Paulo Fernandes Marques “Paulão da Pastoral”, 44 anos, aposentado pelo Corpo de Bombeiros Voluntários de Jaraguá do Sul, em São Bento do Sul há 19 anos, integrante da Pastoral da Sobriedade da Igreja Matriz Puríssimo Coração de Maria, é dependente químico pois foi usuário de cocaína e já passou por três internações. Ele conta um pouco da sua trajetória e recuperação
Evolução – Como se deu esta sua incorporação ao trabalho da Pastoral?
Paulão – Na verdade, eu conheci este trabalho ainda em Jaraguá do Sul, pela matriz São Sebastião, após uma restauração de vida que eu fiz em Minas Gerais, na Fazenda Senhor Bom Pastor de Lavras, pois sou dependente químico de cocaína.
Evolução – E o início nas drogas?
Paulão – Na realidade entrei por curiosidade. A gente pensa que nunca vai se viciar. Experimentei a primeira vez, não me deu nada, a segunda idem, e na terceira, são 28 anos de dependência química. Eu não conhecia cocaína e vi uma pessoa fazendo a preparação para inalação da cocaína, e ela com receio que eu fosse denunciá-la, começou com a conversa que aquilo era bom, que tirava o sono, que eu iria emagrecer, que dava sensações agradáveis e ai veio a curiosidade. A primeira vez senti um efeito, mas não percebi muita diferença, experimentei a segunda, e na terceira já comecei a correr atrás. Foi aí que comecei a conhecer as bocas de drogas.
Evolução – Como é viver com essa dependência?
Paulão – Na realidade, como falei anteriormente, ela vai agindo gradativamente. Você não se sente um viciado. Você não admite estar viciado. No início eu usava mais no final de semana, festinha, balada, e isso foi crescendo até quando eu vi, que já estava há mais de dois anos em uso e cada vez com mais freqüência, aumentando a dosagem sem perceber que cada vez estava usando mais, de chegar ao ponto de ter alucinações gravíssimas.
Evolução – Lembranças?
Paulão – Eu me lembro de tudo. A pessoas que dizem que cometeram coisas erradas sob efeito de drogas, e não lembram de nada, estão mentindo. Vou citar uma passagem muito triste, na terceira vez que eu fui internado, estava mesmo no fundo do poço, foi quando pedi ajuda para minha família, pedi para ser internado lá em Minas. Eu já tinhas duas internações anteriores, uma no Cerene (1988) e outra em São João Batista, na comunidade Bethânia, em 2006. Então, em 2007, fui para Minas Gerais. Antes de ser internado, estava usando muita droga, cocaína em excesso, quantidades abusivas. Tinha alucinações. Achava que a polícia iria me prender, ficava urinado, defecado. Eu dizia para minha mãe ‘eu sei que eles estão aí, eu sei que eles vieram me buscar e eu quero ir’. Era um delírio só.
Evolução – Como foi a reação familiar?
Paulão – Eu sei dizer que fiz um estardalhaço na minha família. Agradeço a Deus todos os dias por eles não terem me abandonado. Minha mãe, minha, esposa, minha irmã, padrasto, sobrinhos, meus amigos e esta Pastoral que tem um Cristo Libertador que foi demonstrando no decorrer da minha caminhada, dentro da Pastoral do meu próprio tratamento em Minas.
Evolução – Quanto tempo você ficou em Minas?
Paulão – Um ano.
Evolução – Período duro de abstinência?
Paulão – Na realidade posso dizer que não tive essa abstinência. Fui com o coração aberto, e quando a gente vai com vontade, quando a gente quer esta mudança nada é impossível. É preciso querer, e querer é poder. Quando você não quer vai enrolando, manipulando as pessoas. Sempre achando que amanhã eu paro. Quando eu quiser eu paro. É mais ou menos como começar regime, sempre vai adiando para a próxima segunda-feira. Não é fácil. Imagine em outro ambiente, outras pessoas, outra cultura, tem o dependente de cocaína, o de crack, da maconha, do tabagismo, do álcool e se entender. Compartilhar das mesmas coisas, banho, chuveiro, quarto. Quando a gente se torna um dependente químico, se torna também egoísta, materialista, só quer para si. Não lembra do próximo, do sofrimento, das pessoas que tanto te amam.
Evolução – Como você conseguia a droga?
Paulão – Fácil. Hoje em dia é muito fácil. Um dependente identifica o outro pelo olhar. É impressionante. Um dia eu estava num salão de festa em Jaraguá do Sul, e tinha um rapaz que eu nunca tinha visto. Ele chegou do meu lado e falou: Maluco! Onde que tem uma boca que eu preciso comprar cocaína? Era um jogador de futebol que naquela época jogava pelo Juventus. Aquilo me chamou a atenção. Como que o cara me identificou como usuário? É como se eu tivesse uma placa na testa. Depois fiz amizade com ele, eu tinha feito um tratamento mas recaí e daí começamos a fazer contato. Quando ele precisava eu arrumava e vice-versa. Não sei se hoje ele é vivo ou como está.
Evolução – Fale sobre a freqüência do uso.
Paulão – No começo a gente age com um pouco de medo, acha que os outros irão notar, mas vai perdendo o senso do ridículo e o medo. Antes da minha última internação era todo dia. Só para ter uma ideia o que faz a dependência num usuário, em 2007 eu fiz uma dívida de R$ 17 mil. Eu sei que tem gente que gasta muito mais que isto. Mas, para mim foi muita coisa. O banco me deu oportunidade de abrir uma conta, e já me deram quatro talões de cheque. Foi uma festa. Estourei a conta. Era nas bocas, nos agiotas e até hoje não consegui limpar meu nome, porque alguns cheques caíram nas mãos de traficantes que estão presos. Não tenho como ir numa penitenciária pedir uma declaração, para um presidiário, para limpar meu nome. É triste.
Evolução – Uma vez recuperado como foi seu encontro com a Pastoral?
Paulão – Foi ótimo. Quando cheguei da minha última internação em Minas Gerais, fui procurar minha paróquia, conversei com a minha família, que precisava de um grupo de auto-ajuda. Me indicaram o padre Sildo, que era o pároco da nossa comunidade. Ele me recebeu e disse ‘olha Paulo, eu tenho um lugar especial para você, se chama Pastoral da Sobriedade’. Fui conhecer e o primeiro passo para se libertar deste submundo, das drogas, do alcoolismo e da depressão é admitir. Sozinho você não consegue sair desta dependência. A Pastoral é baseada em doze passos bíblicos, por isso a gente diz Jesus Libertador. Não sou eu, hoje, como agente da Pastoral que liberto os meus irmãos. É o próprio Cristo que te liberta e a tua força de poder lutar contra a tua própria dependência o teu próprio eu. Na dependência é tudo eu. Eu posso, eu consigo, eu saio sozinho. Então cada semana em todo o Brasil, tem um dia da semana em cada comunidade, às 19:30, onde se reúnem os membros da Pastoral da Sobriedade, para em sintonia trabalhar esta auto-ajuda.
Evolução – O que você acha que pode ser feito pela nossa juventude para que se afaste das drogas?
Paulão – É muito difícil falar da gente. Mas o meu pai era bancário, minha mãe criada na roça no Rio Grande do Sul (São Lourenço), e nós tínhamos uma vida brilhante, se não fosse o alcoolismo do meu pai. Começa por aí. Eu já sou co-dependente do meu pai. Eu bebia todo tipo de bebida e fumava. Só que não era vício. O que eu me apeguei realmente foi a cocaína. Minha mãe sempre dizia, depois que eu revelei para minha família, - levou anos, meu pai faleceu sem saber que eu era viciado - então ele não sofreu com isso. Mas o resto dos familiares, sofrem até hoje, causei um estrago muito grande. Enquanto eu não admitia, não tinha cura. A maior causa é a desestruturação familiar. Brigas dos pais, dos filhos. Eu vejo hoje que o uso da droga é uma fuga geográfica. Para adormecer os problemas familiares, as drogas nos adotam. Por isso digo, não deixe que os traficantes adotem seus filhos. Tem filhos que fazem esta opção, conheceram as drogas, não conseguem, não querem sair. Um dia minha irmã me chamou e disse ‘meu irmão admita que você se apaixonou por ela’. Aí eu comecei a me abrir, pois era uma pessoa muito fechada. Tinha medo que tudo poderia virar contra mim. Portanto, foi fundamental o apoio da família. Uma coisa que me marcou foi dita por um apresentador de TV, o Ratinho: “A maioria dessa juventude sente a falta de Deus”. E, realmente é isso. Se você tem Deus no teu coração, não vai procurar o caminho das drogas. Na realidade não que meus pais não fossem religiosos. Meu pai era espírita, mas eu fui batizado católico. Então já havia um conflito de crença dentro da própria casa. A falta de crença e de fé desestrutura qualquer um. Você é espírita, batiza seu filho na católica não vive nem uma delas. Faz seu filho ir à missa, mas você não vai. Também outro grande problema é as famílias não admitirem que tem problemas dentro dos seus lares. Tapam o sol com a peneira. Isso só agrava. Aqui 98% das famílias vive este drama.
Evolução – Como procurar ajuda?
Paulão – Em primeiro lugar a Pastoral se reúne toda terça-feira após a missa, às 19:45, na churrasqueira do Salão Paroquial. Lá acolhemos as pessoas. Aproveito para dizer que tudo que você ouve ou fala lá, fica entre as quatro paredes. Essa é uma regra que nós cobramos. Se alguém fizer comentários sobre a vida pessoal de outros será convidada para se retirar. Também as reuniões são ecumênicas. Lá é livre, e se acolhe todas as crenças, todos são bemvindos. Compartilhamos os problemas na busca de uma solução.
Evolução – Ninguém vai lá só para rezar?
Paulão – Exato. Temos os momentos de oração na busca do Cristo Libertador, pois não são os membros da Pastoral que curam.
Evolução – Fale sobre a Semana Nacional Antidrogas.
Paulão – Ela iniciou na quarta-feira dia 19 e vai até o dia 26 de junho. Dia 26 é o Dia Mundial Antidrogas. Neste período teremos várias atividades. No dia 23, domingo próximo, a partir das 13:00, reunidos no salão social da matriz, saíra a Primeira Caminhada Pela Vida, para a qual convidamos toda a comunidade, católica, evangélica e todos que quiserem participar. Apenas uma ressalva. É uma iniciativa católica. Teremos uma programação antecedendo a caminhada que será no pátio da matriz até a Asfa (Serra Alta), onde lá será realizada uma missa.
Evolução – Considerações finais.
Paulão – Quando um membro da família está doente, a família também está. Por isto é importante o apoio, a participação conjunta. É preciso muito amor e compreensão neste momento. O viciado é tinhoso, cheio de manha, por isso é preciso carinho, deixar as mágoas e ressentimentos de lado. Tem que cuidar para não recair. Após a minha última internação teve um dia que eu recai, foi apenas uma vez, mas tenho que admitir que eu recai. Então, mais uma vez a importância da família para dizer “Você caiu, mas vou te dar mais um voto de confiança, não vamos deixar cair”, ao invés de “você é um vagabundo, não tem jeito mesmo”. São vários passos. Ficar alerta. Um dos ensinamentos da Pastoral é “orai e vigiai”.