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Sentimentos - Fernando Coimbra dos Santos

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"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".

 


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Melodia em Tom Menor - Intróito ao Cap. III

Quarta, 28 de março de 2018

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INTRÓITO

- Como você faz isso?

- Isso o que?

- Você toca e o mundo inteiro se ilumina!

***

Se você for guiado apenas pela razão, não continue a ler este livro.

Pois, apesar dele fazer a todo momento inferências sobre música, ele vai muito além disso.

Há nele aspectos luminosos que só podem ser compreendidos à luz de nossas emoções e sentimentos.

E não é a lógica, certamente, que orientará este entendimento.

É como se dois acordes fossem tocados simultaneamente, ao mesmo tempo, e apesar de se mesclarem, nós temos a percepção disso, a individualidade de cada um.

A música inteira, talvez, jamais escutaremos.

Mas podemos ter vislumbres de sua harmonia e melodia.

E sua indescritível beleza.

É a voz do coração. É a sensação de que um caminho desconhecido é melhor que outro em determinada situação.

A canoa da vida de cada um de nós flutua ao sabor das marés no oceano do seu destino, que já está em nós. Mas, se içarmos alguma vela, mesmo que meio desajeitados, ou simplesmente remarmos (com as mãos, que seja), já estaremos talvez ajudando o despertar do que realmente somos.

Afinal, o desamparo faz parte da vida.

Vivemos sobrenadando num oceano de sincronicidades, das quais percebemos só uma pequeníssima parte. Tudo aconteceu (ou acontece) com diferentes probabilidades. Mas, o que determina este sincronicidade?

Os sonhos são bons por simplesmente existirem, independentemente de terem sido realizados ou não.

Há certos amores que, por maiores que sejam, não devem e nem podem ser vividos. Mas isso não implica que devam ser evitados.

Ou esquecidos.

Este livro não é sobre teoria musical.

O que leva uma melodia a ser sentida no chamado tom menor?

Sentida?

Sim, sentida.

Por algum mistério do chamado Universo Musical, tons maiores são considerados (sentidos) alegres e os menores, tristes. Ou melancólicos.

Músico nenhum sabe explicar bem o porquê, mas a concordância é unânime quanto a estas percepções, a estes sentimentos.

O que torna uma música, uma melodia, triste ou melancólica?

Não, não são palavras sinônimas. São muito mais que isso.

Porque adquirem um maior grau de compreensão (ou, mais precisamente, de percepção) conforme nosso estado de alma.

Em princípio, quanto mais tristes ou melancólicos estivermos, mais triste ou melancólica sentiremos a música. A mesma música.

É, portanto, um sentimento, uma percepção altamente subjetiva.

Tipo: como revelar a um cego de nascença o azul do céu?

Talvez seja mais fácil para um músico explicar (ou tentar que a pessoa intua) através de uma demonstração prática com um instrumento.

Entretanto, explicações técnicas (ou tentativas efêmeras) à parte, músicas em tons menores são simplesmente melodias com muito maior sensibilidade.

Normalmente, mais lentas, mais profundamente melódicas.

Que nos falam e tocam profundamente a alma e o coração.

Evocando lembranças.

Evocando perdas.

Evocando sentimentos.

Evocando saudade(s).

***

O filme Mr. Holland (https://www.youtube.com/watch?v=fec59TLfQUE) foi um dos mais sensíveis e tocantes que já vi. Se ainda não o conhece, veja-o. Se já o conhece, veja-o outra vez.

Numa primeira situação uma aluna loirinha vem comunicar que está desistindo da Música. O professor está diante do piano quando ela entra silenciosamente, cabisbaixa.

- Mr. Holland...

- Está atrasada. E deixou seu clarinete aqui outro dia.

Ela o olha com tristeza.

- Se souber de alguém que o queira... Estou desistindo do clarinete. Só estou atrapalhando os outros. Quero agradecer-lhes por tentarem.

Ela começa a sair da sala, o professor a impede, com uma pergunta.

- É legal?

Ela é sincera:

- Eu queria que fosse.

Ele reflete. E diz:

- Estamos fazendo errado. Estamos tocando notas escritas.

Ela estranha.

- O que mais há para tocar?

- Música é muito mais do que notas. Isso aqui, por exemplo.

Levanta-se, coloca um disco na eletrola. E continua:

- Os caras não sabem cantar... e não têm nenhum senso de harmonia. Repetem sempre os mesmos três acordes. E eu adoro. Você gosta?

Pela primeira vez ela sorri.

- Sim...

- Por que? – pergunta o professor.

Ela pensa.

- Não sei.

- Sabe sim.

Pensa, outra vez. E arrisca:

- Porque é legal?

- Isso mesmo. Porque tocar tem que ser uma coisa legal. Música é coração. É sentimento... tem que fazer a gente achar lindo estar vivo. Não são só notas numa pauta. Posso te ensinar isso. As outras coisas, não posso. Me faça um favor. Pegue seu clarinete e toque comigo. E, desta vez...

Tira a partitura a frente dela, que balbucia um protesto.

- ... sem ler. Porque você já sabe música. Está na sua cabeça, nos seus dedos e no seu coração. Só que não confia em si mesma.

Senta-se ao piano.

- OK. Vamos lá. Pronta?

Ela tenta por duas vezes, erra, desafina, desiste. O professor insiste, não se dá por vencido.

Olha-a avaliativo, sério, e então pergunta inesperadamente:

- Me responda uma coisa. Quando você olha no espelho... do que gosta mais?

Ela pensa. Sorri.

- Do meu cabelo.

O professor continua a olhá-la avaliativo, compenetrado.

- Por que?

Ela sorri outra vez, com a alegria da descoberta.

- Meu pai sempre dizia que o fazia se lembrar do pôr do sol.

O professor a olha fixamente.

- Toque o pôr do sol... Feche os olhos...

E ela toca maravilhosamente o pôr do sol.

***

O professor está selecionando cantores e cantoras em uma nova turma de alunos. Sente o potencial de uma delas, interrompe o ensaio, chama-a para uma conversa.

- Cantei o melhor que pude – ela lhe diz.

Ele responde:

- Foi ótimo. Só quero lhe fazer uma pergunta. O que acha que a garota sente nesta música?

Ela pensa, não sabe bem o que responder.

- Não sei.

Ele a olha com seriedade. E explica:

- Tem que saber. Se não, não pode cantar. Esta música é triste, srta Morgan. Fala de uma mulher sozinha num mundo muito frio. O que ela quer mais que tudo, é ter alguém que a abrace... e lhe diga que tudo vai dar certo. Fala da necessidade de amor que temos lá no fundo. OK? Tente de novo. Do início.

Com o passar das semanas ela se descobre apaixonada pelo professor.

E então entende.

Sofre.

Centenas de pessoas no auditório simplesmente desaparecem.

Só existe ele à sua frente, em sua vida, só ele.

É só para ele que ela canta, que ela grita que precisa que ele a abrace, que lhe diga que tudo irá dar certo.

E tantas, tantas outras coisas...

E sua interpretação atinge uma perfeição e profundidade indescritíveis.

Uma das músicas compostas na década de 20 por George Gershwin, meio século depois se transforma em sua música, a música que diz o que ela leva e sente em seus sentimentos, em seu coração.

Ele percebe. E se confunde. E se inquieta.

Mas não pode aceitar, ela é só uma menina.

E ele é casado.

E ama sua família.

E ama sua esposa.

Isto é música.

A linguagem da alma.

A linguagem do coração.

 

I

Não que tenha nascido numa família de músicos, ninguém do lado materno ou paterno tocava qualquer instrumento.

Mas teve a felicidade de nascer numa família que apreciava música.

Música boa.

De qualidade.

Música que falava à alma.

O móvel principal da sala de sua casa, em destaque, era uma vitrola.

Uma rádio vitrola, como era mais apropriadamente denominada, já que também trazia um rádio incorporado.

O rádio, valvulado, tinha diversas faixas de funcionamento: altas, médias e curtas. Ondas curtas permitiam a recepção de rádios estrangeiras, do outro lado do mundo.

Lembrando: ainda não havia televisão por aqui.

Só muitos anos depois foram disponibilizadas emissões em FM, os outros tipos infelizmente caindo em desuso, engolidos que foram pelo comodismo e por uma alegada falsa evolução da tecnologia.

Quando a FM foi lançada, em princípio não foi bem aceita pelo público, era encontrada somente em locais específicos, considerada “música de espera de consultórios”.

Detalhe: transmitia apenas músicas orquestradas.

Não havia locutores.

Não havia anúncios.

Só músicas, exclusivamente músicas instrumentais.

E as pessoas sentiam falta das músicas cantadas, das letras que ouviam, que lhe traziam mensagens e sentimentos mais diretos, não evocados.

Foi só uma questão de hábito para que a FM se popularizasse.

Foi só uma questão de tempo para que as pessoas começassem a participar do processo, cantarolando a letra ausente.

No próprio móvel da radio vitrola, dois grandes compartimentos para acomodar discos de vinil. Que tinham que ser armazenados em pé, nunca deitados. Ou inclinados.

Vitrolas em alta fidelidade demandavam discos em alta fidelidade, o que era uma consequência (ou decorrência) natural.

Ouvindo uma música orquestrada, muitas pessoas tinham a capacidade de saber precisar onde estaria cada grupo de instrumento dentro da orquestra que a executava. Ou um instrumento específico.

O disco tinha que ser retirado da capa de papel cartão com cuidado.

E da capa plástica interna com mais cuidado ainda.

E reverência.

De modo que o polegar ficasse na borda e os demais dedos estirados próximos ao centro, mas afastado das faixas gravadas, senão a gordura da mão poderia comprometer a qualidade da reprodução.

Tinha que ser protegido também da poeira, obrigava uma série de cuidados.

E as vitrolas requeriam regulagem quanto a velocidade com que o disco deveria girar.

Tudo começou com os discos de vinte e cinco centímetros de diâmetro, tocados em 78 rpm – rotações por minuto. Tinham apenas uma única música (ou melodia) de cada lado.

Depois chegou o long-play, que apresentava seis músicas de cada lado. Era um pouco maior, com trinta centímetros de diâmetro, e comportava mais musicas, tocadas em 33 rpm.

Alguns, mais antigos, como os de Caruso, eram gravados só numa face, a outra era completamente lisa, servia apenas como base, apoiava o disco no prato.

Raros. Para poucos.

Como traziam doze músicas, nem todas caíam no gosto do público, o que levou a indústria a criar e lançar os compactos, que apresentavam duas músicas, uma de cada lado.

Discos menores, com dezessete centímetros de diâmetro. Tocados em 45 rpm. O chamado compacto simples.

Mostrou-se insuficiente. E surgiu o compacto duplo, mesmo tamanho, mas com duas músicas em cada face.

Décadas depois, os CD’s. E DVD’s.

Que, entretanto, mesmo com maior praticidade, mesmo contornando diversos problemas, jamais tiveram ou teriam a qualidade de reprodução dos discos de vinil. De fidelidade.

O principal argumento utilizado que defende a superioridade do vinil em relação às mídias digitais lançadas em 1982 é que as gravações em meio digital cortam as frequências sonoras mais altas e baixas, eliminando harmônicos, ecos, batidas graves, naturalidade e espacialidade do som.

Estas justificativas não são totalmente infundadas, visto que a faixa dinâmica e resposta do CD e DVD não superam em todos os quesitos as do vinil.

Especialmente quando se trata de nuances que, nos sistemas digitais, são simuladas através de técnicas específicas. Até hoje não devidamente aperfeiçoadas, se é que o conseguirão algum dia.

Havia música.

Não o que hoje em dia é chamado indevidamente de música.

Não só pelo talento dos compositores e intérpretes da época.

E – por que não dizê-lo – também pelo talento dos ouvintes em saber apreciar devidamente o que era para ser apreciado.

Aqueles tempos não comportavam as facilidades que os chamados tempos modernos trouxeram. Gravar um disco, conseguir gravar um disco, era uma coisa séria, muito séria.

E, portanto, quando havia uma oportunidade, ela tinha que ser devidamente honrada, daí a qualidade, não se gravava qualquer lixo como é possível fazer hoje em dia, quando as gravações se tornaram única e exclusivamente uma questão de ter ou não dinheiro (recursos).

No início do século passado, cantava-se o amor que se havia ido, que se havia perdido, principalmente.

Veio a Jovem Guarda, passou-se a cantar o amor que estava ao nosso lado. Ou o amor que viria.

Hoje?

Não se sabe.

Existe amor ainda hoje em dia, amor de verdade?

Existe música ainda hoje em dia, música de verdade?

Existe gente ainda hoje em dia, gente de verdade?

Existem sonhos ainda hoje em dia, sonhos de verdade?

Mas, não que ele tenha nascido numa família de músicos, ninguém do lado materno ou paterno tocava qualquer instrumento.

Teve a felicidade de nascer numa família que apreciava música.

Música boa.

De qualidade.

Música que falava à alma.

Foi criado ouvindo boa música.

E ela lhe foi ensinada, era parte da educação da época.

Parte de um sistema de vida que, infelizmente, foi engolido pelo tempo.

Soube – quando teve discernimento e compreensão para isso – que pequenino, um dia envolveu um dedo do pai com seus dedinhos.

O pai, embevecido, com delicadeza retirou sua mão, abriu a do filho, admirou-a, beijou-a e augurou, dizendo do fundo do coração para a esposa que os olhava:

- Nosso filho, um dia, será um pianista. Um grande pianista.

Antes de ser posto no berço, a mãe o pegava no colo, o embalava amorosamente com delicadeza, cantarolando sempre uma cantiga de ninar, um acalanto.

Assim começou a música em sua vida.

 

II

Antes mesmo de entrar para a então escola primária, teve uma professora. De piano.

Suas mãos pequenas se esforçavam quase que desesperadamente diante da impossibilidade de abraçar e tocar duas notas iguais em oitava.

Mas, ao longo do tempo, sua perseverança foi recompensada.

Com o passar dos anos, seus atritos com as professoras começaram, elas se queixavam que ele não tocava o que elas queriam, o que a sistemática de ensino determinava.

Ele tentava explicar:

- Só quero tocar o que eu gosto. Não é só porque uma música é clássica que ela se torna bonita. De minha mente, antes de chegar ao teclado, ela tem que passar por meu coração. Este é o meu caminho, professora.

As mestras, vezes sem conta, se impacientavam.

- Se você não tocar todas as músicas necessárias, independentemente de gostar ou não, jamais será um pianista de verdade.

Ele questionava.

- E o que é ser um pianista de verdade, professora?

A resposta vinha pronta, como se previamente ensaiada e decorada:

- É tocar tudo com boa técnica, como deve ser. Ou acha que tem alguma outra maneira?

Ele a olhava, paciente. E retorquia:

- E o que é a boa técnica, professora? Tocar sem errar? No tempo certo? Acompanhar direitinho o metrônomo, obedecer direitinho os tempos que ele determina?

A professora, descuidada com o alcance do que viria, geralmente sorria com a aparente vitória.

- Isso mesmo.

- Como se eu fosse uma caixinha de música? Ou um disco? Sempre tocando a mesma música da mesma maneira, sempre igualzinha, todas as vezes?

A falta de argumentos encerrava a lição e a preleção por aquela tarde, a professora o olhava furiosa enquanto ele guardava a partitura, colocava o feltro sobre o teclado, fechava o tampo do instrumento com delicadeza.

Lá da porta voltava-se, a olhava e dizia sem maldade, tentando se fazer compreender:

- Já imaginou um metrônomo numa música de jazz de verdade, professora? Se ela é toda em improviso, como usar um metrônomo?

A professora ralhava:

- Você quer ser um músico de verdade ou um bêbado de bar tocando alguma coisa?

Ela se recusava a repetir a pergunta “o que era ser um músico de verdade”, apenas se despedia sem dizer mais nada.

A mestra, desgostosa, vencida, apenas acenava um até logo.

A caminho de casa, ele ia pensando, refletindo.

Lia muito. Era um leitor voraz de bons livros, muitos deles sobre música, sobre músicos, como não podia deixar de ser.

Não apenas lia, tinha uma mente que podia ser chamada de prodigiosa, analista, comparativa, intuitiva. Não se limitava a aceitar apenas o que lia. Questionava, ponderava.

Para sua felicidade, vivia na era do Jazz.

Não tinha amigos, não tinha tempo para amigos, o amigo predileto era um radinho valvulado que sintonizava em seu quarto em boas músicas e, literalmente, viajava com seu ritmo.

Aprendera muito, ouvindo entrevistas com músicos, ouvindo conversas entre músicos.

Críticos e críticas musicais não lhe interessavam. O importante, para ele, era o que sentia, o que intuía, o que a melodia lhe dizia à alma e ao coração.

Sorria, comovido, lembrando-se, recordando.

Quando ganhara o seu piano vira o pai – que nada sabia tocar – sentar-se diante do instrumento, fechar os olhos e tentar infrutiferamente que seus dedos desajeitados e ignorantes do que faziam encontrassem de alguma forma inconcebivelmente maravilhosa a possibilidade de uma musica qualquer.

Nunca encontrada, nunca tocada, mas que se tornara presente por toda a sua vida, inesquecível, maravilhosa.

O jovem recusava-se a se eternizar na reprodução fiel de uma partitura. Recusava-se a ser um mero e fiel reprodutor de notas impressas numa pauta, como se fosse a caixinha de música que ilustrara para a professora descontente, a ser um disco gravado repetindo indefinidamente a melodia sempre da mesma maneira, sem surpresas, sem variações, sem as variantes da estrada que verdadeiramente queria percorrer.

Em seu coração, uma musica jamais deveria ser tocada da mesma maneira duas vezes que fosse.

Aprendera e absorvera irremediavelmente que os músicos de Jazz não são uns improvisadores que passam horas e horas estudando padrões melódicos e rítmicos para depois criarem um falso conceito de improvisação.

São indivíduos com histórias tristes, trágicas, dolorosas, como todos nós. Que transformavam lágrimas em música, sofrimento em ritmo, perdas em consolos temporários.

Improvisação, para muitos críticos indevidos, tornara-se sinônimo de músico mal preparado. No fundo, inadmitido, porque a improvisação tem uma tendência enorme para a imprevisibilidade, para o desconhecido.

O desconhecido que não sabiam compreender, que não tinham como intuir, que, por isso mesmo, por sua ignorância e incapacidade, se recusavam a apreciar.

Ao contrário da música clássica, que cria uma ambientação complexa para fazer com que os sentidos floresçam, com o Jazz, fica perceptível o sentimentalismo dos músicos.

Seus espíritos residem em suas músicas. Músicas que flutuam numa atmosfera de transfiguração, um suave e interminável martírio.

Músicas que têm uma estranha sensação de condenação.

Ele, ouvindo e entendendo visceralmente este tipo de música, comprovou que para os iluminados o valor das coisas está realmente na intensidade que elas carregam, e não no tempo que duram.

Como o amor por uma mulher.

Depois de um abandono o músico ficava de tal forma deprimido que só lhe restava uma possibilidade: transpor para uma melodia o que lhe ia nos sentimentos, alma e coração.

É justamente assim que as paixões intensas funcionam.

É como ser atingidos por um raio quando menos se espera, e de repente, seu corpo, sua alma, sua existência, são preenchidos de uma energia explosiva, irreversível, sem ter como voltar atrás, para o estado anterior.

Só passível de se expressar através da música, do ritmo.

Admirava a história de Charlie “Bird” Parker. Talvez admirar não fosse o termo exato, mas soubera entender, soubera compreender o que o músico norte americano tornara sua vida.

Aos onze anos Charlie ganhou um presente da mãe, que fez uma grande poupança e muitos sacrifícios: um saxofone alto. A ideia era tirar o garoto da tristeza em que vivia pelo pai ter abandonado o lar.

Aos quinze se casou, e pela primeira vez começou a usar heroína.

O casamento durou pouco, mas a dependência pela droga, a vida inteira, morreu com apenas trinta e quatro anos.

Não foi consumido pela própria fama, mas foi um astro cujo talento se impôs por sua técnica e sensibilidade musical, apesar de sua tendência prematura à autodestruição.

Sua música, sua interpretação, resumia sua vida: um caos que era conduzido rumo à beleza, rumo ao sublime.

Como tantos outros instrumentistas o faziam, não necessariamente se refugiando também em drogas e bebida: bastava-lhes seus instrumentos.

Seres humanos especiais aguilhoados por uma dor intransponível, que recusavam-se a perder a luz e o brilho no olhar, mesmo sabendo que muitas coisas que sentiriam doravante no mundo iriam escorrer em seus olhos.

Que se recusavam a perder a beleza e a alegria de ver, mesmo sabendo que muitas lágrimas iriam brotar de seus olhos e escorrer por suas almas.

Através de um instrumento.

E do que seriam capazes de transmitir com ele.

 

III

É estranho, quase inexplicável.

Mas às vezes basta um simples detalhe, um acontecimento corriqueiro, para evocar um turbilhão de lembranças.

Um pôr do sol olhado momentaneamente e a seguir aparentemente esquecido.

Só que de repente sentiu que a noite chegara depressa demais em seu coração.

O olhar fixo perdido ao longe involuntariamente o transporta ao passado, que de repente se torna tão presente.

Não tem fotos daquela época, mas não precisa delas para se lançar nas lembranças dolorosas.

Para isto basta o cenário conhecido, um pôr do sol dentre tantos outros. Olha para o vazio profundo que se abre dentro de si e onde se precipita, os inúmeros fantasmas de seu passado dilacerando suas defesas.

Então, seu primeiro amor lhe veio à mente.

Seu sorriso lindo doeu fundo, a imagem mais indescritivelmente bela que já vira na vida: ele esperava a saída do colégio, quando uma garota se aproximou.

De uma forma desconhecida e irresistível, ficou olhando enquanto ela passava pelo portão.

Quando seus olhares se encontraram, ela sorriu e ele murmurou um olá ininteligível, sentindo o rosto queimar.

Ela se foi, carregando seus livros, e ele ali ficou, tempo demais parado, petrificado naquela explosão de sentimentos novos que desconhecia.

Durante os dias que se seguiram ele queria parar no meio da confusão de seus afazeres para revê-la e criar coragem para falar com ela.

Sempre que a avistava, seu olhar a seguia, às vezes tão fixamente, que teria ficado constrangido se alguém reparasse.

Nos dias seguintes começaram a conversar um pouco na saída do colégio. A princípio encabulado, com a língua presa, logo passou a falar com uma paixão quase incontrolável, que para ele era totalmente desconhecida. Indescritivelmente apaixonado, ela se tornou a razão e o centro de sua vida.

E exatamente dois anos, três meses e onze dias após a primeira vez que a viu, ela se foi.

E com ela uma imensa parte dele.

Nos meses que se seguiram, arrastou-se pelo que lhe sobrara de vida como um autômato, encerrado numa intransponível muralha protetora, decidido que nada de mau, externamente, o atingiria outra vez.

Ouvia canções sobre desejos e perdas que pareciam lhe falar diretamente. Pouco a pouco ia bloqueando as lembranças (ou assim pensava), mas nada lhe era tão importante quanto a simples presença dela, que não tinha mais.

Este novo sentimento o consumiu por completo, como é natural no primeiro amor, uma sensação que vem do próprio sangue, do mais profundo recôndito de nossa alma.

Às vezes, entorpecido, pensava tê-la esquecido, mas ao se deparar com um sorriso parecido, com uma curva de cabelo esvoaçante, com o simples dobrar de uma esquina e se ver de frente com um lugar ou detalhe que fizera parte de suas vidas, ele se desmoronava.

Pensara ter se reconciliado com esta vida, e sentia dolorosamente a inutilidade de seus esforços, em cada pequenino pedaço dos milhares em que se fragmentara. E se forçava a ir em frente, brutalizado, aparentemente insensível, sua forma de sofrer, sua maneira de chorar.

Passou alguns meses num atordoamento que pouco diminuiu com a mudança para outra cidade.

O local, as pessoas, eram diferentes, mas a sua solidão era a mesma, já que a trazia dentro de si.

Nunca na vida se sentira tão magoado, tão desnecessário, e pensou que jamais poderia se refazer disto.

Sentia-se amargurado e zangado, a ferida sangrava e se recusava a sarar.

Ficou com medo de tudo e não se permitia sonhar mais.

E às vezes é melhor termos uma ilusão, mesmo sabendo que se trata de uma ilusão, do que não termos nada.

Ficou com medo de sonhar, e se refugiou em coisas do passado, em coisas do tipo "poderia ter sido".

Ou, como bem diz aquela música que ainda não foi escrita: "se ninguém atender a seu chamado, siga seu caminho sozinho".

E seu grande erro: nunca devemos nos amparar numa só esperança. Um dia ela falta, e a gente naufraga.

Passaram-se muitos meses que se transformaram em anos, mas dentro de si o lugar ocupado por seu anjo (como a chamava) o fazia estremecer sempre que o tocava. Ele queria e não podia esquecer. E nem sabia mais se ela era realmente especial, ou ele que a tornava assim, não importava.

Apenas lembrar dela, mesmo tanto tempo depois, fazia seu coração falhar uma batida. E seguia pelas ruas e praças ridicularizando os casais que encontrava, como se seu deboche fosse verdadeiro, como se aquilo de alguma forma pudesse mudar alguma coisa dentro de si.

Como num delírio continuava a vê-la diante de si.

Estendia as mãos que nada encontravam, seus braços se fechavam no vazio, o sorriso lindo tão presente se volatizava diante de suas súplicas, e ele constatava que não existem infernos já feitos para os atormentados.

Em sua angústia, quando lhe perguntavam dela, se ele a esquecera, sua expressão de atordoamento era a resposta dolorosa.

Não importava se aquilo lhe fazia mal, se aquilo o consumia.

Era lembrar, ou morrer de vez, ele que morria um pouco cada segundo que não a tinha.

Aos poucos deixou de responder às perguntas, tornou-se desconfiado e não se abria com mais ninguém. Fechou-se para as pessoas e para a vida. Se as coisas tinham que ser assim, assim seriam. Não fazia mais diferença.

Quando nossos olhos secam, chega-se a um lugar além das lágrimas, um espaço desolado e vazio onde nada cresce e as almas abatidas secam por falta de sustento.

É possível que nunca mais a visse, mas suas vidas ficaram profunda e inseparavelmente entrelaçadas.

Por ela conheceu a terra além das lágrimas.

No próximo verão foi para outra cidade. Sentia-se mais velho, prematuramente mais velho, mais sábio e certamente menos ingênuo. Apesar da sensação de que parte de sua vida havia terminado. Ou a própria vida.

Soube de seu casamento. E o que lhe sobrara de sanidade acabou de vez. Brutalizado, ele se arrastava pela vida. Seu sorriso se tornou ainda mais triste, trazia o brilho apagado do sofrimento nos olhos castanhos.

Olhar para ele era o mesmo que olhar para um lago escuro que refletisse a tristeza de sua alma.

Ele não se dava conta, mas afigurava-se como um passarinho cambaleante, arrastando a asa quebrada pelo chão: "- Ajude-me – pedia baixinho (sem o saber) com a voz daqueles que estão morrendo. - Mais do que tudo no mundo eu quero voar...".

Em algumas noites o luar formava um caminho sobre a noite, ligando a cidade ao céu estrelado, como se pudesse caminhar sobre ele. Aonde o levaria? Aonde quisesse, era o que ele gostava de pensar. Aonde iria? Não sabia. Não importava.

No entanto, relutava em se desfazer das duras lições de seu passado, tinha medo de sofrer outra vez.

Ele não se entregava o suficiente, e de repente o passarinho que curara a asa quebrada alçava voo. E ele ficava incrédulo, preso à terra, enquanto um possível outro amor abria as asas sem esforço e rasgava o negror da noite que se abria novamente dentro de si.

Ela se ia e o deixava só outra vez com os fantasmas de sua vida.

Refugiou-se em duas coisas: nas noites de chuva e no seu piano.

A chuva. Talvez sua fixação pela chuva fosse uma maneira de exteriorizar suas lágrimas, uma forma dentre tantas outras, assim como mantinha em seu rosto uma máscara de insensibilidade, de indiferença, de impenetrabilidade.

Um imenso vazio. Uma estranha compulsão de sentar-se a um piano e transcender para o teclado toda a angústia, desespero e solidão.

Uma forma indefinível de apaziguar os fantasmas de seu passado tão presente.

Ou, talvez, o único fantasma fosse ele, uma sombra que carregasse em si a dor dos sonhos desfeitos, a certeza de perder as coisas antes mesmo de chegar a tê-las.

Ele se precipitara num poço escuro e sem fim, e não havia meio de subir de volta, não havia calor de mãos amigas ou som de voz humana.

Fechar os olhos, e de alguma maneira inexplicável, transmitir ao teclado a melodia angustiosa que se agitava dentro de si, aprisionada, sem uma forma de se expandir.

Uma melodia que não sabe identificar, não sabe descrever ou falar sobre ela. Uma melodia que se agita em convulsões estremecidas, uma melodia angustiosa e desesperada, e por isso mesmo, triste, infinitamente triste.

Talvez, quem o saiba, talvez se ele conseguisse transpô-la para o teclado, talvez ele se reencontrasse, talvez ficasse em paz consigo mesmo. Mas nunca o conseguiu.

Muitas vezes ele só erguia os olhos ansiosos para os céus, na esperança de ver outra vez aquele passarinho de asa quebrada que um dia partira para não mais voltar.

Num riso amargurado, raiando a insanidade, reconhecia que seu tratamento fora bom demais.

E agora ele pagava o preço outra vez.

E seu piano e a chuva eram os liames que o prendiam teimosamente à vida, à lucidez discutível do que ele se tornara.

(Continua)

 



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