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Sentimentos - Fernando Coimbra dos Santos

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"Se eu puder combater só um mal, que seja o da Indiferença".

 


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Noites de Estrelas Cap. VII ao Cap. IX



(Continuação)

VII

A vida lhe respondeu afirmativamente meses depois quando se casaram.

Teófilo, a despeito da falta do pai e da falta que os avós que também haviam partido lhe faziam, estava começando a se sentir feliz outra vez.

Começou, enfim, a entender algumas das palavras, algumas das frases enigmáticas cheias de simbolismo que o pai lhe dissera.

E de suas profundas verdades.

A felicidade aumentou – e de certa forma o assustou – quando soube, quase um ano depois, que iria ser pai. Sem o saber (como o poderia?) começou a se questionar como Valdeci o fizera: estaria preparado, saberia lidar com aquilo, saberia aprender, teriam paciência para lhe ensinar?

Depois do trabalho, para comemorar, pela primeira vez saiu com os colegas.

Pela primeira vez – ele que raramente bebia – se excedeu e chegou carregado em casa.

Pela primeira vez – graças a seu estado de inconsciência – não viu a mulher que amava chorar amargamente.

Mas um dia, no qual reprisara a bebedeira (com muito menor intensidade), teve que enfrentar uma mulher amargurada e a dolorosa verdade:

- Teófilo, querido, você está se transformando num alcoólatra...

Ele negou, magoado. Mas depois se perguntou quantas vezes chegara cheirando a álcool em casa. Depois se perguntou quantas vezes se tornara inconveniente, por causa do álcool. E prometeu, jurou, nunca mais beber.

Tentou abraça-la, arrependido.

Tentou beijá-la, ela afastou o rosto, enojada.

Ele se retraiu, a rejeição de quem mais amamos é a que  mais machuca, mesmo quando merecidamente.

Teófilo foi assaltado e tomado por um sentimento de derrota, que o levou mais uma vez ao bar e a outra bebedeira, incontrolável.

- Todos fazem promessas que não podem cumprir – justificou para si mesmo. – Só que isso não consola. Nem justifica.

Os nove meses se passaram e seu filho chegou.

Mãe com ele na maternidade, o pai sozinho, caído na mesa de um bar.

Nas semanas seguintes um quase sempre embriagado Teófilo começou a sentir um ciúme doentio pela mulher que o evitava, culpando o filho que chegara por isso.

Não se dava conta, não tinha consciência, que o filho precisava e merecia mais cuidados do que ele.

O navio de sua vida tinha começado a encher de água. E em muito pouco ele iria naufragar.

Uma noite Teófilo chegou mais embriagado que o costume.

Enfrentado e admoestado pela esposa, Teófilo perdeu a cabeça. Daquele momento em diante sua vida naufragou de vez na nau dos desesperados.

Vizinhos tiveram que chamar a ambulância para atender a jovem mulher, desacordada por tanto apanhar do marido, bêbado/furioso.

Levada pela Assistência Social, uma criança de alguns meses, tomada pelo pânico e traumatizada. A mãe impotente, cega de um olho e arrebentada.

Foi submetida a transplante de córnea, portanto requerendo do marido toda atenção e cuidado, atenção e cuidado que ele não poderia dar.

Um estado tal que merecia – para ampla vergonha de tais maridos e carrascos, e de todos nós – ser mostrada, via televisão, para todo o país. Seria ótimo que aparecesse logo após aqueles ditos eróticos e sensuais comerciais de cervejas, turbinados pelas louras e morenas siliconadas e insinuantes.

O Brasil é, mesmo, o país com alergia ao essencial prioritário. Aquilo que nos atormenta, nos avilta e nos empobrece não é tratado de frente, tipo olho no olho; é empurrado para um depois que nunca chega, num jogo sujo, merecendo todo o nosso repúdio e cobrança.

É o caso do alcoolismo.

AIDS e alcoolismo. Falava-se e gastava-se tanto com a problemática da AIDS, como se essa doença fosse a suprema vergonha da saúde brasileira, E, verdade apurada e depurada, sem as cores do imediatismo, não é.

Nunca foi. Nem nunca será.

A AIDS não passa de um grão de areia na praia gigantesca do alcoolismo. É a doença da moda, enquanto que a outra é a doença dos séculos.

O alcoolismo é muito mais sutil, ameaçador, destruidor, catastrófico, abrangente e demolidor para a sociedade. E a Mídia, pífia e corrompida, motivada sabe-se lá por quais argumentos ou interesses, não dá a mínima bola para os quinze milhões de alcoólatras nas sarjetas brasileiras. E isso falando-se apenas dos cadastrados.

Um estudo americano revela uma constatação tão alarmante quanto desoladora: em 60% das desavenças familiares, incluindo assassinatos, desagregação familiar, divórcios, etc, está lá, escancarada ou oculta, a garrafa do álcool.

E mais de 60% dos crimes estão relacionados diretamente com o álcool, que lá se vende e se consome tanto quanto aqui; só que contam com Lei mais séria e mais aplicada. E nem assim.

Policiais também chamados pelos vizinhos vieram e o levaram, o Delegado o autuou por lesões corporais graves e aplicou a Lei Maria da Penha.

Na cela, em companhia de outros presos bêbados inveterados, Teófilo não só se viu privado da bebida como teve tempo e consciência de pensar no que fizera e nas consequências que aquilo trazia e trouxera para sua vida.

A mulher infelizmente precisava dele, abriu mão da proteção da lei Maria da Penha, Teófilo só seria processado pelas lesões corporais.

O álcool tornara-se uma droga, em sua vida. E destroçara sua família.

Num final de tarde foi liberado da cadeia, caminhou lentamente, muito lentamente, para casa.

Encontrou a porta da sala fechada apenas pelo trinco. No entanto, a porta de seu quarto estava trancada à chave, a esposa e o filho abrigados do outro lado de seu descontrole.

Encontrou, também, um prato de comidas no micro-ondas. Sentiu-se um crápula, imerecedor desta atenção. Pegou o prato, embrulhou-o num saco plástico, colocou-o na geladeira sem tocá-lo.

Sentou à mesa da cozinha, cabeça ente as mãos, s lágrimas vieram com a certeza do que tinha que ser feito, certeza que o atingira inexoravelmente quando refletia em sua cela quanto a monstruosidade do que fora capaz.

Era um doente. Não, tornara-se um monstro. E podia fazê-lo novamente.

Pegou um caderno, começou a rabiscar folhas e folhas de despedida e possível justificativa, um pedido de perdão que não soasse tão canalha.

Desistiu, por fim. Juntou todas as folhas que amassara, jogou-as no lixo, escreveu uma única, derradeira, definitiva:

“Perdoe-me. Perdoe-me por não ter conseguido realizar seus sonhos.”

Nem colocou seu nome, nem um adeus, não precisava, não era necessário.

Foi até o banheiro, pegou sua escova de dentes. Por um instante ficou olhando desconsoladamente o armarinho onde ficara só uma escova, solitária, perdida na vida, dizendo tantas coisas para os que sabiam senti-las.

Parou diante da porta trancada do quarto de casal, chegou a erguer a mão para bater, mas desistiu antes que conseguisse fazê-lo.

Entorpecido, olhou em torno, despedindo-se do que fora a sua vida e sua família. Já estava saindo quando voltou até a mesa da cozinha, tirou a aliança e o relógio do pulso, o colocou sobre o bilhete, acrescentando um PS:

“Por favor, para meu filho, que também não mereci.”

Saiu, fechou lentamente e com cuidado a porta, empurrou a chave por baixo da mesma. Passou o trinco no portãozinho do muro da frente, começou a andar para nunca mais voltar.

Para onde ia? Não sabia.

Seu olhar se tornou opaco por um momento, sem tristeza, sem emoção, como se de repente nada mais tivesse importância. E não tinha.

A rua silenciosa tenta lhe dizer algo e consegue: que, agora, sua vida é vazia de sentido. Tornara-se um homem amargurado. Um homem sem sonhos. Um homem com medo de sonhar outros sonhos.

Solidão.

Sentiu-se sozinho, sozinho como jamais se sentira ou estivera.

Solidão não é estar sozinho, mas sentir um vazio intransponível na alma.

Apenas com a roupa do corpo, sem qualquer dinheiro, apenas com uma escova de dentes no bolso da camisa. Quase inútil, sem um creme dental.

Na saída da cidade, num posto de combustível, pediu uma carona para um caminhoneiro e a conseguiu. Para onde ia?

- Ah, qualquer lugar estará ótimo- respondeu. E mentiu: – Estou de férias.

Como dizer a um desconhecido que estava – de certa forma – tirando férias de sua vida? Férias permanentes.

- Então vamos até São Paulo – disse o motorista. – Só que vou jantar antes. Já jantou?

- Já, obrigado. Não tenha pressa... – mentiu outra vez, sabendo que não teria como pagar sua refeição. E não queria abusar da boa vontade do outro.

Enquanto esperava ficou olhando as estelas, quase sem vê-las conscientemente.

Pensando.

No vazio que sua vida se tornara.

No vazio que ele a tornara.

 

VIII

Desceu na marginal, próximo à fábrica onde o motorista deixaria sua carga.

Começou a andar ao longo daquele rio morto que deslizava sem pressa, como se nele flutuassem coisas mortas. Principalmente sonhos mortos.

- É... – murmurou outra vez para si mesmo. – A vida realmente nos prega algumas peças, nos passa algumas rasteiras e acabamos caindo de boca, nos arrebentamos.

Refletiu, completou a realidade da constatação:

- E eu me arrebentei e acabei arrebentando também quem estava perto.

Riu, incoerentemente. Ele, realmente, se tornara muito bom em causar sofrimento. Nele e nos outros.

Caminhou alguns quilômetros, o dia começou a se tornar quente demais. Procurou uma árvore na beira do rio fedorento, abrigou-se sob sua sombra por algum tempo, repetindo-se inúmeras e incontáveis vezes que não merecia nada melhor.

Ficou ali algumas horas, depois voltou a andar sem destino e sem objetivo, irritado consigo mesmo por estar perdendo tanto tempo com a arte de esperar o nada acontecer.

Com fome, sem dinheiro, saiu do sol tórrido da marginal e adentrou a cidade. Caminhava pelas calçadas como quem caminha por um túnel escuro que jamais levará a lugar algum.

Dentro dele a tristeza tentava apodrecer o que restara de bom, se é que ainda havia alguma coisa de bom dentro de si.

Viu-se vazio, sem nada de bom ou de mau em que pensar.

Constatou, irrefletidamente, que as pessoas sempre se agarravam a coisas que não tinham realmente importância. E que, muitas vezes, esqueciam-se de que sempre tinham algo mais valioso dentro delas mesmas.

Algo, entretanto, que só se perde uma vez.

Começou a perceber que estava podendo detectar sutilezas que as pessoas querem esconder. Ou evitam enfrentar.

Ele começava a poder ver coisas que não eram para serem vistas. Ou, principalmente, que não eram para serem sentidas.

Até onde chegaria, com seus remorsos?

O mundo era cruel, admitiu. A menos que fosse um lugar ainda mais cruel do que tinha sido capaz de imaginar que seria. Naquele momento, jamais saberia o quanto estava enganado em relação aos limites da crueldade, se é que eles existiam.

Encontrou um supermercado, talvez ali achasse disponibilizado um pouco de café, como cortesia. E como um simples cafezinho lhe estava fazendo falta...

Num dos corredores, passou diante de uma seção de bebidas. Parou por um momento, olhando cobiçosamente as garrafas que pareciam lhe acenar, verdadeiros cantos de sereias em sua vida. Como um líquido de aspecto tão inofensivo, tão inocente, podia causar tanto mal?

Não, nunca mais – prometeu-se. Nem que fosse como um castigo.

Lá na frente encontrou o que procurava. Aproveitou que ninguém estava olhando, pegou um copo grande para água, encheu-o quase até a boca de um café cheiroso e saboroso. Mais adiante uma moça oferecia pedaços de bolo para serem degustados e a marca se tornasse conhecida e comprada.

Pegou o primeiro, o segundo depois de um instante de fingida indecisão (elogiou o produto), não teve coragem para pegar o terceiro. Por ele, comeria todo o prato.

Ficou zanzando de um lado para outro, pegou um carrinho, colocou algumas coisas em seu interior só para aparentar ser um freguês.

Aproveitando o ar-condicionado. Querendo que a moça se afastasse e ele pudesse pegar mais alguns pedaços do bolo que, aliás, nem era tão bom assim.

Mas, que em sua fome, tornara-se saborosíssimo.

Começou a ser notado por um segurança, que estranhou a incongruência de seu ir e vir. Teófilo percebeu, deixou o carrinho e saiu.

Na calçada encontrou um mendigo, sujo, asqueroso, cheirando mal. Ia passar direto quando o homem o chamou, suplicante.

- Moço, será que podia comprar um pacote de macarrão para mim? – e lhe estendeu algum dinheiro.

Teófilo estranhou.

- Mas o senhor tem dinheiro para isso, por que não entra e compra o senhor mesmo?

O outro riu, sem qualquer alegria.

- Olhe o que eu sou, moço. Acha que alguém me deixará entrar aí?

Teófilo sentiu o sangue ferver, diante da ruindade humana. Condoeu-se pelo mendigo, sem saber que estava para se tornar um deles. Tomou-o pelo braço, sem se importar com o fartum do irmão de vida.

- Vamos, o senhor vai entrar comigo.

O outro relutou, sabendo o que o esperava. Teófilo insistiu.

- Vamos, amigo. Quero ver se alguém irá impedir.

Forçou o outro a entrar com ele. Estavam a meio caminho da estante de massas quando o mesmo segurança surgiu aparentemente do nada e bloqueou o caminho.

- Fora daqui, os dois – ordenou com voz dura.

- Senão?... – perguntou Teófilo, encarando-o.

O segurança, enorme em seu tamanho, musculoso e bem alimentado, sorriu. Um sorriso perverso, sádico, antecipando o que poderia fazer. O que iria fazer.

- Senão eu irei jogar os dois lá para a rua. Saiam, agora, estou mandando.

Teófilo o olhou, aparentemente sem se preocupar.

Pegou, displicentemente, uma vassoura da estante.

- Por que não o faz? – perguntou, suavemente demais.

O segurança pareceu não perceber a suavidade extrema do convite. Ou, talvez, não lhe deu a devida importância.

Avançou, mas Teófilo foi mais rápido. Ou feliz. Ou os dois.

A ponta do cabo da vassoura encontrou com violência a garganta do troglodita, manejada como se fosse uma lança. O aturdido funcionário levou as mãos à garganta, olhos esbugalhados na falta de ar, caindo de joelhos.

Tentou se levantar, forçando-se a respirar, o olhar homicida.

E adentrou à inconsciência quando Teófilo girou a vassoura e espatifou o cabo de encontro à têmpora do agressor.

Outros seguranças surgiram e o dominaram sem violência, mas só pela chegada providencial do gerente e coincidentemente pela de um policial militar que morava no bairro.

- Larguem ele – ordenou o policial.

Os seguranças obedeceram, enquanto ajudavam o companheiro se recompor. Que só não avançou em Teófilo por causa da presença do chefe, que o mandou ficar quieto.

- Muito bem, senhor – dirigiu-se a Teófilo. – O que aconteceu aqui?

Teófilo apontou o mendigo que, apavorado e temeroso, se encolhia de encontro a uma coluna. E explicou os fatos, a injustiça dos fatos, que só revidara uma agressão injusta que se iniciava.

O policial também ouviu, e perguntou ao gerente:

- Quer que eu o leve preso?

O gerente olhou com desgosto para o segurança que levara o pior. Ele, quase o dobro do tamanho de Teófilo.

- Não, policial, vamos deixar assim. Foi merecido, não é a primeira vez que meu funcionário quer se prevalecer de sua força. Pode liberar o moço.

Colocou a mão em seu ombro.

- Vá embora. E você – voltou-se para o mendigo – todas as vezes que precisar de alguma coisa, por favor mande me chamar.

Deu-lhe um pacote de macarrão como presente. E duas latas de molho pronto.

Olhou com simpatia para Teófilo, que se afastava. E então disse para o policial:

- Deve ser uma pessoa boa sob condições extremas. Deve ser um bom homem num momento difícil, para fazer o que fez.

Teófilo saiu feliz, acompanhado pelo mendigo. Estava contente porque havia ajudado alguém que nem sabia quem era. Talvez houvesse dado um passo para a própria salvação.

Pelo gerente, pelo policial, caso encerrado e esquecido.

Mas sempre existe alguém que jamais esquecerá.

Já na rua, apertou a mão do mendigo e se despediu.

- Bom, vou indo... Cuide-se... – disse com sinceridade. E começou a caminhar.

O mendigo, após um instante de indecisão, foi atrás dele.

- Espere, moço... nem lhe agradeci pelo que fez.

Teófilo voltou-se com um sorriso, sem parar de andar.

- Não se preocupe... não há o que agradecer, não fiz nada...

O mendigo apressou o passo e se colocou diante dele, impedindo-lhe a passagem.

- Não, espere... Desculpe, mas sinto que há alguma coisa errada, sei reconhecer o desespero quando o vejo. Desculpe se eu estiver errado, mas acho que não... Por favor, jantaria comigo? Este macarrão dá para dois e sobra.

- Para amanhã, talvez? – riu Teófilo com simpatia e agradecido. – Se eu recusar seu convite – que agradeço de coração – amanhã não sobraria também para o jantar?

O mendigo o olhou firme, certo que sua intuição não falhara.

- Moço, tem irmão nesta vida desgraçada que trocaria um prato de comida por dois dedinhos de prosa. Para muita gente, nem existimos... Ou, se existimos, somos gente que incomoda e não merecia estar vivo.

Seria orgulho seu ou realmente vontade de recusar para que sobrasse mais para o infeliz?

Teófilo não o sabia, sabia apenas é que estava com uma fome tremenda. Se aceitasse (e como o queria!), teria que se controlar para comer o mínimo possível e não abusar da generosidade.

- Ainda tenho o dinheiro para amanhã, este pacote foi um presente. Além de tudo, amanhã é outro dia, basta um de cada vez, não é mesmo?

Estendeu-lhe a mão.

- Prazer. Zé-Ninguém.

Aquilo doeu fundo em Teófilo, retribuiu o aperto de mão. Depois de um instante muito rápido de hesitação, respondeu:

- Prazer. João-Ninguém.

O mendigo teve que rir.

- O que é isso, moço? O senhor está bem vestido, não é ninguém como eu para se achar no direito de se chamar assim. Me desculpe, mas é verdade, é o que eu sinto. De verdade.

Teófilo riu, por sua vez, um riso sem qualquer alegria.

- Talvez João-Bobo? – perguntou, tentando dar uma aparência de deboche e realidade às palavras.

O mendigo o olhou solidário, tinha empatia de sobra. Não insistiu. Só ouviria a história se Teófilo se decidisse, por si mesmo, a conta-la.

- Talvez eu preferisse que o senhor se chamasse João-Teimoso. Que tal, só para experimentar? Que tal insistir mais um pouco antes de se dar por vencido? Sabe, este é um caminho sem volta... E então, janta comigo? Pode demorar um pouco, sabe, mas farei o melhor que puder.

Percebeu a palpável indecisão do outro.

- Por favor... – suplicou.

Teófilo deu-se por vencido, a fome era maior que a vergonha. E o que fora mesmo que Zé-Ninguém havia dito? Que tem irmão nesta vida desgraçada que trocaria um prato de comida por dois dedinhos de prosa?

 

IX

Acompanhou o outro até uma pracinha que havia ali por perto. Uma casa abandonada, já em ruínas, era o lar de Zé-Ninguém. Vivia ali sozinho, num único cantinho que o protegia das noites incertas de São Paulo.

Por um momento o agora João-Ninguém (como se sentia) quedou envergonhado, sem saber como agir ou o que dizer. Enquanto o outro acendia um fogo no chão e começava a cozinhar o macarrão numa lata, ficou ouvindo-o falar, contar casos da semana, dar graças a Deus haver ainda gente boa como um anjo no mundo que ainda deixava os próprios problemas de lado para ajudar quem nem conhecia.

Teófilo riu, acanhado.

- Talvez eu estivesse só à procura de encrenca... – argumentou, sem convencimento nenhum.

Zé-Ninguém teve que rir, por sua vez.

- Duvido, o senhor não tem jeito de gente que faz isso.

- Não me chame de senhor, por favor. Não sou melhor que você..

- E de que está me chamando agora? “Você, “senhor”, não são só rótulos em nossas vidas? Que importância têm? Só a que damos a eles.

Teófilo o olhou com seriedade, avaliativo.

- Sabe que é uma pessoa surpreendente?

- Eu??? Ora, ora, e eu que achei que já me haviam chamado de tudo nesta vida... Por que, surpreendente?

- Porque se expressa com clareza, mostra ser uma pessoa educada e instruída, mas que...

- Mas que...

- Mas que, no entanto, parece que decaiu na vida.

O outro riu, desta vez com vontade, divertido, sem amargura.

- Parece?... Veja, está vendo aquela flor ali no cantinho? Você acha que esta planta só existe porque havia terra em baixo dela? Agora, vou inverter a ordem das coisas: você acha que a terra só existe para que as flores possam nascer?

Teófilo lembrou-se com saudade do pai, parecia-lhe uma de suas frases cheias daquele simbolismo aparentemente incompreensível, mas com sentido, maravilhoso.

- Parece meu pai falando... – confessou, quase sem dar conta do que fazia. – Ele me dizia coisas que eu não entendia, muitas delas não entendo até hoje.

Zé-Ninguém riu outra vez. Seria um maluco que, apesar de tudo, mesmo com a vida que levava, não perdera a capacidade de se rir das coisas? Talvez fosse uma forma de se defender das coisas, de continuar inteiro, mesmo partido em milhares de pedacinhos pela vida.

- Ele deve ter sido um bom homem... E eu, o que quero lhe dizer com isso? Simplesmente que estou aqui porque aqui é o lugar onde devo estar.

Teófilo, por um momento, não soube ao certo o que dizer.

- Mas... esta vida que você leva...

- Já tive uma melhor... Mas, agora, é a que eu mereço, é o que eu mereci. Sabe, é mais simples e fácil julgar pelo que os olhos enxergam do que tentar enxergar a verdade que há por trás da visão. Quando se quer ver algo bom em uma pessoa, em uma situação, basta prestar atenção e alguma coisa boa você verá.

- É... é o meu pai falando, não sei como... Ele não habitava o mundo, habitava seus sonhos. Exatamente como você...

Teria alguma coisa boa atrás de toda aquela tristeza, de todo aquele sofrimento, de toda aquela desgraça? Aquilo não era vida. Não era vida para ninguém.

Calou-se, cônscio das impossibilidades que não compreendia, que não conseguia compreender. Ficou olhando o anfitrião terminar de preparar o macarrão, abrir uma das latas de molho com habilidade, colocar uma porção generosa, todo o conteúdo.

Então viu o outro como que se encolher. Recebeu um sorriso envergonhado.

- Moço, desculpe-me, mas não costumo receber convidados, não tenho pratos nem talheres, vamos ter que comer com as mãos, espero sinceramente que não se importe. Só temos que esperar esfriar, senão...

- Ah, não me incomodo com isso, comida é comida.

Zé-Ninguém riu.

- Não estamos falando de comida, seu moço, estamos falando de modos.

Temos que ser bem educados, não é mesmo? Apesar de tudo.

Pouco tempo depois, inconcebivelmente, inacreditavelmente, como se fosse um desvario, Teófilo se viu comendo com as mãos a macarronada mais gostosa que já provara na vida. Sabia que era uma ilusão, talvez não passasse de um delírio de sua imaginação.

Mas era o melhor delírio de sua vida.

Comeu um pouco, Zé-Ninguém forçou para que ele comesse o que precisava. Ao menos, por aquela noite, Teófilo iria dormir sem que a fome povoasse e dominasse seus sonhos e sono.

Depois sentiu-se fraco e infinitamente cansado. No automatismo a que estava habituado, pensou que tinha que escovar os dentes. Mas só havia a escova em seu bolso. Não havia creme dental, não havia sabonete, não havia água para um banho.

Não havia mais esperança em sua vida, sentia-o.

Elogiou a macarronada, Zé Ninguém agradeceu, contou que havia sido um bom cozinheiro de restaurante fino, depois a bebida entrara em sua vida e a destroçara.

- E ainda vem gente aqui querendo o dinheiro que não temos, querendo nos vender drogas. Não precisamos delas, não é mesmo? Droga já é a nossa vida... Mas, vamos dormir agora, fique aqui. As acomodações não são boas, mas aqui estará seguro. São Paulo é muito perigosa durante o dia, mas de noite é muito pior. Sinto também não ter uma cama para lhe oferecer, mas tenho um pouco de papelão.

Ensinou Teófilo a colocar mais papelão em baixo que em cima do corpo. Evitava o frio do chão e protegia da friagem da noite. Só não afastava o enregelamento da vida, mas também era querer demais, não é mesmo?

Extenuado, entrou rápido num sono sem sonhos.

Como sua vida.

Acordou dolorosamente.

Por um momento não conseguiu se mexer e pensou que jamais o conseguiria novamente.

Pela primeira vez dormira na dureza do chão, tão impiedosa quanto o que sua vida se tornara.

Sentia também um vazio desolador em seu peito, aquele vazio que estaria sempre ali, até o fim de seus dias, toda a vez que se lembrasse da família com saudade.

A família que perdera, que deixara para trás, uma forma de expiação de suas culpas, de seus erros.

Deu-se conta que pensava nela todo o tempo, principalmente quando vagava sozinho. Sabia que nunca mais os veria, nem teria notícias deles, mas talvez (sempre o talvez) fosse melhor assim.

Não que não se importasse, ou não quisesse saber deles.

É que doía demais.

Nascer na rua já é difícil – ponderou. – Mas se aprende a viver. Agora, vir para a rua depois de uma vida normal, isso acaba com o sujeito.

Teria que conviver com este fato, com esta realidade. Para nós, para todos nós, que um dia nascemos e um dia iremos morrer, nada é rápido demais. Para se compreender algumas verdades, não podemos pensar com os olhos que nem sempre vêem, mas com o coração.

Com esforço abriu os olhos, encontrou-se sozinho, Zé-Ninguém já havia saído para sua tentativa diária de encontrar coisas no lixo que pudesse vender. Como dissera na noite anterior para Teófilo, nosso lixo é o mais rico do mundo. Principalmente de sonhos.

(Continua)

 

 

 

 

 

 



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