"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".
XI
Mas, um dia, Tuniquin foi pego de surpresa pela vida.
Ele, que dissera ao compadre que música alguma além de Guacyra e Rancho Fundo lhe interessam, lhe importavam.
Havia ido ao povoado por um motivo qualquer. Quando passava pela venda, já a caminho de casa, uma viola chorava as mágoas de uma melodia que ele ainda não conhecia:
“Sorri
Quando a dor te torturar
E a saudade atormentar
Os teus dias tristonhos, vazios...”
De imediato parou, como que petrificado irresistivelmente pela letra que lhe falava diretamente ao coração.
“Sorri
Quando tudo terminar
Quando nada mais restar
Do teu sonho encantador”.
Como que hipnotizado, nem sentiu conscientemente que caminhava para mais perto do violeiro, queria mais, precisava de mais.
“Sorri
Quando o sol perder a luz
E sentires uma cruz
Nos teus ombros cansados, doridos”.
Sentiu os olhos marejados por uma dor e uma saudade que nem sabia de que. Ou de quem.
“Sorri
Vai mentindo a tua dor
E ao notar que tu sorris
Todo mundo irá supor
Que és feliz.”
Lembrou-se inexplicavelmente da grande borboleta azul que voluteava aparentemente sem destino certo, como se não soubesse onde ir, como se não soubesse para onde estava indo. Lembrou-se inexplicavelmente, vívido, sentido, o desabafo que dissera então ao cachorrinho:
- Qui nem a minha vida, ‘miguin”, iguarzinho...
Disfarçou as lágrimas que lhe chegavam aos olhos e que teimavam em querer transbordar. Danada de música triste...
Como da outra vez, mas agora com passos trôpegos, aproximou-se, tirou o chapéu, humildemente perguntou baixinho:
- Moço, qui música é’ssa?
O violeiro, moço da cidade, o olhou desinteressado. Mediu-o de cima a baixo, mas se dignou a responder:
- Smile.
Tuniquin quedou aturdido, sem compreender nada.
- U qui? Mail?
O violeiro virou-se para um companheiro e riu.
- Esses caipiras ignorantes... Esse coitado nem sabe Inglês...
O outro, mais generoso, talvez mais sensível, talvez mais humano, talvez mais solidário, disse a Tuniquin:
- É “Sorri”, do jeito que nós falamos. Foi feita por um artista do cinema, Charlie Chaplin.
- Cinema?
O violeiro debochou.
- Não falei? Aposto que nem sabe o que é cinema. Eh, ignorância.
O outro se condoeu.
- Cala a boca, sua besta.
Empunhou o próprio violão, voltou-se para o envergonhado Tuniquin que esperava, retorcendo o chapéu nas mãos, perguntou com delicadeza:
- Gostou? Quer que eu a toque mais uma vez para você?
Tuniquin esqueceu na hora a humilhação que aos poucos se dava conta. Um sorriso feliz arqueou seus lábios. Nada disse, apenas oscilou a cabeça aquiescendo, agradecido. A triste melodia se desenvolveu, Tuniquin achando que o tal de “Chapin” a fizera para ele, retratando o que lhe ia na alma e coração. Que sempre estivera em sua alma e coração. Que sempre estaria em sua alma e coração.
Quando terminou, Tuniquin agradeceu, comovido.
Mas o primeiro, que até então se mantivera quieto, queria ir à forra, como se o pobre miserável diante dele o houvesse ofendido de alguma forma. Estendeu o violão para o objeto de seu escárnio.
- Toque alguma coisa para nós, caipira.
Tuniquin se retraiu ainda mais.
- Adescurpe, num sei tocá violão.
O violeiro tripudiou, olhou em torno, riu debochado.
- Não disse que é um ignorante? Não sabe nada. Gente assim nem devia ter nascido.
O dono da venda sentiu-se fazendo parte da definição do arrogante moço da cidade, tomou as dores. De sob o balcão pegou uma viola caipira e a colocou de encontro ao peito de Toniquin. E então pediu:
- Toqui pr’ele, Tuniquin. Ele num mereci, mas toqui pr’ele.
O sorriso morreu nos lábios do idiota, diante do inesperado. Iria pagar para ver.
Tuniquin, sem ao mesmo dar ao certo o que fazia, posicionou a amada viola. Começou a dedilhar o introito de sua não menos amada Guacyra, cantou-a com o coração, com a alma, com sentimento indescritível, com paixão, com fervor.
De maneira inexplicável e inconcebível, seus dedos inconscientemente, involuntariamente, enriqueciam o acompanhamento num improviso que ele próprio desconhecia ser capaz de fazer. De maneira inexplicável e inconcebível, seus dedos revoluteavam nas cordas exatamente como a borboleta azul revoluteava em sua vida, nos momentos difíceis de sua vida, nos momentos mais difíceis de sua vida.
Não, não era dar o troco ao outro, não era lavar a própria alma e coração, mas por amor ao que estava fazendo e faria até o final de sua vida. Tuniquin era puro e generoso o suficiente para não fazer isso, mesmo sem o saber, mesmo desconhecendo sua verdadeira grandeza de ser humano.
O cretino, incrédulo, olhava surpreso e aturdido para Tuniquin, como se recusasse a crer no que estava vendo e ouvindo.
Aquele caipira insignificante tinha uma técnica natural, intuitiva,que ele jamais teria, teve que reconhecer.
Tuniquin terminou, devolveu a viola para o dono da venda, agradecendo.
Voltou-se para os dois moços da cidade grande,.
- Adescurpe, moço. Inda vô aprendê a tocá violão.
Disse aquilo inocentemente, como se estivesse se desculpando por saber apenas tocar viola caipira, não um violão, jamais saberia que a segunda era muito mais difícil e complexa que o primeiro. Virou-se para o outro, que o tratara com bondade e respeito.
- ‘brigadu, moço, brigado por tê tocado pr’eu. Fiquem com Deus, cum Nosso Sinhô i a Virgem Maria. Vô chegan’o.
Recomeçou a andar lentamente como era seu feitio, tomou o rumo de casa, sem a menor consciência do que fizera.
Lá em cima, a lua que não tinha ali nem um lago “p’ra se oiá”, olhava por Tuniquin, dourava e iluminava sua trilha e sua vida.
Seria uma noite de milagres. Os que fossem suficientemente puros de coração talvez pudessem também ver ‘miguin” caminhando a seu lado, balançando a cauda sem parar enquanto protegia o dono que o tinha sempre em seu coração.
Uma grande borboleta azul revoluteou ao longe e desapareceu nas sombras.
XII
Foi só uma questão de tempo para a tragédia se abater novamente sobre a vida de Tuniquin. E destroçar a de uma família.
Entardecia quando Licínio e o irmão chegaram inesperadamente.
A mulher de Josias nem teve tempo de reagir, quando deu por si estava com um punhal no pescoço, dominada.
- Quidê u Josias? – perguntou Licínio. – Cham’ele cá p’rá fora.
A mulher intuiu o que estava para acontecer, começou a chorar.
- Num ‘tá in casa, Licino, ‘tá p’rá chegá. Pur favô, num fais nada cum ele.
Licínio deu uma bofetada violenta que derrubou a mulher ao chão. Voltou a lhe encostar o punhal na garganta.
- Vamo isperá. Mio qu’ele chegue logo, hoje vai tê... I si ‘ocê gritá, eu ti sangro.
Voltou-se para o irmão, apontou a casa.
- Beto, dá uma zoiada lá dentro. Cum cuidado.
O outro obedeceu a ascendência do irmão mais velho. Examinou a casa, voltou trazendo arrastado pelo braço o pequeno filho do casal, de uns doze anos. Raquítico, despauperado, o garoto que chorava diante da violência aparentava bem menos idade.
- Só tem este – informou.
- Intão vamo entrá i isperá u disgraçado. Adispois vamo atrais du Tuniquin.
Cerca de meia hora depois, perceberam quando Josias estava chegando. Assobiava, como gostava de fazer ao caminhar sozinho, desconhecendo o terror em sua casa.
A mulher se desesperou. Num tranco, até esquecida do filho que estava dominado por Tonho, conseguiu se desvencilhar de Licínio e tentou correr para o marido.
Incrédulo e surpreendido, sem saber ao certo o que acontecia, Josias apenas ouviu o grito de advertência seguido de outro de intensa dor, a mulher acabara de ser apunhalada por Licínio e desabava no chão do terreiro.
Licínio, rindo com sadismo, terminou de sair da casa, seguido por Tonho que dominava o garoto, faca em sua garganta.
- Vem prá cá, Josias, vem p’rá cá... – determinou Licínio, o punhal ensanguentado em sua mão. – ‘ocê é o próximo...
Josias, que começara a correr, viu a mulher caída, olhou para o filho dominado, parou e suplicou:
- Num faiz nada cum u minino, Licino.
O outro foi em sua direção, mostrando o punhal.
- Si aprochegue, disgraçado, hoje é a minha veiz.
Voltou-se para o irmão, ordenando com brutalidade:
- Tonho, sangra u minino.
Um urro de desespero se fez ouvir quando Josias se precipitou de encontro a Tonho, tentando salvar o filho. Surpreendido pelo ato totalmente inesperado do pai alucinado, acovardou-se, deixou o garoto escapar. A criança correu até a mãe que morria no chão do terreiro.
Josias se atracou com Tonho, o punhal de Licínio se cravou fundo em suas costas.
Sentindo-se morrer, Josias só pensou em preservar o pequeno filho da sanha assassina dos dois irmãos. Lembrou-se finalmente da garrucha que estava em sua cinta e que Tuniquin não quisera. Ao contrário do compadre, não tinha escrúpulos em matar defendendo sua família, ainda teve forças e pontaria para descarregar os dois canos da arma.
Os disparos foram certeiros, Licínio e Tonho nunca mais iriam destruir a vida de ninguém.
Josias, enfraquecido, conseguiu dar dois ou três passos em direção do filho que chorava abraçado ao cadáver da mãe. Tombou de joelhos, chamou o pequeno para si, abraçou-o.
Sentiu uma golfada de sangue lhe subir à boca. Então uma escuridão benfazeja o envolveu e Josias deixou mansamente sua vida sofrida para trás.
XIII
A tragédia abalou profundamente a vida de todos no pé de serra. Os vizinhos e amigos se recusavam a crer no que acontecera, mas a luz as velas no velório de Josias e a mulher atestavam a crueza irreversível da maldade humana.
Cabisbaixo, irremediavelmente triste e inconsolável, Tuniquim caminhava acompanhando trôpego o séquito que seguia rumo ao pequeno cemitério. O trajeto é muito curto.
Diante das covas recém abertas, de repente, se faz um profundo silêncio, os poucos presentes descobrem que não tem nada a dizer, as palavras não podem remediar aquela miséria, os caixões desaparecem sob as pazadas de terra que caem soando lugubremente como se fossem o som surdo e cavo de um tambor que marcasse o ritmo de uma melodia fúnebre de despedida.
Os dias que se seguiram foram difíceis.
Tuniquin tentou afogar as mágoas na garrafa de pinga, não conseguiu.
A viola caipira que o amigo lhe dera com tanto gosto jazia pendurada num prego, por muito tempo não se ouviu um único som dela.
Uma tarde Tuniquin se viu compelido por um chamado irresistível, superior às suas forças e vontade. Aproximou-se lentamente da viola que parecia chama-lo irresistivelmente, inapelavelmente. No torpor em que estava mergulhado, acariciou suavemente a recordação do amigo que gritava de saudade em sua alma e coração. Viu-se pegando a viola como se não fosse mais dono da própria vontade, seus dedos se posicionaram nas cordas contra sua vontade, mesmo sem o querer começou a dedilhar e surpreendeu a si próprio a começar a entoar a melodia que o compadre gostava tanto:
“Nu Ranchu Fundo
Bem p’ra lá do fim du mundu
Ond’ a dor i a sodade
Contam coisas da cidade...”
Intuiu o que ia acontecer, mas não conseguiu evitar, estava dominado por alguma coisa superior à sua própria vontade, simplesmente não havia mais como resistir.
“Nu Ranchu Fundo
Di olhá trist’i profundo
Um moreno cant’as máguas
Tend’os óios rasos d’água...”
Sentiu uma vertigem que o atirou num poço profundo e sem volta. Uma música indefinida que desconhece começa a tocar em seu íntimo, lágrimas internas teimam em brotar e ameaçam extravasar em seus olhos que procuram ocultar um desespero esmagador.
Diabo de música triste. Como se fosse possível escolher uma mais alegre, constata irremediavelmente.
A música indefinida bem que se esforça para ser despreocupada e ter a alma leve, como se fosse uma amarga dança pueril em cima de uma sepultura, o que talvez explicasse seu olhar enevoado que começou a se perder ao longe, muito longe, longe demais, olhando para dentro de si mesmo, olhando para um passado que de alguma forma cruel se tornava longínquo demais, mas ao mesmo tempo, tão presente.
De repente viu-se no esforço desesperado e angustiante para contê-la, de repente sentiu as águas represadas ameaçarem romper todas as barreiras, levar por diante a cortina vaporosa e ilusória, as barreiras que também ameaçavam se romper num estrondo incontrolável e se espraiar naquela melodia agora agitada e plena de desespero, o retrato patético não revelado do estado irreversível e irrecuperável de sua alma.
Então Tuniquin desabou.
Sem saber como ainda consegue colocar a viola sobre a mesa. Sem saber como sente as mãos subirem e cobrir os olhos. Sem saber como sente a cabeça se erguer. Então um grito desesperado, angustiado, desumano, escapa de sua garganta e ecoa longe naquele pedacinho de serra.
Lágrimas começam a jorrar de seus olhos como se fossem uma cachoeira incontrolável e perdida em algum cantinho.
Começa a esmurrar a parede de taipa, a pele dos dedos começam a se romper, mas Tuniquin não sente a dor do corpo, apenas a dor da alma que suplanta, encobre, domina.
O sangue começa a jorrar marcando a parede que recebe os murros sem ter como reagir ou consolar, pálidas, efêmeras tentativas de completarem as dos olhos que se mostram tão insuficientes para sua dor.
Tuniquin sente-se enfraquecer, cai de joelhos, aos poucos, muito lentamente, seus murros começam a perder a força, agora as mãos apenas tocam a parede inutilmente infinitas vezes em busca do consolo
que não vem, do consolo que simplesmente não existe.
Olha penosamente para seu interior, para suas lembranças, mas nenhuma delas emerge e lhe fala assim consoladoramente, com aquela ternura longínqua que precisa tanto.
Chorou até não ter mais lágrimas.
Teve a súbita e incompreensível consciência que quando nossos olhos secam chega-se a um lugar além das lágrimas, um espaço desolado e vazio onde nada cresce e as almas abatidas secam por falta de sustento.
O que iria ser de sua vida dali para frente, sem o amigo tão necessário e querido? – perguntou-se.
Não teve resposta.
Lentamente, muito lentamente, com o passar dos dias a vida começou a voltar ao normal.
Como se fosse uma fogueira que se apagasse pouco a pouco, simples aparências, uma trégua na dor que o consumia e aniquilava.
Aparências. Tuniquin sabia que, sob as cinzas, as chamas continuavam a queimar e a destruir sua alma e coração. As lembranças eram amargas demais para se transformarem em doce saudade.
Perdera também o filho de Josias, levado para longe por um parente. Será que voltaria a ver Pedrinho algum dia?
O menino adorava ‘miguin’, lembrou com um sorriso que doeu fundo. E era, por sua vez, adorado pelo animalzinho.
Numa manhã Tuniquin saiu para seu terreiro que agora estava sendo retomado pelo mato, olhou desconsoladamente as três cruzes toscas que embalavam doce e ao mesmo tempo tão amargamente os seus mortos queridos.
Pegou a enxada, capinou o mato que ameaçava sucumbir as cruzes. Então quedou-se esquecido, imóvel, pensando, lembrando, sentindo, sofrendo.
Buscou o facão e a foice de cabo longo, colocou-a sobre o ombro, embrenhou-se na mata mesmo sabendo que não teria que ir tão longe para o que procurava, mas precisava andar, se mover, talvez encontrar no silêncio da mata a paz há muito perdida.
Quase que mecanicamente começou a cortar os galhos que precisava, tirou as folhas com o facão, colocou tudo sobre o ombro e voltou. Pegou então o enxadão, abriu dois buracos no chão duro, pouco depois mais duas cruzes agora diziam que seus mortos queridos eram cinco.
Abateu-se novamente sobre ele uma infinita tristeza.
Foi quando a enorme borboleta azul reapareceu. Passa e repassa outra vez em redor de Toniquin, revoluteando sem parar, aparentemente sem destino certo, como se não soubesse onde ir, como se não soubesse para onde ir, como se quisesse, de alguma forma, dar alegria àquele homem, apesar de tudo. Como da outra vez. Vezes que estavam se tornando tantas...
- Qui nem a minha vida, iguarzinho... – relembra, com o sorriso torto que o amargura ainda mais.
Mas, como da outra vez, a teimosa borboleta azul não se dá por vencida. Continua a voar em círculos em torno de Tuniquin num sobe e desce que não tem fim, fazendo espirais, como se estivesse limpando a alma e o coração daquele irmão humano que sofria.
Aos poucos, muito lentamente, Tuniquin começa a sentir paz, acalma-se, aquela sensação de tristeza agora começa a diminuir inexplicavelmente como num passe de mágica.
Sem saber como ou porquê, viu novamente, por um rápido momento, aquele anjo que o consolara antes em seus sonhos, o anjo que lhe dissera meigamente a simples frase que ele não compreendera, mas aceitara:
- Borboletas, Tuniquin, são almas que nos visitam.
As lembranças amargas, então, se transformaram em doce saudade.
Seu cantinho, que só via em preto e branco, começou a se mostrar em cores outra vez.
XIV
Os anos foram inevitavelmente passando na vida de Tuniquin, a névoa das manhãs e das madrugadas frias começou a tingir seu cabelo de branco.
Não era só a idade, nem sabia ao certo quantos anos tinha, mas a mente começou a falhar.
De repente, pensamentos, lembranças, frases, eram interrompidas. Um confuso Tuniquin se dava conta de que não tinha mais a mínima ideia do que estivera dizendo ou matutando.
Começou também a se tornar esquecido. E a vista começou a ficar curta.
Uma tarde estava varrendo o terreiro quando viu ao longe um rapaz que se aproximava.
Parou de varrer, apertou os olhos tentando focalizar melhor, reconhecer quem estava chegando. Incrédulo, quando se deu conta quem era, largou a vassoura que caiu ao chão e começou a correr em direção à casa, gritando, feliz:
- ‘miguin’, ‘miguin’, vem vê, vem vê, óia só quem ‘tá chegano... se si lembra dele, ‘miguin’?...
Sua voz morreu quando a enormidade do reconhecimento que ‘miguin’ há anos não estava mais ali o atingiu duramente.
Parou diante da porta, seus olhos se encheram de lágrimas. Mais uma vez ainda murmurou baixinho, como se para si próprio, comovido, arrasado:
- Se si lembra, ‘minguin’?...
E então, sozinho, foi receber Pedrinho, o filho de Josias e irmão de sua ‘sabelinha que fora levado embora dali um dia.
XV
Vieram no final da tarde e encontraram Tuniquin sentado na soleira de sua porta olhando tranquilamente e sozinho seu querido por do sol.
As incontáveis borboletas azuis que surgiram eram puras como a luz das estrelas e o brilho que delas se desprendia era leve e diáfano.
Como se fossem beija-flores, ficaram batendo as asas sem saírem do lugar enquanto a maior delas de aproximava de Tuniquin e ficava bailando suave e docemente á sua frente.
Agora de cabelos totalmente brancos, alquebrado e cansado, Tuniquim a fitou embevecido e perguntou por fim:
- Quem são ‘ocês?
A grande borboleta respondeu:
- Somos suas irmãs de vida, Tuniquin, viemos para levar você para mais alto, para leva-lo para sua verdadeira casa.
Tuniquin sorriu.
- Já tô im casa, minh’irmã.
- Não, Tuniquin, ainda não está. Chegou a hora de você ir para sua verdadeira casa.
O entendimento raiou inexplicavelmente nesse momento para Tuniquin. As borboletas azuis que tanto o haviam consolado em sua vida tinham razão, era mais que tempo de ir, finalmente, para casa, sua verdadeira casa.
Tuniquin lançou um último olhar pelo céu, pela mata florida onde os passarinhos cantavam uma despedida (ou seria um até breve?), por seu terreiro, as quatro cruzes dos amores de sua vida, despediu-se com ternura daquele cantinho mágico que encontrara um dia há tanto tempo atrás, e onde – agora o sabia – aprendera tanto.
- Estou pronto – disse, com um profundo suspiro, à grande borboleta azul.
E a alma de Toniquin elevou-se com todas as borboletas azuis que brilhavam como estrelas para desaparecer no dourado de seu último por do sol. Por um curto momento um chuvisco, a mãe natureza chorava por ele.
Tuniquin viu-se conduzido a todos os lugares onde estivera em sua vida, como se a muda despedida nada mais fosse que uma última homenagem e agradecimento àquele seu pedacinho de terra, seu pé de serra, que amara e amava tanto.
Como se fosse uma das borboletas, pairou sobre a bica onde tantas vezes, como se rezasse a Deus, de mãos postas, bebera a água pura e limpa da montanha.
Pairou sobre os recantos que palmilhara na mata, visitou pela última vez a casa dos amigos e vizinhos que agora deixava, volejou sobre Taubaté, São Bento do Sapucay, subiu sem esforço para o topo da Pedra do Baú onde fitou, também pela última vez, o grande Vale do Parahyba onde deslizava mansamente o grande rio prateado.
Como se estivesse esquecido alguma coisa que precisasse redimir, viu-se novamente conduzido à casa de paredes de pilão de taipa que guardara suas mágoas e sua vida por tanto, tanto tempo.
Então um segundo espírito se fez presente. Uma luz azulada como as suas borboletas começou fraquinha e pouco a pouco foi ganhando intensidade até se materializar magicamente em sua viola caipira que, agora sem os dedos do dono que tanto a tocaram, entoava sozinha sua Guacyra, a música de sua vida, que dera também o nome sagrado de seu cantinho no pé da serra.
Viu pela última vez a madeira que entalhara com o nome Guacyra, o pedaço de árvore que iria apodrecer e fora por ele convidado a se eternizar no nome que venerava.
Recordou-se do que dissera ao amiguinho de quatro patas, e sorriu com a lembrança:
- É, ‘miguin’... agora Deus sabe onde Guacyra fica – murmurara, comovido.
As borboletas azuis o conduziram até um largo e profundo precipício intransponível.
Intransponível? Quá...
Porque, de uma maneira inexplicável e maravilhosa, de repente três raios luminosos surgiram do nada. Vermelho, amarelo e azul.
Diante dos olhos de um Tuniquin embevecido e surpreso, os raios, como as borboletas azuis, começaram a revolutear e a se entrelaçar.
Então se desdobraram em mais outras três cores: verde, laranja e violeta. Agora eram seis, magníficas em seu esplendor.
Tornaram a revolutear e a se entrelaçar, desdobrando-se finalmente nas doze cores do arco-íris, continuaram a se movimentar graciosamente em círculos num sobe e desce que não tinha fim, fazendo espirais, alongando-se entre as bordas do precipício, finalmente se estabilizando, constituindo uma fantástica e verdadeira ponte de ligação entre dois mundos.
A revelação atingiu o aturdido Tuniquin aos poucos. Lembrou-se do anjo que viera e vira em seus sonhos (?) e lhe contara que aquilo era a mágica Ponte do Arco-Íris.
As borboletas azuis se imobilizaram diante dele e o reverenciaram.
A maior delas então lhe disse suavemente e com doçura:
- Não podemos passar daqui, Tuniquin, ainda não é a nossa hora. Até o dia de nosso reencontro, nosso irmão. Agora vá, você está sendo esperado do outro lado. Vá, atravesse. Não vamos nos dizer adeus, isso não existe. Vamos nos dizer, simplesmente, até breve.
E então se foram.
Tuniquin viu-se sozinho, mas não solitário.
Olhou uma última vez para trás, para o que deixava para trás, mas que estaria sempre em suas lembranças, em sua alma e eterno e imutável coração de menino.
Começou lentamente a longa travessia.
Lá do outro lado um cachorrinho amarelo que muitas vezes parava de correr e brincar, que muitas vezes se detinha e cravava seu olhar brilhante no horizonte à espera de alguma coisa que trazia imersa em saudade, se imobilizou por um rápido momento, como se incrédulo.
E a alegria do reconhecimento brilhou nos olhos e no balançar festivo de sua cauda quando ‘miguin’ começou a correr velozmente em direção do dono que finalmente vinha a seu encontro, latindo e ganindo sem parar.
Tuniquin ajoelhou-se, abraçou embevecido e comovido o amigo querido que verdadeiramente não morrera, que apenas partira antes dele.
Então viu, incrédulo e maravilhado, que também vinham correndo a seu encontro o porquinho que nunca esquecera, os pintainhos, a galinha carijó, a galinha amarelinha, o sabiá que um dia agora tão longínquo ganhara do compadre Josias e soltara, todos os seus irmãozinhos de vida que o haviam ajudado a subsistir de alguma forma.
Com lágrimas nos olhos tornou a se ajoelhar, agora diante do porquinho que o olhava sem mágoa, inclinou-se e o abraçou, apoiando o rosto contra a cabeça do animalzinho que atraiçoara.
- Mi perdôi – murmurou, voz quase inaudível.
Inconcebivelmente – mas naquele lugar maravilhoso tudo se mostrava possível – o porquinho o olhou com ternura e disse consoladoramente:
- Não, Tuniquin, não tenho nada a lhe perdoar, você não teve culpa, era o meu destino, como tinha que ser. Você é que precisa perdoar a si mesmo.
Tuniquin afagou o bichinho com carinho.
- vô tentá, má ocê tá mi pedindo u’a coisa munto difício, num sei si vô consegui. Má vô tentá, prometo...
Recomeçou a travessia, agora acompanhado por seus irmãozinhos de vida que o seguiam com alegria e júbilo. Tuniquim olhou lá adiante, lá do outro lado, o outro lado que se avizinhava cada vez mais e mais.
Seu coração falhou um batida quando viu lá do outro lado da Ponte do Arco-Íris quem o esperava, todos acenando alegremente, felizes.
Josias, a comadre, a pequena Isabela, e tantos outros que haviam partido antes dele.
Sentiu-se desfalecer quando reconheceu, um pouco mais atrás, Gaidinha, que trazia uma menininha linda pela mão.
Viu-se finalmente envolvido pelo amor e abraço de todos, sentiu-se então, finalmente, em casa, sua verdadeira casa, como lhe dissera a grande borboleta azul.
Continuaram a andar. Lá adiante um brilhante vulto etéreo que irradiava amor infinito o esperava. Como um sonâmbulo, Tuniquin ajoelhou-se diante dele e recebeu sua bênção.
“ – Seja bem vindo, meu filho Tuniquin. É bom ter você de volta, todos sentiram sua falta”.
FIM
Dedicatória
“E Jesus, vendo a multidão, subiu a um monte, e, assentando-se, aproximaram-se dele os seus discípulos. E, os ensinava, dizendo:
Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus;
Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados;
Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra;
Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos;
Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia;
Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus;
Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus;
Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus.”
Dedico esta história a um dos personagens deste livro, João Francisco Albano dos Santos, filho de “seo” Joaquim e filho de São Bento do Sapucaí.
Personagem que teve uma passagem muito curta neste livro, e muito, muito curta, curta demais, em minha vida, apesar de ter se tornado eterna nela.
O caipira maravilhoso que, em sua simplicidade, se tornou meu exemplo de vida e seu eterno aprendiz. Mesmo eu sabendo que por mais que me esforçasse em seguir seus passos, jamais conseguiria ter o merecimento de caminhar lado a lado com ele.
Que procurou me ensinar que o melhor caminho na vida, na minha vida, na vida de cada um de nós, de todos nós, seria seguir os ensinamentos de Jesus Cristo no Sermão da Montanha, no livro de Mateus.
Que me ensinou – mesmo eu não o conseguindo como deveria – a ser como os lírios dos campos que não fiam nem tecem, e nem mesmo Salomão, em sua maior glória, conseguiu se vestiu como um deles.
Aquele homem maravilhoso que, apesar de ser um “dotô”, tinha a simplicidade de se sentar na soleira da porta de uma casinha de pau-a-pique e tomar com infinito prazer um simples café numa canequinha de lata.
Homem e caipira de nascimento e coração, inesquecível, que um dia encontrou, se apaixonou e se casou com minha mãe, mulher especial escolhida e muito amada por ele.
João Francisco dos Santos.
Meu pai.
Agradeço esta vida madrasta que apesar de tudo (ou talvez por isso mesmo) me permitiu crescer como ser humano, a despeito do preço que tive que pagar por isso. Que me permitiu, mas não me ensinou como.
Agradeço a você que leu este meu quinto livro, desejando que algumas passagens tenham realmente tocado seu coração.
Agradeço à escritora Meg Ramos que, sem que eu pedisse autorização, desconhecendo sua valiosa colaboração involuntária, enriqueceu meu trabalho com a profunda frase de Clodovil Hernandes “Borboletas são almas que nos visitam”.
As borboletas azuis que fizeram parte de minha infância em Ubatuba e estão até hoje voando em minhas lembranças e nos momentos difíceis da minha vida.
Agradeço a Deus, “Nosso Sinhô Jesus Cristo”, que me permitiu escrever este livro em menos de uma semana, sem qualquer planejamento quanto a seu desenvolvimento e seu enredo. Como se psicografada, numa forma inconcebivelmente muito especial, as palavras foram fluindo rápida, profundamente, fáceis, como são as muitas saudades em minha vida.
Apesar de ser muito fácil, desgraçadamente fácil, de se escrever com o coração justamente o que nos corrói a alma.
“- Disgracera...”, como diria Tuniquin sorrindo para mim.
F.
[Se este livro tocou seu coração, e quiser recebe-lo gratuitamente (e-book), envie-me seu e-mail].