"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".
IX
Josias, preocupado com o estado de espírito com que Tuniquim o deixara na véspera, logo cedo foi rever o amigo e também se desesperou com a devastação que encontrou. Nem a bica d’água escapara à sanha perversa de quem fizera aquilo.
Apesar dos protestos o arrastou para casa, fez a mulher esquentar uma refeição, alimentou o compadre e o colocou numa cama, Tuniquin mergulhou num pesado sono sem sonhos.
Josias recomendou à mulher que velasse o amigo e saiu, foi de casa em casa relatando o que acontecera.
Os vizinhos foram chegando em pequenos grupos, trazendo o que podiam. Roupas, alimentos, ferramentas, materiais, e sobretudo solidariedade, apoio, vontade de ajudar.
Quando Tuniquin acordou lá para o fim da tarde, a mulher de Josias fez com que ele se alimentasse mais uma vez, a despeito de sua vontade de sair. Empurrou a comida de qualquer jeito, afinal devia obrigação àquela família, e disparou a correr para o seu cantinho.
Lá perto, já cansado principalmente pelo aniquilamento emocional pelo qual passara, Tuniquin escutou o hino sacro e a bateção de martelos e machados.
Emocionou-se quando viu os vizinhos, os seus amigos, reconstruído no que podiam o seu cantinho.
Lágrimas nos olhos que não o envergonhavam, Tuniquin parou no centro do terreiro, todos pararam o que faziam e o cercaram, Tuniquim viu-se imediatamente assolado por infinitos abraços que procuravam transmitir consolo. Pela primeira vez na vida, deixou de se sentir sozinho. Daquele momento em diante compreendeu que poderia ter muitos momentos de solidão, mas jamais estaria sozinho outra vez.
A borboleta azul apareceu, deu algumas voltas e se foi, inconcebivelmente Tuniquin seria capaz de jurar que ela sorria ao desaparecer nas sombras da mata.
Josias lhe entregou um machado, e lhe disse com voz cerimoniosa e comovida:
- Vai, Tuniquin... vai procurá outro tronco prá fazê u nomi di sua Gacyra. Aqui já tem gente dimais... vai fazê o que só ocê pode fazê, ninguém mais...
E ele foi, o mutirão continuou reconstruindo seu cantinho que a maldade humana pensara haver ter conseguido destruir para sempre.
Naquela noite, sem a presença de Tuniquin, todos se reuniram novamente diante da capelinha que havia naquele pedacinho de terra que era deles, de mais ninguém.
Houve pouca conversa, muito pouca fala, todos já estavam inteirados do que acontecera, do que fizeram com Tuniquin, do que queriam fazer com Tuniquin, e do que era preciso fazer.
Reconheceram que o solitário e desprotegido vizinho era apenas o primeiro de uma grande lista interminável, todos estavam ameaçados, todos teriam a mesma sorte do rapaz que chegara por ultimo àquele pé de serra.
Esperaram a confirmação que chegou logo. Haviam mandado alguém ir até a venda ver se assuntava alguma coisa a respeito, encontrou Licínio e o irmão se vangloriando do que haviam feito a mando do coronel.
Riam e debochavam, ameaçando os poucos presentes, achando-se protegidos e intocáveis.
Até a lua conspirou para o sucesso do que era preciso ser feito, escondeu-se atrás de algumas nuvens, só reapareceu quando os dois irmãos se viram dentro de um círculo intransponível do qual não havia como fugir.
Foram surrados sem piedade, sem clemência, com a mesma impiedade com a qual eles próprios haviam procurado dobrar a vontade de Tuniquin e tomar suas terras para um poderoso e covarde mandante.
Só não foram mortos porque Josias não permitiu, sabendo que Tuniquin jamais aceitaria ou iria concordar com este merecido extremo.
Com a força que a labuta na roça desenvolvera em seus braços, Josias soergueu o ensanguentado e quase inconsciente Licínio, deu-lhe uma bofetada forte o suficiente para que o ferido prestasse atenção no que ele dizia.
- ‘manhã cedo ocê e seu irmão vão’bora daqui, sinão vão morrê.
Licínio tentou contemporizar.
- Mas, nossa terra...
Josias foi pronto na resposta irretorquível:
- Deix’ela di presente pro coronel Fagundes, disgraçado. I dê um ricado a ele. Si acontecê mais uma dessa, cum qualqué um di nóis, ele vai levá o dele.
Abandonaram os dois irmãos caídos na estradinha, as cigarras começaram a troar um canto de júbilo de concordância, estava feito o que precisava ser feito.
Tuniquin levou alguns dias para descobrir o que acontecera, mas já estava feito e não se tinha como voltar atrás. Nem se deveria. Ele tinha o consolo de que procurara fazer a coisa certa, mas a vida não deixara.
Sua casa ficara pronta, ainda faltava a tabuleta entalhada com o Guacyra, mas isso era só uma questão de tempo, e só dependia dele.
Até as três cruzes haviam sido refeitas pelo mutirão, repostas nos mesmos lugares em que estiveram, mas agora muitas mudas de flores haviam sido plantadas no terreiro, a vida de Tuniquin tinha que ser embelezada.
Josias, envergonhado e contrafeito, chamou o compadre de lado e lhe entregou alguma coisa envolta em um pano.
- Que qui é isso? – perguntou Tuniquin desconfiado.
Josias procurou disfarçar, começou a enrolar um cigarro de palha imaginário, tentou ser impertinente, sem o conseguir.
- Óia ‘ocê me’mo, ora.
A garrucha de dois canos brilhou sob o sol, Tuniquin a segurou como se segurasse alguma coisa repugnantemente morta e apodrecida.
- Que qui é isso? – repetiu.
- ‘ocê nunca viu uma garrucha, não?
- Não, Josias, quero sabe p’rá que qui é isso...
- Prá que qui serve uma garrucha? P’rá si protegê, ora.
Tuniquin sopesou a situação, não queria ofender nem desagradar o amigo. A decisão foi rápida, era só fazer o que precisava ser feito, isso era uma coisa que o compadre entenderia. Não foi o que fizera? Tuniquin voltou a embrulhar a arma e a colocou com delicadeza em sua mão.
- Mió leva ela di vorta, num priciso disso, ‘brigado.
- Mas, Tuniquin, i si eles vortá? Ou si o coronel mandá otros?
Tuniquin riu, querendo quebrar a tensão da conversa.
- Num si procupe, Josias. Si eles vortá, Deus mi protege. Ou mi leva p’ra junto dele... Num si procupe, num vai acontecê mais nada.
- Certeza?
- Certeza!
- Intão ‘tá certo – capitulou.
Colocou o embrulho novamente no embornal, ficou a olhar para o amigo por alguns momentos. De repente deu-lhe um abraço desajeitado, tomou o rumo de casa. Voltou-se lá de longe, acenou uma despedida e gritou:
- Mais tomi cuidado...
No dia seguinte, no serão, Josias voltou.
Desta vez levava alguma coisa grande embrulhada num cobertor, Tuniquin ficou olhando com curiosidade, o que o compadre iria aprontar desta vez?
- ‘ tarde, Tuniquin – cumprimentou, ressabiado.
- ‘ tarde, Josias. Si aprochegue, meu amigo, se abanque.
Josias sentou-se no banquinho junto à soleira onde Tuniquin se aboletou.
Olhou-o atento por alguns minutos, tentando ver se o amigo estava magoado ou bravo com ele. Aparentemente não. Então sorriu.
- ‘ocê num quis mi’a garrucha, Tuniquin...
- Quá... – respondeu, salientando a palavra com um gesto. – Num preciso dela... ‘ocê sabi qui num dô tiro nem im passarinho...
Josias riu.
- Sei, Tuniquin. Nem tiro... nem istilingada... nem butinada... nem cuspe...
- Para di me arreliá, Josias...
- ‘tá certo. Mas tenho aqui uma coisa qui ‘ocê num vai podê recusá...
Fez suspense, antegozando a reação do amigo. Então desembrulhou uma viola caipira que brilhou ao por do sol e a entregou para o incrédulo amigo.
- Num é uma garrucha... mas dá p’rá matá a solidão... – brincou.
Tuniquin olhou o sonho inconfessado que se tornava uma realidade graças à percepção do compadre. Mas a estendeu de volta. Josias nem se abalou, a viola ficou suspensa entre os dois.
- Num posso aceitá, meu amigo. I eu nim sei tocá... – disse-lhe Tuniquin.
Josias se levantou.
- Num sabe ainda, mais vai sabê. Aminhã eu vorto p’rá t’ensiná. Vô chegando...
E se foi, deixando um maravilhado Tuniquin sonhando acordado, um sorriso bobo completamente feliz retorcendo seus lábios, transbordando de seus olhos e se espraiando por toda a mata que os últimos raios do sol ainda douravam.
Tuniquin era obstinado, mesmo sem saber o que seria isso.
Teve imensas dificuldades para aprender a tocar a viola caipira que ganhara do compadre, mas sua determinação foi maior que tudo.
Um dia quase desistiu, mas Josias também era obstinado. E conhecia o ponto fraco do amigo querido.
- Nun dianta, Josias – queixou-se, largando a viola. – Nunca vô aprendê.
Josias a pegou, tirou um acorde qualquer, fingiu que afinava uma desafinação que não existia. Então usou o golpe baixo.
- Qui pena... qué desistí, disisti, qui pena, fazê u quê?
Olhou atentamente para Tuniquin.
- Sabi pur qui é qui pena, Tuniquin?
- Não...
- Pur qui ‘ocê nunca vai podê tocá isso...
Josias não fez qualquer introdução com a viola. Com voz melodiosa, clara e forte, suavemente começou:
- “Adeus Guacyra, meu pedacinho de terra... “– seus dedos hábeis, enfim, começaram a acompanhar a melodia. E continuou: “- Meu pé de serra, que nem Deus sabe onde está...” – Fez então uma pausa dramática, plena de implicações, cheia de expectativas, olhando zombeteiro para seu aluno.
Tuniquin o encarou, aturdido e indignado.
- Seu cachorro... mi dê minha viola aqui...
E literalmente arrancou o instrumento das mãos do outro.
Devidamente motivado, Tuniquin mostrou ser um aluno dedicado. Transpôs todas as dificuldades que surgiram em seu caminho, em pouco tempo dominava todas as dez cordas da viola caipira.
Cantava e tocava com um sentimento comovido sua Guacyra. Algumas vezes, talvez afetado pelos sentimentos de alguma estrofe, quedava por um momento imóvel e esquecido, seu olhar se perdia longe, muito longe, quando olhava para dentro de si mesmo e se reconhecia na melodia que se afigurava ter sido feita para ele, só para ele.
Uma tarde Josias chegou e ficou algum tempo ao longe ouvindo o amigo tocar, um sorriso que beirava as lágrimas teimando em querer lhe extravasar dos olhos e da alma. Como era bom fazer os outros felizes, meu Deus – pensou, enquanto Tuniquin versejava pura poesia musicada transmutada em caipirez legítimo. O que a tornava ainda mais bela. Ou, talvez, por isso mesmo.
“Nu Ranchu Fundo
Bem p’ra lá du fim du mundu
Ond’a dor i a saudade
Contam coisas da cidade...
Nu Ranchu Fundu
De olhar trist’e profundo
Um moreno canta as "máguas"
Tend’os óios raso d'água...”
Achegou-se, o amigo parou de tocar quando o viu, levantou-se da soleira com um sorriso sincero de boas vindas.
Para disfarçar estar comovido, Josias ralhou com ele:
- “ocê pricisa aprendê tocá otras músicas, Tuniquin, num pode fica só na Guacyra e Ranchu Fundo...
Tuniquin riu, divertido.
- Mas cumpadre... essas duas tocam minh’alma e meu coração, só elas...
Josias o olhou com seriedade.
- Num sei mais o que fazê d’ocê. Já ensinei tudo qui sabia, ‘ocê precisa saí daqui e í prum lugá onde possa aprendê mais...
- Saí du meu cantinho? ‘ocê ‘tá louco, ‘tá?
- I ‘ocê pretendi passá u resto da vida tocando só isso?
- E tem coisa mió, tem? – retorquiu Tuniquin, definitivo.
X
A oportunidade de aprender músicas novas que lhe tocassem também o coração surgiu algumas semanas depois. Josias precisava subir a serra até São Bento do Sapucay, e convidou o amigo para ir junto.
Inexplicavelmente Tuniquin lembrou-se do primeiro momento em que chegara e descobrira seu cantinho, começou a sorrir, sorriso que em pouco se transformou numa verdadeira risada.
- ‘tá rindo du quê, Tuniquin?– perguntou o outro, desconfiado.
- Demorô, mas o papudo mi venceu... – respondeu.
Josias não entendeu nada.
- Qui papudo, Tuniquin? Qui’stória é essa?
Tuniquin então explicou.
- Quando cheguei aqui, esta serra zoio p’rá mim e mi desafiô p’rá qui eu a subisse. Eu zoiei e arrespondi: “-p’rá quê, papudo”. I num é qui o papudo mi venceu?
Foi a vez de Josias sorrir.
- Intão ‘ocê aceita í comigo.
- Ô si aceito, já tamo chegano...
Pensou por um momento, não chegou a uma conclusão e perguntou:
- Josias, será que tem rio grande com’o Parahyba? I San Bento é como Tumbaté?
O outro se divertiu.
- Lá tem u riu Sapucaí-Mirim, piquinino. I acho qui San Bento é minor qui Tumbaté.
Começaram a subida pela estradinha de terra que serpenteava ao longo dos contrafortes da Mantiqueira. O ar começou a ficar ainda mais frio, conforme iam ganhando altitude. Conforme lhe haviam dito, para cada cento e cinquenta metros que se sobe, a temperatura despenca cerca de um grau. Lá em cima Tuniquin e Josias tremiam, pois quase não levaram agasalhos. Não tinham.
O cavalo puxando com dificuldade a charrete morro acima foi se cansando, de tanto em tanto os dois tinham que apear e caminhar a seu lado, para poupá-lo.
Quando divisaram a cidadezinha, Tuniquin olhou em torno, embasbacou-se com o enorme maciço de rocha que se erguia altaneiro e destacado à distância, mais de trezentos metros acima dos campos do município. Coçou a têmpora, pensativo.
- Vamo tê qui i inté lá em riba, cumpadre? – perguntou, desanimado.
Josias riu.
- Não, Tuniquin, só si ‘ocê quisé.
- Num quero não – respondeu. Mas acabou querendo.
Procuraram acomodação para o pernoite, encontraram uma única pensão, estavam famintos e logo se dirigiram para lá.
Adentraram, um garoto estava levando uma surra de vara de marmelo. Perceberam que era coisa de família, resolveram não se intrometer e aguardaram que o corretivo terminasse.
O dono, “seo” Joaquim, os atendeu depois de um curto período. Colocou a vara de marmelo pendurada atrás do portal, em sua feição se mesclavam a severidade e o desencanto, atendeu os hóspedes.
Tuniquin não resistiu. Apontou para os fundos, onde o garoto soluçava.
- Adescurpe, seo moço, que qui foi?
“Seo” Joaquim o olhou, desanimado. Talvez por morarem numa cidade próxima a Itajubá, sua família e os moradores não usavam tanto o “caipirez” para falar, mesmo a despeito da influência mineira.
- Pois é, temos sete filhos. Quando vamos visitar os parentes que moram nos sítios, o Jorge fica tomando conta dos irmãos menores, a criançada estava sempre dormindo quando chegávamos. Hoje descobrimos porque.
Pegou um livro do antigo Vermouth cinzano que estava pela metade e o colocou sobe o balcão, desgostoso. E então arrematou:
- E não é que o irresponsável dava Vermouth para os pequenos beberem?
Tuniquin tentou abafar o riso, não o conseguiu, “seo” Joaquim deixou passar, fez que não o percebera.
- Mas, a que vamos? – perguntou.
Pediram acomodação por uma noite, foram conduzidos a um pequeno quarto. Simples, mas imaculadamente limpo. No banheiro do corredor uma novidade para Tuniquin: um chuveiro. Deslumbrou-se quando o compadre explicou para que servia. E como devia ser usado. Quase tiveram de tirá-lo à força de lá, depois. Além de tudo, água quente!!!
Foram dar uma volta na cidadezinha, aboletaram-se num banco da praça e ficaram olhando o maciço que lembrava uma arca, ou canastra, como também a chamavam na época.
O sol foi embora para se abrigar da friagem da noite que se avizinhava, a temperatura começou a despencar, Tuniquin e Josias correram para a pensão, era hora do jantar. Comida simples, mas muito saborosa. Conheceram o resto da família de “seo” Joaquim: Nhá Júlia e a filharada.
Viram quando um deles, um garoto mais velho que o Jorge, colocou três marmitas em cada braço e foi fazer suas entregas, só depois que voltou é que foi jantar.
Josias recebeu um cutucão por baixo da mesa. Tuniquin, com um gesto de cabeça, perguntava o que era aquilo. Quase não acreditou, deslumbrou-se com a novidade e as facilidades de uma cidade maior, pensou como seria bom receber sempre uma comida quentinha e variada no seu cantinho, não atinou que teria que pagar para isso e não teria como fazê-lo.
O filho da entrega, o retardatário João Francisco, recebeu um prato feito da mãe e começou a comer com apetite.
Esperaram ele terminar, puxaram o inevitável dedo de prosa, João sentou à mesa dos dois, “seo” Joaquim se aproximou, colocou carinhosamente as mãos sobre os ombros do filho, olhos brilhando, embevecido.
- Então já conhecem meu filho mais velho – disse com orgulho. – Este é a nossa esperança, vai ser um “dotô”, ele quer ser engenheiro.
Nem Tuniquin, nem Josias, tinham a menor idéia do que seria isso, mas tiveram vergonha de perguntar, apenas concordaram solenemente com um balançar de cabeça e uma expressão de admiração nos rostos simples.
“Seo” Joaquim afastou-se, foi cuidar dos afazeres, deixou os hóspedes conversando com o garoto, o moço que talvez futuramente pudesse dar melhores condições de vida a toda a sua família.
João perguntou de onde eram, essas coisas. Mas Tuniquin estava era interessado na grande e alta pedra.
- É a Pedra do Baú – explicou João.
E contou a história.
– Tenho dois amigos, um é meu xará e o outro é o Antônio, são chamados de irmãos Cortez. O Antônio é o mais velho, sempre foi obcecado pela Pedra.
A curiosidade de Tuniquim foi maior que a vergonha.
- ‘bicecado? Que qui é isso?
João sorriu, respeitou a ignorância, explicou bondosamente. Tinha cultura, mas sobretudo, tinha um respeito natural pelas pessoas que não a tinham, jamais as julgava inferiores como tantos faziam na vida.
- Cismado, Tuniquin.
Tuniquin deu uma cotovelada discreta no compadre.
- Fica’í falano difício... – murmurou ranzinza. Josias deixou passar.
João Francisco continuou:
- O Antônio sempre teve um sonho, subir até lá em cima, passou anos tentando fazer isso, nunca conseguiu. Têm umas histórias por aqui dizendo que lá em cima uns índios esconderam um tesouro, ele queria saber a todo custo se era verdade. Tentou todo dia, mas não conseguia subir de jeito nenhum. Estava para desistir quando uma noite sonhou que alguém que não conhecia apareceu e lhe disse como fazer. Acordou de madrugada, foi para lá, esperou o dia clarear, começou a subir conforme a visão o ensinara, e chegou lá em cima.
- ‘bicedado me’mo – comentou Tuniquin, não querendo deixar para lá.
João e Josias riram.
- Isso. E nem alpinista ele era – completou João.
Pela segunda vez Tuniquin engasgou.
- ‘pinista?
- É... é o nome daqueles que gostam de subir montanhas.
- Ah...
- Lá é muito alto, agora é mais fácil de subir. Dá para ver até Taubaté lá de cima. Mas agora vocês vão me dar licença, tenho que estudar um pouco, logo irei para o Rio de Janeiro fazer as provas da escola.
Tuniquin nem sabia o que era isso, mas não perguntou.
João Francisco levantou-se, pediu a benção do pai e da mãe, foi para seu quarto. Jorge passou acanhado e envergonhado, não quis conversa, Tuniquim riu baixinho e cutucou o compadre.
- Josias, será qui o “seo” Joaquim vai iscondê a garrafa do tar de vermuti?
- ‘tá quereno prová, sabido?
- É... u’a talagada num ia má...
Josias riu, pediu ao dono da pensão que servisse um cálice da bebida para o amigo. Tuniquim ergueu o copinho, apreciou a cor marrom, virou tudo de uma vez como se fosse sua pinga costumeira. Estalou a língua, por um momento avaliou o gosto que sentia, e então comentou para Josias que tudo acompanhava atentamente.
- Um poco doce... mas é bom...
Irrefletidamente estendeu o cálice vazio, pedindo outro, “seo” Joaquim o atendeu com um sorriso, mas aconselhou:
- Vai devagar que isso é forte.
- Quá...
Depois quis um terceiro, Josias não deixou.
- Num é atoa qui as criança gostou – reconheceu. –Mió qui pinga...
No dia seguinte saíram logo cedo para Josias cumprir seus compromissos. Na hora do almoço Tuniquin não resistiu mais, depois de uma hesitação perguntou a João Francisco se Antônio e o irmão poderiam leva-lo até o topo da Pedra do Baú, João conseguiu.
Um arrependido e esgotado caipira conseguiu chegar lá em cima com os irmãos Cortez que riam dele. Tuniquim, durante toda a escalada, evitou olhar para baixo, tinha medo de tontear e despencar naquele abismo.
Mas a maravilhosa visão que teve lá de cima o fez esquecer seu cansaço e seus medos, nem pensou em como iria ser a descida.
Nas primeiras horas do final da tarde ele se deparou estarrecido com o rio Parahyba que brilhava ao longe, um filete prateado que meandrava mansamente no Vale. Confusamente via-se um ou outro aglomerado de casas e o verdor da mata rala até onde a vista conseguia alcançar antes de se diluir na névoa que começava a se formar ao longe.
Anoitecia quando as luzes das ruas de Taubaté se acenderam, Tuniquin se deslumbrou. Mas era hora de descer, antes que anoitecesse de vez. O inexperiente e incauto caipira retardou a descida, que acabou sendo completada à luz dourada da lua.
Josias, que não quisera ir junto, os esperava ao pé da Pedra. Tuniquin só faltou se ajoelhar na segurança do planalto e dar graças a Deus. Mas fez o Sinal da Cruz, agradecendo a Deus a proteção.
- I intão, cumpadre? – perguntou Josias, com curiosidade indisfarçável.
Tuniquin olhou lá para cima onde a Pedra do Baú se perdia na escuridão, destacando as estrelas que brilhavam magicamente tão longe e, ao mesmo tempo, tão perto.
- Lindeza... m’á nunca mais... – respondeu em sua simplicidade.
- Minino di juízo... – brincou o amigo. – M’á vamo jantá que já si fais tarde...
À noite Tuniquin participou de uma roda de violeiros na pracinha, cantou junto o Rancho Fundo, sua Guacyra, ouviu outras que não conhecia mas pelas quais não se interessou, nada diziam a seu coração e à sua alma, nada falavam de sua vida, a vida que ele vivia e conhecia.
Na manhã seguinte pegaram o caminho de volta. De vez em quando Tuniquin olhava para trás.
Cada vez mais distante, a Pedra do Baú ligava a terra ao céu.
O caipira sentiu seu coração pequenininho, uma tristeza inexplicável e infinita tomou conta de seu coração.
(Continua)