"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".
(continuação)
VI
Alguns dias depois, numa tarde de chuva, o sino da capelinha começou a tocar outra vez. Todos acorreram, agora sabendo que era o que se tornara até com ansiedade um chamado de Zé Luiz.
Desta vez, o sino soava sincopado, mais lento, mais triste.
Até funéreo, para os mais sensíveis de coração.
Encontraram Zé Luiz sempre abraçado inexplicavelmente à bonequinha, mas desta vez um Zé Luiz ainda mais triste e pesaroso.
- Meus irmãos e irmãos – principiou. – Obrigado por terem atendido meu chamado. Mas está na hora de eu ir embora, preciso me despedir de cada um de vocês. E agradecer por terem feito um pouco parte da minha vida.
Todos quedaram, estarrecidos com o que não esperavam e não queriam ouvir. O mais velho, incrédulo, com olhos marejados se aproximou e disse o que todos sentiam em seus corações e não traduziam em palavras:
- Não, você não pode ir embora, Zé Luiz. Quem irá nos dizer então seus ensinamentos tão bonitos?...
Zé Luiz colocou a mão livre sobre o ombro do velho morador.
- Obrigado, meu amigo... mas minhas palavras não devem ser só bonitas... nem são minhas. Sou apenas o instrumento de alguém maior que nos olha e nos ampara lá do céu. As palavras são Dele, apesar de saírem de minha boca. São palavras não só para serem bonitas – porque são – mas são palavras para serem, sobretudo, vividas por cada um de nós.
- Sim, Zé Luiz, mas... – e as palavras lhe faltaram.
Zé Luiz o olhou com ternura.
Aprendera a ver em cada um o que realmente era, a despeito das falsas e ilusórias aparências. Foi com o coração, não com os olhos, que aprendera a entender a alma das pessoas. Continuou, comovido:
- Para as pessoas que fazem as coisas bem feitas, nem que seja só para elas; para que as que sabem que a vida é algo mais do que aquilo que nossos olhos vêem, o que eu lhes disse nestes dias são palavras com sentido. Para as outras elas serão apenas palavras bonitas, mesmo que muitas vezes incompreendidas.
Fez uma pausa amarga.
- Mas, está na hora de ir embora. Estou muito longe de casa para morrer e ser enterrado uma terra que não é a minha. Mesmo a despeito de tantas pessoas boas que conheci aqui. Não que morrer aqui faça muita diferença, sei que por lá as coisas não serão muito diferentes, a esta altura da minha vida. E nem sei mais onde é a minha casa, só posso suplicar que Deus me encaminhe para lá.
- Mas... você é tão bom, Zé Luiz... e agora vai nos deixar... vai nos abandonar...
O posicionamento o entristeceu ainda mais.
- Pessoas boas e más são uma constante em nossas vidas. Mesmo que aparentemente as segundas suplantem infinitamente vezes as primeiras. Como saber o quanto somos direitos, corretos, honestos, dignos e necessários, se não fossem os calhordas, as ordinárias bestas-humanas que encontramos diariamente em nossas vidas? Nosso obrigado a elas. Por nos revelarem o quanto diferentes delas nós somos. Pessoas que nos fazem procurar ser um ser humano melhor a cada dia. E nos ajudam com isso, através de sua maldade.
Calou-se por um momento, deixando aquelas verdades atingirem cada um que o ouvia.
- Chegou, realmente, minha hora de ir embora. Para onde? Não importa, ainda não o sei, talvez o descubra no caminho se a vida me der tempo para isso. Até um dia, então. Até lá, que nos reencontremos toda vez que se faça preciso em nossas lembranças e recordações, mesmo que com saudade. Porque é embrulhar as fossas no papel do não faz mal, e ai de nossas vidas se não fosse assim.
O velho suplicou
- Fique, Zé Luiz, fique... temos ainda tanto a aprender com você...
- Não posso, meu irmão querido. Assim como Deus um dia me trouxe para vocês, agora preciso ir para outros. Não sei dizer por que tem que ser assim. Espero que, talvez, um dia eu compreenda isto também. Fiquem com Deus, nunca os esquecerei. Vocês não precisam de mim. Precisam continuar descobrindo, pouco a pouco, todos os dias, o verdadeiro e ilimitado filho de Deus que trazem dentro de vocês, o que vocês realmente são.
Começou a ir de um em um se despedindo com um sorriso triste e um abraço, mentalizando um inaudível “Deus te abençoe e esteja sempre com você”.
O que lhe atirara a pedra e lhe ferira a testa na primeira manhã que o viram estava cabisbaixo, foi o último de quem Zé Luiz se despediu. Tentou dizer alguma coisa, a voz não saiu, abraçou Zé Luiz desajeitadamente.
- Me perdoe... – conseguiu enfim murmurar – me perdoe...
Zé Luiz o olhou com bondade.
- Perdoar o que, meu irmão?
- A pedrada que lhe dei...
Um sorriso de compreensão arqueou seus lábios.
- Não foi nada, sei que você não queria realmente fazer aquilo. Sabe, só a árvore que produz frutos é que se vê apedrejada, para deixa-los cair.
À árvore estéril, ninguém dá importância. Nunca seja uma árvore estéril em sua vida, por mais que possam doer as pedradas. Tome cuidado com a sua vida, talvez ela seja o único evangelho que as pessoas leiam. Promete?
Voltou-se então mais uma vez para aquelas pessoas que aprendera a amar. Sorriu. Tristemente. Mas sorriu para cada uma delas, para si próprio.
- Não fiquem tristes, é sempre assim em nossas vidas. Sempre a pessoa que amamos um dia tem que ir embora, então é como sentimos as estrelas do universo se apagarem e ficamos, nos sentimos, iguais a vagalumes na escuridão. Mas, quanto maior é a escuridão, mais forte se vê o brilho de um vagalume. Assim é o amor, não há sofrimento que o apague.
Ergueu uma última vez a bonequinha para que todos a vissem.
- Vocês sabiam que o coração de todas as pessoas foi criado incompleto? Foi criado, mas faltando um pedaço. Sabem onde está a outra parte? No coração de uma outra pessoa. Sempre nós fazemos parte de alguém, e sempre alguém faz parte de nós. É por isso que temos necessidade de afeto, nosso coração sente falta de sua outra parte, da parte que lhe falta.
A pior morte não é quando deixamos de viver, mas quando deixamos de amar.
Retornaram cabisbaixos para suas casas, aquela noite foi de muita tristeza. E oraram, para que Zé Luiz realmente reconsiderasse e não fosse mais embora, nunca fosse embora.
Na manhã seguinte acordaram incrédulos com o sino que batia. Com uma esperança absurda, incomensurável, incontida nos corações, correram apressadamente para a capelinha, esperançosos.
Depararam-se apenas com a menininha a quem Zé Luiz um dia confiara a bonequinha, a menininha que agora chorando tocava inutilmente o sino. Não para que Deus lhe trouxesse uma bonequinha, mas para que outra vez lhe trouxesse aquele homem bom de volta para sua vida, para a vida de todos eles.
Zé Luiz não estava mais lá.
Pobre Esperança...
Deixou-lhes a chuva. E uma saudade infinita.
Pobre Zé Luiz...
VII
Viu-se novamente caminhando por uma estrada que desconhecia, sem saber de onde viera, onde estava, ou para onde ia. Suas lembranças eram efêmeras, temporárias, provisórias, quais os lampejos de seus sonhos que também caíam no esquecimento.
Até parecia que as duas únicas coisas permanentes em sua vida eram o esquecimento e a bonequinha que trazia sempre em seus braços, e que nem mesmo ele se lembrava como viera ter ali. Ou o porquê, dela.
Não tinha importância.
Caminhava lentamente levando o quase nada que possuía, e aquilo também não tinha a menor importância.
Dormia onde tinha sono, comia o que tinha e quando tinha, intuindo talvez que alguém muito superior a ele guardava e guiava seus passos.
E isso também não tinha a menor importância. Vegetava, talvez.
Jamais carregara um bordão, um cajado, uma simples bengala, nunca precisara deles. Talvez, quando muito, para se apoiar, mas nem isso.
Muitos caminhantes, peregrinos, diriam que os levavam para se defender de cachorros ferozes. Ele não tinha, nunca tivera. Como se fosse um São Francisco de Assis, caminhava seguro.
Os cachorros, por mais bravos que fossem, por mais que estivessem defendendo o território, praticamente o ignoravam.
Não, ele não era ignorado. Porque seus irmãozinhos da vida o saudavam com um brilho especial no olhar que fremia até o balouçar das caudas que balançavam com o coração, que o saudavam e lhe transmitiam que ele era bem vindo, lhe diziam que apenas um raio de sol é suficiente para afastar várias sombras.
E que ele, com um afago, um gesto de carinho, se tornava este raio de sol.
Mesmo que ele não se desse conta disso.
Há um ensinamento, uma grande verdade, uma profunda realidade, que diz “se um cão te olhar e se afastar de seu caminho, faça um exame de consciência”.
E ele nunca o precisara fazer, nunca um cão jamais se afastara de seu caminho.
Seu amor pelos animais era expresso em todos os momentos, adquiria um significado e profundidade especiais quando se alimentava. Era quando fazia duas coisas.
Primeiro agradecia a Deus o alimento que estava recebendo.
O que poucos fazem.
Em segundo agradecia ao irmãozinho que havia dado a sua vida para que ele se alimentasse.
O que raríssimos fazem.
Pior: não sentem.
Como bem expressou Albert Schweitzer, “Não me importa saber se um animal pode raciocinar. Sei que é capaz de sofrer e por isso o considero meu próximo”.
Zé Luiz ia além. Simplesmente os reconhecia como seus irmãos de vida.
E, o que era a vida?
Quase todos nós percorremos um longo caminho. Fomos de uma vida para outra, que era praticamente igual à primeira, esquecendo logo de onde viéramos, não nos preocupando para onde íamos, vivendo o momento presente.
Por quantas vidas passamos e ainda temos que passar até chegarmos a ter a primeira intuição de que há na vida algo mais que comer, lutar, sofrer, ou ter uma ilusória posição importante?
Quantos terão a consciência de que escolheremos nossa próxima vida através daquilo que aprendermos nesta? Não aprender nada significa que nossa próxima vida será igual a esta, com as mesmas limitações a vencer.
O truque, talvez, como ensina Fernão Capelo Gaivota: “- Devemos ultrapassar nossas limitações progressiva e pacientemente.”
Ou, com maior profundidade, expandindo o objetivo que também faz parte da vida, ou talvez seja o maior deles: “- Temos que ver o que há de bom em cada um de nós, e ajudar os outros a ver isso neles próprios. O amor é isso.”
Agora não tinha a seu lado, ao lado da estradinha, o rio de lamentações do qual não se lembrava. Os pensamentos eram mais leves, mas nem por isso menos doídos, menos dolorosos.
Contraditoriamente ao que fazia sem se lembrar, às vezes, diante da miséria que encontrava na vida das pessoas, questionava se Deus existia e, se existisse, talvez tivesse se esquecido do mundo, como um autor que esqueceu voluntária e deliberadamente do livro do qual se envergonha.
Mas, por outro lado, reconhecia, até Deus precisa de oportunidades.
De repente, a consciência de um fato o deixou muito perturbado: havia gente naquele mundo de Deus que precisava de seu amparo. Justamente ele, que tão pouco tinha a dividir, a partilhar, talvez só uma palavra de esperança, o que talvez exatamente fosse o que seus irmãos e irmãs da vida mais precisassem no momento.
Parecia-lhe, no entanto, que às vezes sua coragem tinha um pequeno desfalecimento. Às vezes se perguntava: se ele próprio e as pessoas, por estarem paradas a cuidar apenas de si mesmas, não seriam todos um pouco culpados da miséria e da desgraça que anda pelo mundo?
Suas horas de solidão eram as suas horas de perigo.
Por sua mente já haviam desfilado todos os fantasmas. Fantasmas que não deixaram em sua alma nenhum pavor, nenhuma angústia, mas sim uma grande e profunda tristeza.
- Será que os mortos voltam? – indagou-se. Em algum lugar impreciso de sua vida, talvez na infância da qual nada se lembrava, poderia ter ouvido histórias de casas assombradas. Sabia, agora, que existem consciências assombradas. E a sua era uma delas.
Sentia que, na maioria das vezes, a solução está nas coisas simples, nos pequenos gestos, nas palavras simples, e não nos grandes sacrifícios. Talvez tivesse crescido com medo de sonhar. É o medo de sonhar que torna a vida tão triste. O ser humano feliz, talvez, seja aquele que amou e sonhou em sua vida.
Porque sempre queremos o melhor de nós para quem amamos. Quem ama aprende a conhecer o silêncio do outro, sabe que há uma linguagem escondida, pois o silêncio fala a linguagem do coração.
Suas contradições, sem intercalações aparentes, se minimizavam no divisor comum da amargura e do desencanto.
Incongruentemente, pensou que os arcos íris parecem estradas de anjo, e cada anjo que passa por ela deixa uma cor que brilha.
Não sabia, sequer imaginava, que por onde ele passava deixava para todo o sempre uma nova luz na vida das pessoas que tentava ajudar.
Tentara ajudar alguém na vida, em sua vida?
Não o sabia, também não se lembrava.
Talvez isso, exatamente isso, ou somente isso, o elevasse e distinguisse aos olhos de Deus.
(Continua)