo.
Quando o filho o abraçava pelas pernas, na ansiedade de seu abraço, e Valdeci o erguia e sentia a pressão incontida de seus bracinhos em volta do pescoço, sempre se comovia e agradecia a Deus aquela pequenina presença em sua vida.
Pequenina só em tamanho físico, porque se tornara e representava tanto, tanto, em sua vida, que acabara se tornando a razão dela.
Era seu motivo inconfessado para continuar vivo.
Seu empenho quanto a criação do filho podia ser resumido e expresso por uma única palavra: amor.
Aquele amor que o fazia sempre murmurar as frases mais ternas com palavras tão doces e tão suas, tão só suas.
Ou quando o erguia amorosamente, abraçando-o por estar choramingando quando, nos primeiros passos, cambaleava e caía.
Bastava ao pequeno apenas estender as mãos, para encontrar as do pai, que o segurariam dos tombos, a carícia para as horas da dor.
Quantas vezes Valdeci beijou mãos e dedos que o filho lhe estendia, alegando um ferimento inexistente, e que maravilhosa e magicamente saravam para sempre no instante seguinte...
À noite, antes que o filho dormisse, Valdeci o acalentava, afagava seus sonhos na hora do sono, juntava suas mãos na reza de uma oração de fé.
Fé, desejos, sonhos, esperanças...
E lhe falava da mãe, para que ele a conhecesse, para que ele soubesse quem ela havia sido e o que representara e representava e representaria sempre em suas vidas.
Aos oito anos Teófilo levou o primeiro baque real de sua vida, quando Valdeci um dia adoeceu e se foi. Havia simplesmente morrido de saudade. Sua alma – e coração – não conseguiram mais suportar aquela ausência que o consumia dia após dia. Tornara-se apenas uma sombra do que costumava ser.
Teófilo acabou de ser criado pelos avós, mas nunca se esqueceu da presença tão presente do pai em sua vida.
Presença que continuava em sua vida.
E, esperava, nunca a deixaria.
Tornou-se adolescente, sem nunca esquecer as palavras, as conversas com o pai, palavras e conversas que haviam se tornado uma diretriz para sua vida.
Em seus passeios ao anoitecer, quando caminhavam lentamente, o pai lhe falava da vida, procurava lhe transmitir algumas verdades a serem cumpridas antes que se tornassem fontes de amargura e dor, mesmo que o jovem talvez não as apreendesse ainda como deveriam ser.
Enfim, talvez fossem sementes plantadas, augurava em seu coração. Bem plantadas. Que Deus permitisse que caíssem em solo fértil. Para o bem do filho que amava tanto.
Tentava fazer com que o filho se tornasse futuramente uma pessoa boa, uma pessoa decente, uma pessoa direita.
Valdeci gostava de lhe falar das coisas do coração. De orientar, ensinar para o futuro.
E repetia, quantas vezes fossem necessárias, tentando tornar seus frequentes simbolismos em frases mais compreensíveis para a sua idade, para a sua pouca vivência:
“- Se você quer conhecer um mundo de amor, primeiro precisa colocar amor em seu próprio coração. O coração sabe o que sente, porque só sente o que a alma pensa. Se alguém não é bom, é porque sua alma não é boa. Quando se tem um coração puro ele cria asas, e é possível voar como um pássaro. Os arco-íris parecem estradas de anjos, cada anjo que passa deixa uma cor que brilha. Seja sempre um anjo em sua vida, querido. Para os outros, se não puder ser também para si próprio.”
Tentava lhe dizer no que se tornar:
“- As flores exalam o perfume que está dentro delas mesmas. Nós devemos ser como flores, sermos reconhecidos pelo perfume de nosso coração.
Tentava lhe ensinar como ser uma pessoa doce e benquista:
- Fale sempre com mansidão e delicadeza. A escolha de suas palavras vem de seu coração e se refletem em seus atos. Use sempre palavras boas, e você será bom. Existem palavras de todos os tipos. Grandes. Insignificantes. Suaves. Duras. Doces. Amargas. Acolhedoras. Incríveis. Procure sempre falar a palavra perfeita, só fale quando tiver decidido que achou a palavra perfeita. Sabe, as palavras começam a escurecer até que todas as outras somem devagar. Por fim resta apenas a última, tão brilhante e linda que é simplesmente a perfeita, a que você buscava e precisava para expressar o que sente, o que precisa transmitir.”
Tentava alertá-lo para as armadilhas da vida:
“- Que adianta estudar tanto, guardar tanto conhecimento na cabeça, e não guardar nada no coração?”
Tentava lhe transmitir um alento que o consolasse nos momentos de injustiça da vida:
“- Só a árvore que produz bons frutos é que se vê apedrejada, para deixa-los cair. À árvore estéril, ninguém dá importância, ninguém atira pedras.”
Tentava alertar para a realidade material da vida, no que os homens a haviam tornado:
“- As orquídeas não sabem que são valiosas. As flores que vivem na natureza não sabem qual vale mais para os homens, sabem apenas que uma precisa das outras. As pessoas é que gostam de calcular o valor das coisas.”
Tentava ensinar quanto as falhas em nossa vida:
“- Não enxergar as próprias falhas é como seguir sempre pelo mesmo caminho escuro, onde se cai sempre nos mesmos buracos. É cometer sempre os mesmos erros. Nunca se torne muito bom em causar sofrimento...”
Tentava lhe falar sobre drogas e o que podiam refletir em sua vida:
“- Drogas não vão aumentar ou diminuir tendências já presentes. Um homem que bate na mulher quando está bêbado normalmente já tem vontade de bater nela quando está sóbrio também.”
Tentava lhe ensinar quanto ao casamento, e suas responsabilidades:
“- Casamento é como uma plantinha que tem que ser regada todos os dias, e pelos dois. Se um deixar de fazer, ela começa a secar, e não importa o quanto o outro tente por mais água. Depois ficam as lembranças... e as culpas...”
Tentava lhe incutir sentimentos de consolo, talvez procurando consolar a si próprio:
“- É sempre assim, sempre a pessoa que amamos um dia tem que ir embora. Então, é como se todas as estrelas do universo se apagassem e ficamos iguais a vagalumes na escuridão. Mas, filho, quanto maior é a escuridão, mais forte se vê o brilho de um vagalume.”
Calou-se por um momento, diante o incompreensível do que acabara de dizer. E calou seu pensamento seguinte, só o dizendo amargamente a si mesmo:
- Se Deus existia, tinha esquecido o mundo, como um autor que esquece voluntária e deliberadamente o livro de que se envergonhava.
VI
Um dia a vida do jovem solitário Teófilo mudou, mesmo que ele não tivesse se dado conta disso no momento.
O sorriso lindo o atingiu fundo, a imagem mais indescritivelmente bela que ele já vira na vida: esperava a saída do colégio, quando uma garota se aproximou. De uma forma desconhecida e irresistível, ficou olhando enquanto ela passava pelo portão. Quando seus olhares se encontraram, ela sorriu e ele murmurou um olá ininteligível, sentindo o rosto queimar.
Ela se foi, carregando seus livros, e ele ali ficou, tempo demais parado, petrificado naquela explosão de sentimentos novos que desconhecia.
Durante os dias que se seguiram ele queria parar no meio da confusão de seus afazeres para revê-la e criar coragem para falar com ela. Sempre que a avistava, seu olhar a seguia, às vezes tão fixamente, que teria ficado constrangido se alguém reparasse.
Nos dias seguintes começaram a conversar um pouco na saída do colégio. A princípio encabulado, com a língua presa, logo passou a falar com uma paixão quase incontrolável, que para ele era totalmente desconhecida. Descobriu-se indescritivelmente apaixonado, ela se tornara a razão e o centro de sua vida.
Uma noite, sozinho, perdido em seus pensamentos, olhando pensativo as estrelas (- Olhe sempre as estrelas, meu filho, enquanto elas brilharem é porque haverá esperança na vida – lhe repetia o pai no mais profundo de sua alma), lembrou-se de uma pergunta que fizera quando Valdeci o levara para conhecer o mar.
- Papai... como conheceu mamãe?
Valdeci levou alguns momentos para responder, como se avaliasse o que dizer, como dizer.
Olhou com mais intensidade as estrelas de seu céu, sorriu com o deslumbramento de suas lembranças, as estrelas se tornaram ainda mais vívidas, mais brilhantes, os brilho dos vagalumes se tornou muito menos perceptível naquela noite especial, naquele momento especial.
Colocou o braço sobre os ombros do filho, olhando e ouvindo as ondas que quebravam suavemente na noite clara, a lua matizando tudo de dourado, o dourado que deveria ter sido a sua vida e a dos que amava.
Então começou a falar com suavidade, lentamente, como se monologasse consigo próprio:
- Era um domingo, eu estava sentado no banco da praça. De repente uma moça linda, numa bicicleta amarela, um vestido cheio de flores, passou, olhou para mim, recebi o sorriso mais lindo que já ganhei em minha vida.
Calou-se por um instante, como se revelasse uma lembrança muito preciosa.
- Começamos a namorar, nos apaixonamos e depois nos casamos. Um dia ele me disse que lhe parecera que aquele moço estava desamparado e sozinho, só esperando alguém que ele tornaria muito especial surgir em sua vida. Depois, muito depois, confessou que se encantara com a cor azul de meus olhos, igualzinho a do mar que ela gostava tanto.
Teófilo o olhou, compenetrado e quase incrédulo.
- Simples, assim?
Valdeci o estreitou em seu abraço.
- Simples assim, meu filho. E nem por isso... ou talvez por isso mesmo... se tornou tão lindo, tão maravilhoso. É a história da moça linda que me sorriu numa bicicleta amarela quando usava um vestido florido, e por quem me apaixonei. Ela, por sua vez, se apaixonou pelo moço desamparado e sozinho de olhos da cor do mar que ela gostava tanto e que só esperava ela chegar e se tornar o alguém especial que eu precisava em minha vida.
Ficaram em silêncio, nos momentos que se seguiram.
- Pai... por que ficou tão calado de repente? – perguntou.
Valdeci o olhou com ternura.
- Sabe, filho, sua mãe gostava muito do mar, era aqui, justamente aqui, que nós dois vínhamos sempre que podíamos viajar. Ficávamos abraçados, olhando o mar, olhando a lua, olhando as estrelas, sentindo e dizendo o quanto éramos importantes e necessários um para o outro.
Sabe... muitas lembranças...
O silêncio entre os dois se fez presente outra vez.
Depois de algum tempo foi a vez de Valdeci se voltar para o filho que o evitava encarar.
Valdeci ergueu delicadamente seu rosto cabisbaixo e se surpreendeu com as lágrimas.
- Ei – perguntou delicadamente – não me diga que nossa história o deixou triste.
Teófilo tentou virar o rosto, Valdeci não o permitiu.
- O que foi, garoto? – indagou com suavidade.
- Pai...
- Diga, filho...
Um soluço lhe embargou a voz quando Teófilo tentou responder.
- Pai...
- Diga, meu filho, o que foi?...
Teófilo começou a chorar, triste e incontido.
- Eu fui o culpado, pai...
- Oh, meu filho, culpado do que?
- Eu a tirei de você... eu matei minha mãe...
Valdeci o abraçou firmemente, para não desabar também.
- Não, filho... nunca Foi coisa da vida, meu filho... você não teve culpa...
- Pai... se eu não tivesse nascido, ela ainda estaria a seu lado...
- Não, filho, jamais... Não são assim que as coisas funcionam... Ela era tão maravilhosa que Deus a levou para Ele. Mas me deixou você, para tomar conta de mim... como sua mãe tomaria se estivesse ainda aqui.
- Mas, pai... eu sou pequeno... não sei e não posso tomar conta de você...
Valdeci tentou um sorriso.
- Ah, filho, aí é que você se engana. Para quem eu voltaria depois de um dia de trabalho, se não tivesse você? E, sabia, sabia que você tem em você muitas coisas dela? Coisas que sempre me fazem ver ela quando olho para você?
- Pai... não estou entendendo direito o que você quer dizer.
Valdeci o abraçou ainda com mais sofreguidão.
- Um dia você vai entender, filho, um dia você vai entender. E então saberá o quanto é importante e necessário em minha vida... E o quanto ela foi importante e necessária em minha vida.
Agora, olhando as estrelas e pensando nas palavras do pai, Teófilo finalmente entendia.
Enxugou uma lágrima teimosa e involuntária, sorriu para as estrelas.
Será que um dia ele se apaixonaria pela moça linda uniformizada que carregava seus livros e lhe sorrira na saída do colégio? Será que um dia ela se apaixonaria pelo moço que lhe dissera um “olá” ininteligível enquanto sentia seu rosto queimar?
Será que se apaixonaria como o pai se apaixonara pela moça linda que lhe sorrira quando passava numa bicicleta amarela, usando um vestido florido?
E será que ela se apaixonaria por ele como sua mãe, que por sua vez se apaixonara pelo moço desamparado e sozinho de olhos da cor do mar que ela gostava tanto e que só esperava ela chegar e se tornar o alguém especial que ele precisava em sua vida?
(Continua)