"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".
VI
No povoado quedou-se, maravilhado, diante de dois violeiros, ficou muito tempo escutando músicas que não conhecia, mas que o deslumbravam.
Então, quando uns acordes iniciaram a que achou a mais bela, lágrimas lhe chegaram aos olhos quando reconheceu na letra o cantinho onde vivia:
“Adeus Guacyra, meu pedacinho de terra...
Meu pé de serra, que nem Deus sabe onde está...”
Esperou respeitosamente que os violeiros acabassem. Então tirou o chapéu, aproximou-se humildemente e perguntou baixinho:
- Moço, qui música é’ssa?
O violeiro o olhou com benevolência, mas estranhando que alguém ainda desconhecesse aquela linda melodia.
- Guacyra – respondeu.
- Gacira? – perguntou, hesitante.
- Não, Gua-cy-ra – soletrou.
- Ah, Gua-cy-ra – repetiu. – Que lindeza. E onde fica isso, moço? – perguntou, depois de um momento.
O violeiro sorriu e dedilhou o violão. E respondeu, cantarolando:
- “... nem Deus sabe onde está...”
Seus olhos brilharam, como se ele, só ele, soubesse onde ficava.
- Moço, nem Deus sabe onde Guacyra fica? – perguntou depois de mais um momento pensativo.
O outro riu.
- Nem Deus, meu filho. É tão longe, tão longe, que nem Deus sabe.
Tuniquin coçou a cabeça, como se envergonhado. E o estava. Depois de um instante de indecisão, resolveu-se.
- Moço, podia iscrevê isso p’rá mim?
- Escrever o que? – perguntou o outro, desatento.
- Guacyra, moço.
Pegou um pedaço de papel no bolso, rabiscou a palavra e a entregou ao caipira.
- P’rá não esquecer o nome da música?
Tuniquin riu um riso curto e silencioso, deixou que o outro pensasse o que quisesse, apertando contra o peito aquele pedacinho de papel que se lhe afigurava tão precioso. Não iria dizer ao violeiro o que o nome se tornara em sua alma e seu coração. De repente encontrara enfim o nome que o seu cantinho nunca tivera e esperara tanto tempo para ter.
Agradeceu, afastou-se alguns passos. Sob a luz de um poste olhou aqueles garranchos para ele indecifráveis, era letra cursiva.
Voltou ate os violeiros, que haviam iniciado outra música. Aguardou pacientemente que terminassem, então, novamente com o chapéu de encontro ao peito, colocou-se outra vez diante do músico que tivera paciência com ele, o escutara e o atendera.
- Moço...
O outro o olhou novamente com bondade.
- Que foi, caipira, quer saber o nome desta também?
- Não, moço, adescurpe, mas é qui num sei lê o que o sinhô iscreveu. Será qui pudia iscrevê como naquela praca ali? – E a apontou.
O violeiro a olhou por uns momentos, então a compreensão se fez e ele riu outra vez.
- Ah, em letras de forma... me dê o papel.
Refez pacientemente o nome que encantara Tuniquin e o devolveu.
- Moço... adescurpe, mas qui letra é essa?
Olhou a letra que lhe era apontada.
- É uma letra chamada ípsilon. É diferente de escrever, mas é igual ao nosso “i”.
Um sorriso feliz abriu-se nos lábios do caipira.
- Assim é mais bonito... – reconheceu. – ‘brigado.
Levando o papel de encontro ao peito, feliz, começou a andar lentamente, desviando-se do pessoal. Procurou pelo menos assobiar a música que tanto o encantara, não o conseguiu, pensou em voltar e pedir que a cantassem outra vez, não teve coragem.
Num cantinho escuro percebeu que não recolocara o palheiro na cabeça. Colocou o chapéu, dobrou o papel e o colocou no bolso da camisa, já antevendo o que iria fazer.
Tuniquin era quase um iletrado, mas era indiscutivelmente um entalhador de primeira.
Deixou a cidade para trás, caminhando lentamente pela estradinha de terra sob o luz fraca da lua nova. Ia para seu cantinho perdido lá no pé da serra, mas que agora tinha um nome lindo, lindo, o nome que esperara por toda uma vida: Guacyra.
Lá longe, onde a estradinha fazia uma curva no caminho, sentou-se na guarda da ponte do pequeno rio que antecedia a cidade ao ouvir iniciarem outra vez a música que o encantara tanto. Desta vez não a esqueceria jamais, lamentou não saber tocar um violão, um cavaquinho, qualquer coisa que acompanhasse aquela melodia que passara a significar tanto.
Deixou de repente de se sentir sozinho, lembrou-se do sonho que tivera no qual Deus mandara um anjo para o consolar.
Estalou os dedos, como se incentivasse o cão que só ele via. Então, com um sorriso feliz, convidou:
- Vamo’ chegan’o, ‘miguin’.
E foram em frente, ele assobiando Guacyra baixinho.
Quem o visse ao longe poderia jurar e testemunhar que lá seguiam caminhando um homem e seu cão.
No outro dia, logo cedo, embrenhou-se na mata à procura de um tronco caído que vira há tempos. Na manhã fria, um pouco enevoada, encontrou logo o que buscava.
Encontrou, também, uma arapuca armada, que ali fora deixada para pegar algum pássaro ou pequeno animal descuidado. Olhou cautelosamente em torno por alguns momentos, pôs-se a escutar, nada ouviu. Ergueu então o pé e esmigalhou a armadilha, em algum lugar Mãe Gaya, nossa Mãe Terra, sorriu e aprovou o que ele fizera.
Então, trauteando com suavidade sua música preferida, começou a embalá-la com o som cavo do machado que cortava o tronco no tamanho necessário, depois dividiu-o em dois segundo o comprimento, madeira de lei leve e macia para o que pretendia esculpir, carregou-o com alguma dificuldade até seu terreiro.
Na sombra do arvoredo tirou o chapéu de palha, foi até a bica onde lavou o rosto na água quase gelada. Depois bebeu demoradamente, mãos em postas com se estivesse orando, como se estivesse recebendo em solene comunhão com sua vida aquela água abençoada e sagrada.
Com passos lentos aproximou-se da sepultura de ‘miguin’. Acariciou a cruz como se fosse a cabeça de seu amiguinho, lá do outro lado da vida, lá do outro lado da Ponte do Arco Iris, ‘miguin’ balançou a cauda em contentamento.
Deixou a mão ficar por um longo tempo sobre a cruz.
Pensando. Lembrando. Por um instante, um rápido instante, o dia ensolarado de Tuniquin pareceu se tornar preto e branco. Sentia falta do amiguinho, como sentira e sentia também do porquinho que a vida o fizera atraiçoar, nunca se perdoaria por aquilo.
Em algumas noites o luar formava um caminho sobre a mata escura, ligando as árvores ao céu estrelado, como se Tuniquin pudesse caminhar sobre ele. Aonde o levaria? Aonde quisesse, era o que gostava de pensar. Aonde iria? Não sabia. Mas, fosse onde fosse, gostaria que ‘miguin’ estivesse com ele.
Chegou por um tempo a pensar em arranjar outro cachorro, mas desistiu diante da consciência indiscutível de que não poderia simplesmente substituir um amigo tão especial por outro, amigo que tantas vezes passara fome a seu lado, sem nunca protestar, resignado, como se soubesse de alguma forma que aquela miséria nunca teria um fim.
Como também nunca pensara em tentar achar uma outra Gaidinha. Quá... Não existia mesmo... Nem foi atrás.
Porque, acima de tudo, tinha também a consciência de sua pobreza, nada tinha a oferecer a alguma moça que inconcebivelmente se engraçasse com ele.
- É, ‘miguin’... disgracera...
Olhou em torno, pensativo, acompanhando distraidamente uma grande borboleta azul que voluteava aparentemente sem destino certo, como se não soubesse onde ir, como se não soubesse para onde estava indo.
- Qui nem a minha vida, ‘miguin”, iguarzinho... – murmurou diante do reconhecimento, com um sorriso torto que o amargurou por alguns momentos.
Sentiu a brisa fresca no rosto, como se fosse o beijo tão aguardado de alguém que o amasse.
Com um estremecimento, foi arrancado dos devaneios que haviam tomado conta dele por algum tempo. Então voltou-se mais uma vez para a cruz que simbolizava seu amiguinho vivo e confidenciou:
- É, ‘miguin’... tô ficano descuidado... ‘cê mi’ntende, num é mesmo? Mas, vamo trabaiá...
Voltou-se para o tronco, avaliando-o por alguns momentos.
Entrou na casa, abriu com cuidado o embornal, procurou, encontrou e pegou o papel dobrado onde o violeiro havia escrito Guacyra, olhou embevecido aquelas letras que em breve se transmutariam para a placa que iria entalhar e que já estava quase ponta em sua mente.
Pegou um martelinho, um formão, foi novamente até o tronco que trouxera da mata. Um pedaço de tronco que apodrecia e que fora por ele convidado a se perpetuar para todo o sempre.
Tuniquim comparou o escrito com o tronco. Entrou novamente na casa, foi até o fogão, pegou um pedaço de lenha que se transformara em carvão. E então, com cuidado e esmero, começou a passar para o tronco o que estava no papel, transportando para o novo substrato aquelas letras que em conjunto tinham um significado tão amplo, tão profundo, um significado para ser entendido e lido com a alma e o coração. Senão seria simplesmente um nome, nada mais que isso.
O trabalho tomou alguns dias, cortes delicados na madeira entremeados com as conversas entre Tuniquin e ‘miguin’. Não se limitou a entalhar as letras, fez um delicado e apropriado contorno de flores ramadas que salientavam o nome e o dignificavam.
Arrastou então a peça pronta para o começo do platô onde edificara seu cantinho, junto à escadinha escavada na terra que lhe dava acesso. Sempre acompanhado por ‘miguin’, Tuniquim desceu forçando-se a não olhar para trás. Só bem lá adiante se voltou e se deslumbrou com seu cantinho maravilhoso que se espraiava interminavelmente atrás da placa com seu nome mágico. Uma lágrima turvou seus olhos, correu por sua face feliz.
- É, ‘miguin’... agora Deus sabe onde Guacyra fica – murmurou, comovido.
VII
Foi num final de tarde que Licínio e o irmão, inesperadamente, bateram palmas em seu terreiro.
Tuniquin foi atender, bloqueou a porta quando viu quem era, a lembrança do porquinho ainda sangrava em seu coração.
- Que qui é? – perguntou, sem nem responder ao boa-tarde dos irmãos, que se entreolharam.
- Num cunvida os amigos p’rá entrá, Tuniquin?
Tuniquin os olhou com frieza.
- Quem é amigo eu cunvido... que qui é?
Os irmãos se entreolharam outra vez, não iria ser uma conversa fácil.
Licínio se decidiu.
- Siquinte... O Coronel Fagundes mandô dizê que esta terra é dele, qui é procê saí daqui. Mas como ele é bom di coração, qué pagá ‘ocê.
Tuniquin sentiu um baque no coração, mas conseguiu manter a calma.
Deu dois passos para fora, olhou seu terreiro, para a casa, colocou a mão sobre a cruz onde repousava seu amigo ‘miguin’. Buscou as outras cruzes, onde descansavam a lembrança de Gaidinha e Isabelinha.
Então pegou a foice que estava encostada na parede, empunhou-a como se fosse roçar alguma coisa, voltou-se para os dois e disse calmamente:
- Mió í imbora e num voltá nunca mais. Isso aqui é meo e num ‘tá a venda, nunca vai ‘tá.
Lembrou-se da tarde do porquinho quando o expulsaram, doeu outra vez.
- Iscafede – completou.
Os dois perceberam a disposição de Tuniquin usar a foice, deitaram-lhe um olhar maldoso, homicida.
- Dispois nóis conversa, Tuniquin, dispois nóis conversa...– ameaçou Licínio. E foram embora, acompanhados por um olhar vigilante e desconfiado.
Então, só então, sentiu a tremedeira e o medo. Tuniquin, passos trôpegos, foi até a soleira da porta, encostou a foice na parede e se sentou. Fitou demoradamente a primeira cruz.
- ‘cê viu só, ‘miguin’, qui disparate? E num tão quereno nossa terra? Ah, mas num vão tê não... toma conta d’aqui p’ra nóis, ‘miguin’...
Aproveitou as últimas luzes do dia que se findava, foi à casa do compadre Josias. Bateu palmas, foi convidado para entrar, lhe colocaram nas mãos uma canequinha de café que lá ficou esquecida.
- Que qui foi, cumpadre? – perguntou Josias incomodado pelo silêncio do amigo pensativo. – Parece inté qui viu arguma ‘ssombração...
Como se enfim despertasse de um sono, Tuniquin caiu em si.
- Pois é... até mi pareceu me’mo. E num tão quereno tirá minha terra, Josias?
O outro se sobressaltou.
- Como?...
- Sabe os marvados do Licino e do irmão? Pois foram lá im casa dizê qui o coronel Fagundes disse qui as minha terra é dele e qui é p’r’eu saí di lá.
- Mas eles num pode fazê isso, Tuniquin, a terra é sua... – disse o indignado amigo.
- I mi ameaçaro...
- Eles também num pode fazê isso, Tuniquin. Sabe, mió ‘ocê í’ amanhã cedo no povoado i fala com seo Dotô. Si precisá, eu vô contigo.
- ‘gradeço, Josias. – Deparou-se enfim com a canequinha esquecida em sua mão, voltou-se para a mulher do amigo. – ‘discurpe, comadre, eu m’isqueci do café.
E o emborcou, frio mesmo. Conversaram um pouco sobre outros assuntos, combinaram que Tuniquin ali passaria no dia seguinte para irem juntos ao povoado falar com o Delegado.
Na manhã fria andaram algumas léguas, já chegaram com o sol brilhando forte no povoado. Dirigiram-se à delegacia, uma casinha simples onde um conhecido deles varria o terreiro.
- ‘dia, Tonho, queremo fala com seu Dotô.
O outro interrompeu o que fazia, olhou-os e riu.
- ‘dia, Josias. ‘dia, Tuniquin, perdero a viagem, seu Dotô, agora, só nu mês qui vem.
- É qui nóis tem um causo urgente, Tonho.
- Só nu outro mês – repetiu. – Si for grave, vão lá em Tumbaté.
- Donde? – perguntou Tuniquin, que sequer ouvira falar da cidade.
- Tumbaté, Tuniquin, Tumbaté. Josias sabe ond’é. Aqui num tem mais jeito... – e voltou a varrer o terreiro da delegacia.
- ‘brigado, Tonho. Inté...
- Inté – despediu-se o outro.
- Vida marvada... – murmurou Tuniquin, para si mesmo.
Começaram a caminhar lentamente, Josias arrastou o amigo para a venda, pediu duas pingas, emborcaram-nas e tomaram o rumo de casa.
- I agora, cumpadre?
- Agora, Tuniquin, é deixa como tá, esperá seu Dotô chega, ou í p’ra Tumbaté.
Tuniquin ficou pensativo. A despeito da gravidade de seu problema, estava dominado pela curiosidade de conhecer uma cidade maior.
- Tumbaté é muito longe, Josias? – perguntou finalmente, vencido.
O outro pensou.
- Num sei dereito, Tuniquin, acho qui umas sete légua inté lá.
Tuniquin ficou avaliando.
- Muito longe... vai leva u dia todo p’ra í e vortá a pé...
Josias riu.
- Pois é... si ‘ocê quisé í memo, vamo di charrete.
Tuniquin se sentiu comovido. Disfarçou o nó na garganta e perguntou para o amigo:
- ‘ocê faria isso pur mim, Josias?
Sem parar de andar Josias colocou a mão em seu ombro, com a mão livre deu-lhe um piparote com afeto no chapéu de palha, derrubando a aba sobre seus olhos.
- I amigo não é p’r’estas coisas, Tuniquin?
Olhou para o céu.
- ‘tô chegano, Tuniquin, ‘tá vino um chuvisco aí.
Tuniquin sorriu com doçura.
- Num é chuvisco, cumpadre, é a mãe natureza chorando p’rá nóis.
VIII
Na madrugada seguinte, antes mesmo que o galo que não tinha cantasse, Tuniquin já estava de pé, se preparando para a viagem. Deu um pouco de milho para a galinha carijó e a branquinha, suas poedeiras. A carijó ainda não voltara a botar, havia chocado uma ninhada e agora sete pintainhos já começavam a ciscar em volta dela. Logo teria mais ovos para ajudar em sua subsistência.
Tuniquin continuava incapaz de matar uma simples galinha que fosse. Se dependesse dele fazer isso ou morrer de fome, com certeza a galinha só morreria depois. Até então, morriam aposentadas, de velhice, ciscando sem pressa e sem qualquer compromisso no terreiro em volta da casa.
Eventuais frangos que nascessem eram vendidos. Apesar de procurar não de afeiçoar à sua criação, Tuniquin dava um nome a cada um. E até os frangos vendia ou trocava com uma ponta de arrependimento, nunca fora capaz de esquecer o seu porquinho.
Encostou a porta, prendendo-a com uma cordinha num prego que lhe servia de fechadura, caminhou alguns passos, olhou para trás, para a cruzes de Gaidinha e Isabelinha.
Com um suspiro colheu flores e retornou até elas, depondo-as junto às suas lembranças, recriminando-se por estar esquecendo cada vez mais sua mortas tão queridas.
- Procê, Gaidinha. E procê, ‘sabelinha – disse com ternura. – Ficam cum Deus.
Dirigiu-se então para a outra cruz, afagou-a como se estivesse fazendo o costumeiro carinho na cabeça do amiguinho, e lhe disse também com carinho e saudade, muita saudade:
- ‘miguin’, adescurpe, ocê num pode í junto, toma conta daqui p’rá nóis. Eu vorto nu fim da tarde...
Caminhou lentamente como era seu feito pela trilha que levava à casa do compadre, controlando um arrepio de frio quando adentrou no frescor da mata fechada.
Andava sem pressa, sentindo o aroma das flores e ouvindo os passarinhos que saudavam um novo dia, o suave murmúrio do riacho ao seu lado.
Josias já o esperava com a charrete pronta, recebeu-o com alegria. Deu-lhe um pouco de café e logo estavam a caminho de Taubaté.
Na estradinha esburacada Tuniquin sonhava de olhos abertos, procurando antecipar o que veria na cidade grande, a primeira a que ia.
Taubaté ainda não era tão grande assim, mas diante do pequeno povoado que ele conhecia...
Atravessaram o Vale do Parahyba que se estendia dos contrafortes da serra da Mantiqueira até os da Serra do Mar, Tuniquin também não a conhecia.
Deslumbrou-se quando chegaram ao rio Parahyba e tiveram de deixar a charrete e atravessar de barco, ainda não havia ponte.
Olhou incrédulo o enorme rio que meandrava sem pressa, quase parado.
- Meu Deus... – murmurou, fazendo o sinal da cruz. - Josias... qui riu grande...
Atravessou o rio agarrado à borda do barco, com medo que ele virasse, Josias sorria disfarçadamente às suas costas, para que o amigo não percebesse e se sentisse diminuído. O barqueiro debochou:
- Cum medo, caipira?
Tuniquin nem respondeu, na outra margem, enfim, suspirou aliviado quando desembarcou e se viu finalmente com os pés na terra.
Um pescador passou carregando com dificuldade três enormes peixes pendurado com cipó no remo, o queixo de Tuniquin caiu quando ele inevitavelmente se lembrou dos lambarizinhos que pescava no rio perto de seu cantinho.
Sua curiosidade foi maior que a vergonha, correu até ele e pediu:
- Moço, deix’eu vê esses peixe?...
O pescador já precisava de um descanso, depôs os peixes no chão, para alegria de Tuniquin, que com reverência alisou as escamas douradas de um deles.
- Qui lambarizão... – deixou escapar, em sua ignorância.
O pescador teve que rir.
- Oh, caipira... num é um lambarizão, é um dorado.
Tuniquim apontou outro.
- I esse carijó?
- É um surubim-do-parahyba. E ess’outro é uma piabanha.
- São muito grande...
- Mas tem maiores... agora, tenho que ir imbora, mi ajude a levantá o remo qui tá pisado.
Tuniquin ajudou o pescador, olhando os peixes com inveja sadia, agradeceu e o pescador se foi, curvado sob o peso de seus pescados.
- Cruz credo, Josias... nunca pensei qui ‘xistisse peixe grande assim...
O compadre nada disse, limitou-se a concordar com a cabeça.
Se ambos soubessem que existiam peixes maiores ainda no chamado mar de Ubatuba, que ambos desconheciam...
Recomeçaram a caminhar, Tunquin cada vez mais deslumbrado com o que via, até esquecido do motivo principal que os levara até Taubaté.
Deslumbrou-se com as palmeiras imperiais da rua principal, nunca jamais havia visto árvores tão altas, sequer imaginado que existissem, tão diferentes das palmeirinhas de palmito que às vezes encontrava nas matas de seu cantinho. E com tantas, tantas casas pintadas de branco, construídas lado a lado, parede-e-meia, como se já começasse a faltar espaço no mundo.
Continuaram a andar, Tuniquin sem saber ao certo para onde olhar, o que olhar primeiro, todo era para ele novidade. Começou a achar que era uma cidade grande demais, sem saber que já existia um tal de São Paulo em franco processo de crescimento e desumanização.
Olhava embevecido as inúmeras carroças e charretes com rodas de aros de ferro que saltitavam e produziam um barulho ritmado no calçamento de paralelepípedos. Olhava as pessoas desconhecidas que passavam apressadas, mas que o cumprimentavam educadamente.
Passaram defronte ao mercadão, Tuniquin quis conhece-lo, cada vez mais surpreso. Maravilhou-se com a diversidade e quantidade de alimentos com que se deparou.
Pela primeira vez lamentou não ter dinheiro, poder comprar tudo o que quisesse, tudo o que precisasse. Então se lembrou que não era a primeira vez, lembrou-se de Gaidinha e da companheira que jamais teria por não ter dinheiro, por não ter como sustenta-la como devia ser.
E seu maravilhamento acabou.
Uma sombra de tristeza e resignação toldava sua voz quando se voltou para o amigo.
- Mio í logo fala com seu Dotô, Josias.
Perguntaram onde era a delegacia, logo pediam para falar com seu Dotô.
O homem os recebeu friamente, ouviu com impaciência o relato de Tuniquin, interrompeu com brutalidade o caipira pobre e sem amigos influentes.
- Coronel Fagundes, é? Pois se a terra não é sua, tem mais é que sair de lá. Tem escritura pública lavrada em cartório? – perguntou.
Chapéu nas mãos, com os olhos baixos, Tuniquin buscou socorro no amigo que estava apalermado e também temeroso a seu lado. Que diabos seria aquela coisa de escritura pública lavrada em cartório? Nenhum dos dois sabia.
O insensível delegado encerrou o atendimento:
- Se tiver escritura, traga ela aqui. Se não tiver, desocupe as terras. E vão saindo que tenho mais o que fazer.
Tuniquin e Josias saíram prontamente, ansiando de se verem longe daquela besta humana, mesmo que o problema não tivesse sido resolvido.
- Disgracera... – murmurou para si mesmo. – Pobre nem devia nascê... Vida marvada...
Josias, no entanto, o ouviu, colocou o braço sobre os ombros do compadre e procurou consolá-lo.
- Liga não, Tuniquin, cunfia im Deus.
Agora, era contar com a sorte.
Voltaram lentamente até a beira do rio, Tuniquin sem se dar conta de mais nada, nada mais queria ver, “Tumbaté” perdera toda a graça, todo o encanto.
Atravessaram o rio Parahyba no mesmo barco, por um instante Tuniquin pensou como seria bom se o barco virasse e ele morresse, sua vida não tinha qualquer encanto mesmo.
Sob a sombra de uma árvore comeram uma refeição rápida que haviam trazido do pé do serra onde moravam, Tuniquin desconsolado olhando as águas preguiçosas do rio que se recusara a leva-lo para o outro lado da vida.
Fizeram a longa viagem de volta em silêncio, cada qual perdido nos próprios pensamentos.
Ajudou o compadre desencilhar o cavalo e liberar a charrete. Então agradeceu, foi para sua casa, taciturno e ainda mais desanimado.
Olhos baixos, olhando sem ver as pontas dos pés nas botinas cambaias, Tuniquin subiu os degrauzinhos do outeiro e então quedou estarrecido e incrédulo diante do cenário de destruição com que se deparou.
Mão erguida como se quisesse segurar alguma coisa que lhe escapava, olhos esbugalhados, chegou a correr dois ou três passos, mas quedou vencido diante da inutilidade disso. Então tombou ao solo, colocou a cabeça entre as mãos e chorou inconsolavelmente como se fosse uma criança.
Depois, muito depois, quando conseguiu atravessar o vale onde as almas desamparadas secam e morrem por falta de sustento, quando suas lágrimas aparentemente acabaram, levantou-se e foi ver a destruição de perto.
Sua casa praticamente não existia mais, apenas as paredes de taipa ainda estavam de pé, mas danificadas quando arrancaram a porta, a única janela e o telhado.
Seus poucos pertences estavam queimados e parcialmente consumidos por chamas que ainda queimavam em sua alma e coração.
Encontrou suas duas galinhas mortas, as cabeças decepadas a facão. Os pintainhos também mortos, mas pisoteados, doeu tanto que Toniquim pensou que iria enlouquecer.
Um urro desumano de total desespero escapou de sua garganta quando se deu conta que haviam até arrancado e destroçado suas três cruzes, profanando as lembranças de ‘miguin’, Gaidinha e Isabelinha.
Sua placa entalhada que engalanava o portal de seu cantinho estava destroçada a machadadas, irrecuperável.
Pensara não ter mais lágrimas, enganara-se outra vez, deu-se conta disso quando caiu de joelhos no chão e recomeçou a soluçar e a chorar mais uma vez incontrolavelmente.
Abateu-se sobre ele uma infinita tristeza, como daquelas sem causa. Mas aquela tinha. Foi quando uma enorme borboleta azul apareceu, passa e repassa em redor de Toniquin, revoluteando sem parar, aparentemente sem destino certo, como se não soubesse onde ir, como se não soubesse para onde ir, como se quisesse, de alguma forma, dar alegria àquele homem, apesar de tudo.
- Qui nem a minha vida, iguarzinho... – relembrou, com um sorriso torto que o amargurou ainda mais.
Mas a teimosa borboleta azul não se deu por vencida. Continua a voar em círculos em torno de Tuniquin num sobe e desce que não tinha fim, fazendo espirais, como se ela estivesse limpando a alma e o coração daquele irmão humano que sofria.
Inconcebivelmente, aos poucos, muito lentamente, Tuniquin começou a sentir paz, acalmou-se, aquela sensação de tristeza havia desaparecido inexplicavelmente como num passe de mágica. Sem saber como ou porquê, viu por um rápido momento aquele anjo que o consolara em seus sonhos, e o anjo lhe disse meigamente uma simples frase que ele não compreendeu, mas aceitou:
- Borboletas, Tuniquin, são almas que nos visitam.
Já escurecera quando enfim se levantou e foi para a caverna passar uma noite insone.
A lua, “que não tinha naquele pé de serra nem um lago prá se oiá”, olhava desconsoladamente aquele cenário devastado pela maldade humana, os sonhos destruídos de Tuniquin.
Que, no entanto, apesar de tudo, no dia seguinte começaria a reconstruir seu cantinho.
(Continua)