"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".
(continuação)
IV
Adentrou no costumeiro sono que começava sem sonhos.
Então, vinham os pesadelos.
De súbito, como sempre acontecia, lampejos de consciência brotavam rapidamente em sua mente como se fossem centelhas de vidas paralelas que não sabia precisar se suas ou de sua imaginação, que logo se esvaíam, incompletas, frustrantes, deixando-o mais confuso ainda.
Via-se caminhando lentamente por uma estradinha de terra indefinida e desconhecida, ao lado do qual escorria também lentamente um rio sem pressa, um rio vivo, pleno de manifestações de dor e desalento.
Gemidos estranhos enchiam seus ouvidos, milhões de vozes infelizes, como se o rio fosse feito de pura tristeza destilada. Um rio de infelicidade, uma torrente de tristeza e infelicidade líquidas.
A água quase parada murmurava baixinho, revelando a terrível verdade que dela permeava lugubremente: “- Vida é desespero. Nada faz sentido, e depois, de repente, você morre...”
Aquele era seu interior mundo real: morte, trevas, frio, sofrimento. Parecia-lhe que todo o resto, tudo que ainda havia de bom e feliz, seria só fruto de sua imaginação, nada mais que isso.
Um dos lampejos estalou e explodiu em suas lembranças que não sabia precisar se eram suas, realmente.
Viu-se partindo (de onde?). Viu-se despedindo (de quem?). Viu-se perdido, quebrado, tentando juntar seus pedaços. Ouvia uma voz indistinta e desconhecida que lhe suplicava:
- Não me faça promessas vazias... você não voltará...
Viu-se sorrindo, tentando tapear, tentando convencer. Mas, como convencer os outros quando não conseguimos nos convencer a nós próprios? Viu-se trapaceando:
- Então, que tal uma promessa cheia?
A voz lhe respondeu, tristemente:
- Não faça promessas que não poderá cumprir... Não sabe quão perigosos podem ser os juramentos? Tudo tem seu preço, depois... e você não poderá pagá-lo.
Voltou a se ver caminhando, sentia-se cansado, muito cansado.
Toda a energia parecia ter sido drenada de seu corpo e substituída por uma espécie de tristeza melancólica, uma saudade profunda e indefinida que não sabia dizer de que. Ou de quem. Seus olhos estavam repletos de um estranho brilho apagado, como se estivesse em dois lugares ao mesmo tempo.
Sabia que precisava, de alguma forma, encarar o fato de que não podia proteger todo mundo que amava, nem a si próprio.
Sabia que precisava aceitar suas limitações, não podia resolver todos os problemas. Nem os seus próprios.
- Ela se foi – dizia a si mesmo. – De qualquer modo, não para sempre. Então, talvez, quem sabe, algum dia...
Quedou, confuso. Quem? Ela, quem? Quem se foi? Não teve resposta.
Outro lampejo inexplicável e inconsequente se manifestou sem qualquer sentido com o desamparo que sentia. Ou teria? Alguém, ou alguma coisa, lhe dizia ternamente, consoladoramente:
- Se coisas mágicas são possíveis, certamente haveria algum jeito de trazê-la de volta.
Rejubilou-se, momentaneamente feliz. Então mergulhou fundo novamente naquele horrendo e odioso poço vazio. Trazer quem, de volta?
Não o sabia, apenas o sentia, o que era pior ainda.
Aquela indefinição, aquele desconhecimento, simplesmente o aniquilava.
Voltou a olhar para o rio onde flutuavam ilusões perdidas, esperanças inatingíveis, sonhos desfeitos, vidas perdidas, vozes lamentosas repletas de morte, trevas e desespero.
A água quase parada voltou a murmurava baixinho, reiterando a terrível verdade que dela permeava e emergia implacavelmente:
“ – Há milhares de anos jogam de tudo aqui... esperanças, sonhos, desejos que jamais se tornaram realidade, tragédias, histórias, desgostos... Eu lhe desejaria sorte, mas isto não existe aqui. Não se iluda: nem esperança.”
Um vulto (de quem?) à distância lhe levantou a mão em um aceno triste e caminhou do outro lado do rio através da noite escura, até desaparecer.
Aquele rio preservava os maus para que eles tivessem que eternamente suportar seus tormentos, os mantinham vivos para que experimentassem mais e mais dor com suas lembranças, com seus remorsos.
Ouvia-se lamentos e gemidos o bastante por toda uma vida.
Aquele rio tinha olhos tristes e vazios, como se estivesse olhando sempre para as profundezas do Inferno. Como, de fato, olhava. E transmitia ainda mais: “- Os mortos vêem o que querem acreditam que estão vendo. Assim como os vivos.”
Então uma possível revelação o atingiu aos poucos. Plena, imutável, cheia de significados mais profundos. Caso fosse verídica. E como precisava ser verdadeira, suplicou.
O reconhecimento de que aquilo não poderia ser um rio tomou sua mente esperançosa e solidária com os que não conhecia e lá estavam flutuando ao sabor daquela desgraça.
Um rio era uma coisa viva, uma fonte de vida, não o que via e ouvia ali. Por um momento orou a Deus, pedindo por mais compreensão. Por um momento aguardou, ansioso. E no instante seguinte viu-se desejando que aquele rio tivesse pelo menos os afluentes da Misericórdia e do Perdão. Talvez, mais abaixo, ou mais acima, também o da Expiação.
Se Deus é Amor – raciocinou – então o Inferno não existe, não tem como existir. Um castigo eterno, por mais que merecido a apropriado, jamais deixaria de ser remido, por mais tempo que isso levasse.
Talvez aquele rio, depois de receber aqueles afluentes, desaguasse então no rio da Redenção.
Sim, seria isso. O Inferno não existiria, talvez o Inferno fosse só esta provisória vida madrasta plena de possibilidades de erros que, ainda assim, levariam à purificação, à evolução espiritual tão necessária.
O Inferno não existiria. Talvez, quando muito, apenas o Purgatório, que talvez fosse apropriada e exatamente o nome daquele rio agora a seu lado.
Talvez o rio – e seu conteúdo infeliz e desgraçado – fosse se purificando ao longo do tempo em que escoava. Talvez, quando enfim afluísse no rio Redenção, Deus lá estaria de braços abertos para enfim receber seus filhos que Lhe chegavam tão tardiamente. Talvez...
Como entender – e pior, aceitar – os incompreensíveis e tortuosos caminhos e desígnios de nosso Deus?
Fez-se uma escuridão momentânea, outro lampejo aconteceu lá adiante, no que seria talvez o final da estrada. Um vulto luminoso e radiante lhe dizia suavemente, transmitindo esperança:
“ – Quando estiverem prontos, todos me encontrarão. Então vou levá-los para um lugar onde todos vocês só verão a luz do sol e as estrelas. E aqueles a quem vocês amam. Vocês, que são muito amados por Mim.”
Por um momento, incongruentemente, lembrou-se então de como era ser feliz de verdade, aquela simples promessa tinha o maravilhoso poder de lhe fazer aquilo.
Uma música inidentificável ecoou em seu espírito, simplesmente tentava evocar suas melhores recordações, fazia com que ele inexplicavelmente sentisse saudades de casa.
Casa? Quando a tivera? Onde? Com quem? Como?
Todos os monstros de sua vida sempre voltavam.
Não houve mais qualquer lampejo naquela noite.
Em seu sono estendeu a mão, abraçou-se à bonequinha buscando apoio, a escuridão fez-se novamente em sua vida.
Mesmo adormecido, uma lágrima correu por seu rosto.
V
Na manhã seguinte o povo de Esperança foi novamente despertado pelo alegre badalar do sino da capelinha. As vidraças continuavam sendo molhadas pela chuva fina.
Tomaram o café às pressas e foram atender ao chamado.
Encontraram um Zé Luiz sorridente, sempre abraçado à sua bonequinha.
- Bom dia, meus irmãos e irmãs – saudou. – Que bom que vieram, temos muito o que fazer, muito trabalho nos espera. Aqui, e em nossas vidas.
Primeiro, vamos dar graças a Deus por este dia bonito e pela chuva que nos traz a vida.
Todos se colocaram de joelhos no chão enlameado, irmanados, mãos dadas, fazendo uma corrente sem início nem fim, representando talvez uma aliança com Deus. Rezaram fervorosamente um Pai Nosso.
Então se levantaram, Zé Luiz continuou a mensagem que aguardavam:
- Pouco, muito pouco, temos a oferecer a nosso Deus. Talvez somente nossa alma e corações impuros, indignos Dele. Meus irmãos e irmãs, ainda se lembram da súplica “Senhor, eu não sou digno que entreis em minha casa, mas dizei uma só palavra e minha alma será salva?”.
Fez uma pausa, suas palavras calaram fundo. Zé Luiz continuou:
- Se não podemos ainda Lhe oferecer nossa alma e coração, vamos lhe oferecer uma casa, pequena que seja, para que Ele possa ser encontrado por todos aqueles que não O sentem na alma e coração, e onde Ele sempre está e estará, por mais que sejamos indignos disso. Vamos reconstruir Sua capelinha. Esperança, e cada um de nós, precisa muito dela.
Fez uma pequena pausa e finalizou:
- Vamos, irmãos e irmãs, quem acredita nos próprios sonhos sempre consegue ir mais longe. Vamos, é preciso sonhar, não podemos deixar de sonhar.
Um grito de júbilo se elevou ao mais alto dos céus, o povo de Esperança estava se reencontrando. Com si próprio e com Deus.
Muitos correram buscar ferramentas, outros em busca de materiais, outros começaram a retirar os destroços que enchiam a capelinha.
As crianças brincavam em volta, felizes e alegres, como se enfim tivesse chegado um lindo verão enfeitado pela primavera que finalmente começava a deixar para trás a tristeza do outono que se precipitava num inverno aparentemente sem volta, sem fim.
Uma menininha se aproximou de Zé Luiz, olhos baixos, como se estivesse envergonhada dele ou do que iria pedir. Zé Luiz se ajoelhou, a olhou com ternura.
- O que foi, querida? – perguntou com suavidade.
A criança hesitou.
- Diga, querida... insistiu ele.
Ela então olhou dolorosamente para o homem ajoelhado defronte dela, seus olhos brilhando numa esperança monstruosa e absurda, inatingível.
Estendeu os bracinhos magros em direção à bonequinha.
- Posso?... Só um pouquinho?... Nunca segurei uma boneca em minha vida...
Zé Luiz se enterneceu. Comovido, hesitou por um momento, oscilando num conflito interior pavoroso. Então sorriu, beijou a bonequinha e a estendeu para a incrédula menininha.
- Tome... segure-a com cuidado... ela é pequenininha, precisa de muito amor e carinho... leve-a para passear... depois a traga de volta... ela é muito preciosa para mim... é tudo o que tenho de meu...
A menininha saiu correndo feliz, a feia bonequinha tão maravilhosamente linda em seus braços e em seu coração, foi cercada por outras. Na sombra de uma árvore que pingava flores douradas com a chuva, começaram a cantar uma música de ninar para a bonequinha.
Zé Luiz continuou ajoelhado na terra enlameada, lágrimas correndo por seu rosto, não era só Deus que chorava através da chuva naquele momento. Zé Luiz chorava enternecido, agonizando numa dor infinita e absurda por todas as menininhas do mundo que nunca tiveram ou teriam uma simples bonequinha em seus braços, em suas vidas miseráveis.
Sua vida vazia então contraditoriamente se encheu de alegria e de uma fugaz, momentânea felicidade. E o reconhecimento se fez também música em seu espírito: só fazemos alguma coisa bem feita quando a fazemos com amor. As pessoas poderiam aprender muito com a doçura das crianças.
- Sou mesmo um sentimental, graças a Deus – recriminou a si próprio.
Sentimental é aquele que se deixa levar pelo coração.
E amar, muitas vezes, nos custa algumas lágrimas.
Voltou-se então para as pessoas que o olhavam embevecidas. Sorriu, passou a manga da camisa esfarrapada nos olhos lacrimejantes, e disse comovido:
- Meus irmãos e irmãs, quando se tem o coração puro, ele cria asas, e é possível voar como um pássaro. Voemos, voemos com corações de criança em direção a nosso Deus, através de nosso trabalho e nossas orações.
Quando, dias depois, a capelinha ficou finalmente pronta, bonita e restaurada, todos se ajoelharam e oraram a reintegrando a Deus. Estava linda.
Juntamente com as vidas de cada um que um dia, um desconhecido, as resgatara também de uma forma mágica e inexplicável.
O sino foi pendurado próximo à porta encimada por uma cruz tosca, mas bela. Cruz que marcava a presença de Deus ali dentro. E na vida de cada morador daquele lugar chamado Esperança.
Flores, muitas flores, foram plantadas defronte e ao redor da capelinha.
Zé Luiz abaixou-se, afagou delicadamente uma delas, mas não a colheu. E então disse mais uma coisa incompreensível que esperava, do fundo do coração, fosse um dia plenamente entendida e sobretudo vivida:
- As flores exalam o perfume que está dentro delas mesmas. Nós devemos ser como as flores, devemos ser reconhecidos pelo perfume de nosso coração.
(Continua)
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http://www.jornalevolucao.com.br/noticias/39141/1/tardes-de-chuva-introito-ao-cap-i
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