"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".
(continuação)
VI
E agora, em minhas lembranças, eu estava caminhando por ruas que não conhecia, conversando com alguém de quem não recordo mais o nome. Talvez uma colega de trabalho, nada além disso, não o sei dizer.
Estávamos caminhando, e havíamos parado em uma pracinha, perto de um laguinho que cintilava misteriosamente à luz do crepúsculo.
Eu havia dito alguma coisa da qual também não me lembrava, e aquela moça inclinou-se para mim e sorriu.
Um sorriso de lobo.
Ela possuía a aura de autoconfiança que as pessoas exibem quando tudo dá certo para elas. De alguma forma ela conseguia aparentar isso sem parecer esnobe. Ou, talvez, numa condescendência quase que irreal, talvez não me levasse devidamente a sério.
Naquele entardecer percebi que eu estivera errado.
Suas palavras e gestos sugeriam que ela poderia ter sido educada num tempo em que as pessoas perguntavam umas às outras como estavam pela manhã e queriam, de fato, saber a resposta.
Mas, ao mesmo tempo, ela me dava a impressão de ser uma missionária meticulosa que via como seu dever educar pacientemente os selvagens em cujas capacidades mentais – no entanto – ela não botava muita fé.
Por outro lado, eu desconfiava que os ensinamentos que eu tivera na infância não eram afinal muito convenientes para a vida. Muitas vezes nossos sapatos denunciam nossa verdadeira identidade.
Mas não só os sapatos que nos entregavam. Havia outra coisa, o mesmo problema que Cinderela também deve ter tido.
De fato, sempre achei que Cinderela pode até ter ido ao baile com um vestido novo, os cabelos com a ondulação perfeita, o sapatinho de cristal, mas as mãos... suas mãos eram seguramente diferentes das de outras damas presentes no salão.
Cinderela, como muitos de nós, devia ter as mãos de quem torce o pano de chão quando lava o piso, de quem limpa o banheiro e usa detergentes.
Ou, os nossos olhos. Nossos olhos traidores eram diferentes dos olhos dos outros. Eram cheios de cortes, arranhões, calos, que vinham da alma. Naquela situação o coração ainda é mole e não é preciso muito para destruir a gente.
Encarei-a quase que desafiadoramente, atentamente, como jogadores de xadrez que já se enfrentaram em alguma ocasião. Ou como jogadores de um jogo um pouco mais perigoso que o xadrez.
Ela inesperadamente pareceu um pouco triste, como se estivesse ali
esperando há muito tempo e começasse a perder as esperanças. Como se estivesse se decidindo se enfim me faria a pergunta que queria, ou não.
Então a moça me perguntou, surpreendente:
— Como se saiu?
Suspirei desconsoladamente.
— Mal. Sapatearam em cima de mim – respondi, como se estivesse estado na Segunda Grande Guerra e me dado muito mal nela.
— Então... Sabe como é que se costuma matar tigres?
— Como saberia? – retorqui com azedume.
Ficamos olhando um para o outro com os olhos inocentes de vendedores de automóveis usados. Como se nos avaliássemos mutuamente.
— Amarra-se um bode num pau fincado e as pessoas se escondem atrás das árvores. Com armas que nem sempre sabem usar com eficiência.
Colocou a mão sobre meu ombro, olhou-me com bondade e só então continuou:
— Costuma ser complicado para o pobre bode. Gosto de você. Não sei nem por que, mas gosto. Odeio a idéia de vê-lo representando o papel do bode. Você tentou muito fazer as coisas certas... como achava que deveriam ser.
— Gentil da sua parte — disse-lhe eu, então. — Mas, se eu colocar meu pescoço para fora e ele for cortado, o pescoço continua sendo o meu.
— E não foi o que aconteceu? Onde foi parar o seu emprego?
Olhou-me como se me desnudasse a alma, meus sentimentos. E então continuou:
— Sente compaixão pelo tigre e pelo bode, meu amigo? Mas eles são apenas animais. Quanto aos caçadores... Eles talvez sejam os verdadeiros animais. Não, animais não. Os animais não matam por diversão.
Por alguns momentos não tive o que responder.
Depois o óbvio prevaleceu.
— A honra não anda de lado como os caranguejos – murmurei. – Bem, não estou contando vantagem. Estou?
Ela riu. Bondosamente, mas riu.
— Você não é o único homem no mundo que não tem uma etiqueta de preço pendurada no pescoço, sabia disso?
— E daí? Isso por acaso salvou o meu emprego? Por acaso me consolou por estar tentando fazer a coisa certa?
— Não se pode julgar as pessoas pelo que elas fazem. Se for o caso de julgá-las, devemos julgá-las pelo que são.
— E então voltamos ao ponto de partida. E agora?
Ela mordeu o lábio e girou um pouco a cabeça, de modo a me olhar pelo canto dos olhos. Depois, baixou os cílios até que quase acariciassem as faces e lentamente os foi erguendo de novo, como uma cortina de teatro. Eu havia visto esse truque muitas vezes. Eu talvez ainda veria esse truque muitas outras vezes. Ela ainda pensava que um dia iria me fazer rolar no chão com as quatro patinhas no ar.
Sim, isso mesmo, adoro ser subestimado. É um de meus grandes defeitos.
Pois que pensasse, jamais o conseguiria. Não comigo.
Talvez, nas longas noites de inverno, eu deveria ficar remoendo meus remorsos por ser tão mal-educado.
Mas que ninguém perca seu tempo tentando me deslumbrar.
Se ela esperava que eu fosse ficar chocado, ficou decepcionada.
— Eu sou uma pessoa direita — disse-lhe. — Simplesmente uma pessoa comum como há tantas. Sou razoavelmente honesto. Tão honesto como você pode esperar que um homem seja em um mundo em que a honestidade está fora de moda.
Ela me olhou, reprovadora.
— Não, você é muito mais que isso. Você tem a coragem suicida de tentar.
Foi a minha vez de rir.
— Sei... se soubesse quantas vezes me chamaram de camicase...
— Camicase?
— Sim, os pilotos suicidas do Japão, na Segunda Grande Guerra.
— Entendi. Você não se importa em morrer pelas grandes causas.
— Não precisa ser debochada. Eu não me importo em morrer pelas grandes causas. Na realidade, eu não me importo em morrer pelas coisas que eu acredito.
— Mesmo que isso custe o seu emprego?
— Mesmo que isso custe a minha vida. Espero que isso não soe dramático demais, mas é assim.
— E agora?
Refleti um pouco, antes de responder. Então fiz um largo gesto com a mão.
— Agora? O mundo é grande, sempre haverá outro emprego em algum lugar. Só resta encontrá-lo.
— E isso o deixa feliz?
— Feliz? Eu sempre fui visto como uma espécie de gênio incompreendido na vida. Ou um imbecil, não o sei bem. Talvez eu seja só uma pessoa exigente. Talvez, por não me compreenderem, muitas vezes me consideraram uma aberração. E se afastaram de mim. Mas é possível que todas estas coisas existissem apenas na minha cabeça...
— E sempre foi assim?
— Desde os primeiros anos de escola. Um dia a verdade me atingiu. Foi aí que me dei conta que eu era bom em equações e contas, mas não tinha a menor ideia de como as pessoas pensavam. De como realmente pensavam. E, de certa forma, também me afastei delas. Não posso dizer que não senti, não sinto, a falta delas. Eu sei que estou melhor sem elas. É o que fico me dizendo. Eu sei disso e, um dia, também acreditarei nisso. Talvez.
Foi quando ela me olhou mais seriamente, agora com um ar de piedade que, de certa forma, me incomodou ainda mais.
Achei que eu estava sofrendo de insanidade temporária quando ela me fez um inesperado carinho no rosto e me disse que tudo ficaria bem.
Não acreditei nela.
Não tive como acreditar nela.
Sua voz havia se tornado suave como uma brisa em um campo de batalha, após um confronto particularmente sangrento.
Com o passar dos anos, meu pavio estava cada vez mais curto
Eu podia não possuir muitas coisas, mas tinha boas maneiras.
Então sorri, como se acreditasse.
Dei de ombros e comentei, como se não estivesse acontecendo comigo:
— É... parece menos do que justo. Acho que você está certa. O mundo em geral tende a ser um pouco injusto, não acha? O mundo, no final das contas, é um lugar assustador. E isso, mesmo sem contar as pessoas.
Senti seus olhos cravados em mim enquanto eu atravessava os espaços transformados em campo minado.
E então ela retrucou dizendo que não tinha curiosidade suficiente para tentar descobrir isso. Duvidei que não. Mas ela me disse:
— Eu quase posso vê-lo cavando avidamente com ambas as mãos, com muito esforço, e conseguindo apenas dois punhados de pedregulhos.
Escondi involuntariamente minhas mãos.
Ela riu, riu de verdade. E talvez, tenha sido impiedosa:
— Você tem que esconder seus olhos, não suas mãos.
E completou, com um sorriso até triste:
— Sempre achei que você era um cavaleiro de armadura brilhante em sua vida, mas eu estava errada. Você é apenas um mártir.
VII
Tive a curiosa sensação de estar vivendo uma segunda vez algo que já havia acontecido. Uma segunda vez? Talvez mais uma na sequência de infinitas outras, nunca o saberia dizer.
Pois aquela folha em branco na qual eu precisava escrever alguma coisa já não estava tão em branco. E, de certa forma, eu nada havia escrito que prestasse. Que atenuasse o que eu sentia.
Então olhei em torno naquilo que eu chamava de lar, generoso comigo mesmo, na ilusão de que tinha algo além de minhas lembranças que não queria ter.
Um grande calendário na altura dos olhos à minha direita. Os dias que já haviam virado poeira estavam cuidadosamente marcados com um “X” em lápis preto de ponta macia, para que eu, relanceando para o calendário, sempre soubesse exatamente que mais um dia havia passado.
Que eu o havia passado. Que havia sobrevivido mais um dia.
Como um alcoólico anônimo: um dia de cada vez.
Não que aquilo fizesse qualquer diferença, eu não ia fazer nada.
Mas é sempre melhor estar de pé. Você se move mais rápido.
Fiquei ali sentado, pensando, lembrando. Ninguém entrou, ninguém chamou, nada aconteceu, ninguém daria a menor importância se eu tivesse morrido ou ido para algum lugar.
Simples assim.
— Nunca é tarde demais — murmurei. —Mas é. Sempre é.
Olhei para meu rosto vagamente refletido pela vidraça da janela.
Eu parecia mais velho, meus olhos estavam mais duros, e meus lábios pareciam ter esquecido como sorrir.
Procurei, então, me sentir esperançoso. Um pouquinho, que fosse.
Mas então a dura realidade se imiscuiu entre minhas tentativas de esperança, e me disse baixinho:
— Um dia desses é bem capaz de você se transformar no principal convidado de um pequeno funeral, também.
Afastei aquele pensamento sombrio com a calma de um iceberg. Bem, pelo menos eu assim tentei fazer parecer.
É, as pessoas estão sempre dizendo para a gente esquecer coisas desagradáveis. Mas a gente nunca esquece.
A noite caíra completamente, suave e quieta.
O luar esbranquiçado estava frio e límpido, como a justiça com a qual sonhamos e que nunca encontramos. Não na nossa vida.
Então uma nuvem surgiu do nada e ocultou a lua. Tive uma sensação estranha quando vi tudo desaparecer. Era como se eu tivesse escrito um poema e ele fosse muito bom e eu o tivesse perdido e nunca mais fosse lembrar dele.
Mas o brilho das estrelas tornou o vidro da janela prateado, como se fosse um espelho, e me vi ali fantasmagoricamente outra vez.
Mas faltava alguma coisa na expressão do meu rosto. Antigamente essa alguma coisa seria chamada de berço, mas, nos dias de hoje, eu não saberia como chama-la.
Meu rosto parecia sábio demais e cético demais para a minha idade. Recebera tropeços demais e acabara me tornando um tanto esperto demais ao contorná-las. E por trás dessa expressão de sabedoria havia o aspecto simplório do menino que ainda acredita em Papai Noel.
– Anime-se – incentivei-me. – Deixe de ter pena de si mesmo. Você acha que é durão e está se destruindo, tentando fazer jus à imagem.
Voltei a olhar atentamente minha folha em branco, num irreal suspense.
Qual a frase de efeito que se seguiria, aquela frase definitiva, indiscutível, que retrataria alguma coisa fosse lá ela o que fosse, e que talvez (sempre o talvez) tivesse a capacidade de mudar alguma coisa em minha vida?
Mas a frase não surgia, vi-me petrificado diante não de um papel em branco, mas de uma linha em branco. Intransponível.
Lembrei-me do que dissera à moça em algum lugar impreciso num tempo irreal e desconhecido: “– Foi aí que me dei conta que eu era bom em equações e contas, mas não tinha a menor ideia de como as pessoas pensavam”.
Então me deparei com a verdade irretocável, derradeira, definitiva.
E ocorreu-me a resposta certa que eu não havia dado.
Talvez, de certa forma, não a soubesse no momento.
– A ideia de analisar a mente das pessoas não me anima.
Ao que, talvez, ela criticaria:
– Sem querer ofender, você quer ser escritor, não quer? Como iria desenvolver seus personagens, seus diálogos, suas situações, sem ter a menor ideia de como as pessoas pensam?
Eu teria rido. Ou talvez não, como saber? E então teria tido a resposta correta?
– Isso é como dizer que é preciso ser geógrafo para poder ir de uma esquina à outra.
Porém eu correria o risco dela retrucar:
– Acho que você não me entendeu. Já pensou alguma vez em se sentar num banco de praça só para observar as pessoas, estudar seus gestos e expressões?
Refleti por um momento, aquilo soava demasiadamente estranho para mim, incompreensível.
Recordei, no transcorrer de um relâmpago, as situações embaraçosas e humilhantes que vivera, todas as pessoas desagradáveis, mal-educadas, arrogantes e presunçosas que conhecera.
Gente habituada a ser forte com os fracos e fraca com os fortes.
E gostando de fazer isso. E gostando de ser isso.
Bem, pelo menos adorando serem fortes com os fracos.
Porque eu não havia sido um deles? Não havia sido um dos fracos?
Havia?
Eu, que queria ser um escritor, usando um verbo de forma tão irregular e imprecisa, ilusória, enganosa?
– Uma questão de sentir e apreender o que elas não querem revelar, seja conscientemente ou não? – eu então talvez lhe perguntasse.
– Você tem sempre que complicar assim as coisas? – perguntaria ela, naquela maneira tão reprovadora que usava comigo às vezes.
– Não sei se seria bem isso... talvez isso me ajude a nunca esquecer do que alguns seres humanos aparentemente normais são capazes. E que, às vezes, por trás das aparências muitas vezes se escondem monstros.
Ela me olharia, desanimada.
– Você não acredita na humanidade, não é mesmo?
Ah, agora eu estava caminhando sobre areias firmes, tive a estranha sensação de que nos conhecíamos há muito tempo e que estávamos nos reencontrando após uma longa ausência.
– Não sei bem... mas admito que muitas vezes, quando conhecemos alguém de verdade, às vezes podemos perceber que por baixo da superfície áspera e pedregosa que muitos aparentam podem existir pessoas realmente boas.
Ela me olharia de uma maneira indefinível, como se eu fosse um caso irreversivelmente perdido.
Talvez pensasse que, nas entrelinhas não ditas, eu carregaria tanto veneno e amargura que morreria se mordesse a língua.
(continua)