Rodolpho Motta Lima (Direto da Redação)
Vai parecer provocação aos paulistanos, tendo em vista a polêmica que o último texto do Mair provocou. Mas juro que já tinha escrito esta coluna... Além disso, acho estéril e falaciosa a desqualificação das mazelas próprias com a contraposição das alheias...
A cidade do Rio de Janeiro foi e será sempre maravilhosa. Carioca “da gema” ou não, quem quer que tenha absorvido realmente o espírito da cidade, sabe que, entre os “encantos mil” que a notabilizaram, em meio às belezas naturais que lhe deram prestígio planetário e a contagiante alegria que, apesar dos notórios pesares, nunca deixou de constituir-lhe a marca, o Rio sempre impôs sua presença no cenário nacional como centro artístico-cultural de grande efervescência.
Essas palavras vêm a propósito de noticiário envolvendo debates – no âmbito jurídico e fora dele – sobre o destino da casa de shows “Canecão” – fechada em fins de 2010 por decisão judicial que determinou sua retomada pelos verdadeiros donos, no caso a UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), depois de muito tempo de pendência legal. Nos últimos anos, ao que consta, o empresário que explorava a casa de espetáculos sequer pagava o seu aluguel.
Não se discute, pois, o legítimo direito de reintegração de posse do proprietário do imóvel, principalmente sendo um ente público voltado para a Educação. O debate está centrado, agora, no que se pretende fazer daquele espaço de tão grande significado no panorama cultural recente da cidade.
Nunca é demais recordar – com assumido tom saudosista – que no Canecão se produziram muitos momentos mágicos na história do cancioneiro popular do país. Inaugurado em 1967, começou a se fazer mais importante no meio artístico a partir de show com a cantora Maysa, em 1969 . E eu ficaria aqui desfilando títulos de canções que, ao lado de “Meu mundo caiu”, “Por causa de você”, “Eu e a brisa”, marcaram aquele espetáculo inesquecível.
Convertido em templo da MPB, no Canecão se apresentaram os grandes intérpretes nacionais. É impossível enumerá-los, pois quase todos os artistas de prestígio ali se exibiram, mas uma certa memória seletiva (cúmplice da predileção) me traz à mente alguns. O show que marcou a volta do Chico em 1971, por exemplo. Ou o espetáculo “Brasileiro Profissão Esperança”, de 1974, em que a inesquecível Clara Nunes e o magistral Paulo Gracindo cantaram e contaram meses a fio as venturas e desventuras de Dolores Duran e Antônio Maria, dois ícones cariocas. Ou, em 1977, o antológico encontro de Antônio Carlos Jobim, Vinícius de Moraes, Toquinho e Miúcha, ao som de “Wave”, “Corcovado”, “Água de beber”, “Tarde em Itapoã”, “Minha namorada”, “Chega de saudades” e tantas outras. Um pouco antes, em 1975, a apresentação memorável de Chico Buarque e Maria Betânia , com "Olê, Olá" , “Sonho impossível”, “Com açúcar e com afeto” , a censurada “Tanto Mar” (estávamos nos anos de chumbo), “Vai levando” e “Noite dos Mascarados”, entre muitas outras. A apresentação da Simone em 1979, resgatando da censura o hino de Vandré “Pra não dizer que não falei de flores”. Ou o emocionante show de 1988 do Cazuza, com “Exagerado”, “O tempo não para”, “Codinome Beijaflor” e muito mais. Gal Costa , em 1981, no show “Fantasia” com “Meu bem, meu mal”, ou Mariza Monte, em 1994, com “A dança da solidão”. E Tim Maia, Caetano, Gil, Lulu Santos, Ana Carolina, quantos...
Mas o fato é que o Canecão está fechado e o Rio lamenta a perda desse espaço musical. (Quanta ironia vermos também fechada a assim chamada “cidade da música” , até agora um elefante branco em que a municipalidade, pelas mãos de César Maia, enterrou algumas centenas de milhões...).
Propostas de solução estão sendo estudadas. Na UFRJ, parece admitir-se a partilha na gestão do espaço, com suas entidades universitárias vinculadas à Música e às Belas Artes ocupando-o no início da semana, reservando-se os fins de semana para espetáculos musicais que configurariam uma continuidade do Canecão, com recursos privados e gestão empresarial específica. Mas o assunto é controverso, pois tal solução redundaria em nova cessão do espaço à iniciativa privada. Uma outra hipótese: o estabelecimento de parceria com a Prefeitura para a gestão dos shows, o que garantiria o controle público, com todas as rendas auferidas voltadas para projetos educacionais da Universidade.
Já existe até a sugestão de um novo nome para o extinto Canecão, pois essa marca pertence ao locatário vencido judicialmente. Pessoalmente, simpatizo com proposta feita no sentido de denominá-lo “Solar das Artes”, em homenagem a um outro espaço perdido pela cidade, esse de forma definitiva, o Solar da Fossa, uma espécie de pensão que existiu ali pertinho, onde hoje é o Shopping Rio Sul, e cuja memória foi reabilitada em recente e interessantíssimo livro de Toninho Vaz. Nesse lugar moraram, antes de se tornarem famosos, entre outros, muitos dos artistas que encantaram as gerações que frequentaram o Canecão, como Caetano, Gal, Tim Maia e Paulinho da Viola. Vincular o futuro “Canecão” ao antigo “Solar da Fossa” seria uma simbólica reverência, a mostrar que a extinção física ou jurídica, motivada ou não, de certos espaços consagrados não é capaz, jamais, de afastá-los de nossas lembranças. Mas, seja qual for o nome escolhido, é hora de nos afastarmos do campo da saudade e nos empenharmos na recuperação, pela cidade maravilhosa, desse histórico espaço cultural.