"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".
(continuação)
XXVIII
O ancião pegou o sax com a mesma reverência e encantamento com que Gabriel vira o músico negro pegá-lo há tanto tempo atrás.
Como da outra vez, Gabriel sentiu um aperto em seu coração quando o ancião levou o instrumento à boca, umedeceu a boquilha e a segurou entre os dentes, seu peito inflou quando puxou o ar.
Mas quando seus dedos percorreram as chaves e ele soprou, o sopro transformou-se num som melodioso. Fechou os olhos e soprou outra vez. O mesmo resultado saiu do instrumento.
E então ele começou realmente a tocar.
De início como se forçado, um ritmo vacilante e titubeante, quase irreal.
Aos poucos, entretanto, a música que também trazia em sua alma e coração, em seus olhos, como se fosse uma lágrima há muito guardada e que finalmente escapasse livre, correu lentamente por sua face, se transmutou em sons e o blues escorreu por todo o Flamboyant Florido.
Gabriel ficou em silêncio ouvindo-o. Olhos fechados, mesmo preso à cadeira de rodas, seu torso gingava, como se ele bailasse com o instrumento, exatamente como Gabriel vira um músico tocar um dia, esquecido de tudo e de todos.
Terminou a melodia, continuou de olhos fechados, como se quisesse que aquele momento mágico nunca mais terminasse, que durasse eternamente para todo o sempre.
Abriu os olhos, acariciou amorosamente o instrumento, como se não acreditasse no que acontecera. Então apontou com dedos trêmulos para a fotografia.
- Quem é ele, Gabriel?
Gabriel aproximou-se, afagou a fotografia com ternura.
- Foi um bom amigo. Como disse, eu o ajudei a sonhar este sonho. Mas, na verdade, ele me ajudou muito mais. Ele me deu uma razão para a minha vida.
O reconhecimento surgiu, tardio. Então perguntou com cuidado:
- Você é o dono daqui, Gabriel?
- Ah, dono é uma palavra muito inexata. Gosto de pensar que sou o privilegiado daqui. Sei que muitos me consideram assim, mas não sou dono de nada. Como disse, apenas ajudei a sonhar este sonho. Aqui somos todos uma família, e eu me empenho para que seja realmente assim. Eu não sou importante, importante são vocês. Sem vocês, nada disso teria razão de ser. Eu não teria razão de ser...
O ancião assimilou suas palavras, suas razões, mas não era o momento apropriado para aprofundar o assunto. Então perguntou:
- E este sax? É o dele, pelo que vejo na fotografia. Gabriel... E esta foto... viu como esta foto em preto e branco tem mais alma? Como ela tem expressão, como revela sentimentos? Dá para sentir a tristeza em seu rosto, a tristeza que lhe corrói a alma...
- Você precisava tê-lo conhecido pessoalmente, você iria gostar muito dele, também. Foi uma pessoa maravilhosa. Um dia lhe contarei como tudo aconteceu. Mas, vamos? Não quero que perca o jantar.
O ancião riu.
- Vá você, Gabriel. Acho que não conseguiria me alimentar agora. Agora preciso alimentar a minha alma, meu coração. Achei que nunca iria sentir isso novamente. Meu Deus, eu estou vivo, vivo...
Apertou o sax contra o peito, como se o abraçasse. Então olhou novamente para Gabriel com o mesmo desespero, com a mesma agonia, com a mesma expectativa, com a mesma esperança.
- Gabriel... você me emprestaria este sax algumas vezes? – suplicou.
Gabriel viu-se diante de um dilema. Seu primeiro impulso foi dizer não, mas teve a consciência vergonhosa que aquilo seria um simples e imediato abandono seu ao egoísmo. Aquele instrumento lhe significava muito.
Mas, pensou, quanto ele provavelmente significaria para o ancião?
O rosto do músico negro se materializou diante de si e ele sorria.
O rosto de Sophia se materializou diante de si e ela lhe repetia as palavras que lhe dissera quando se encontraram a primeira vez e ele o queria comprar: “- Este sax não é para qualquer um”. E depois, finalmente: “- Ele é seu”.
Sem dizer nada, foi buscar o estojo, abrigou o instrumento, fechou as presilhas com um estalido alegre, colocou-o de encontro ao peito do ancião, que voltou a abraça-lo, incrédulo.
Então Gabriel sorriu, segurou os punhos da cadeira, girou-a para a porta, começou a empurrá-la, o ancião aturdido deixando-se levar.
- Vamos para casa, meu amigo, seja bem-vindo ao Flamboyant Florido.
(continua)