Da versão de 2012 do relatório anual elaborado pela Associação Mundial de Jornais e Editores de Notícias (Wan-Ifra), saltam números que mais parecem gritos a respeito do índice de jornalistas mortos mundo afora no exercício da profissão. Houve um aumento de já trágicos 64 para 68 casos entre 2011 e o ano passado.
Lista inclui Brasil entre países de maior impunidade em crimes contra imprensa
Esses dados são a face mais dramática de uma tendência: a liberdade de imprensa está em risco, segundo a Wan-Ifra, pela ação de "tiranos que se opõem à liberdade de expressão e que rapidamente aprendem a agir como opressores digitais". De acordo com a entidade, "onde o poder reside, há quem procure controlar ou influenciar", nas plataformas online (blogueiros têm sido alvo de perseguições) e nas mídias tradicionais.
Se nas Américas há os governos que restringem o exercício do jornalismo (por meio de processos judiciais, cassações de licenças e mecanismos de controle da informação) e a violência vinculada ao narcotráfico, em países como a Síria, os abusos se mostram fora de controle. Foram, somente no conflagrado território sírio, 16 mortes no ano passado, em meio a uma revolta popular contra o governo de Bashar al-Assad, que se tornou guerra civil. Em 2011, houve um óbito.
Profissionais de imprensa lembram os colegas mortos em Tegucigalpa, Honduras
Foto: Orlando Sierra/AFP
– Está perigoso ser jornalista. Antigamente, correspondentes de guerra tinham certa proteção. A perda de respeito ao jornalista e à atividade jornalística se reflete nesses crimes – analisa Carlos Eduardo Lins da Silva, doutor em Comunicação pela Universidade de São Paulo e mestre pela Universidade de Michigan.
Por que isso estaria ocorrendo?
– As guerras mudaram muito de caráter nos últimos 70 ou 80 anos. Deixaram de ser por motivos econômicos, como costumavam ser, e passaram a ser por religião ou ideologia – completa Lins da Silva.
Diretor da pós-graduação em jornalismo da Escola Superior de Propaganda e Marketing, Eugênio Bucci define a situação no Brasil como "gravíssima". E faz uma sugestão: que se dê mais publicidade aos abusos.
– A imprensa precisa gritar, mostrar a morosidade das investigações, perguntar por que não foi apurado este ou aquele crime. Esse é o jeito de a imprensa se proteger e colocar pressão contra as autoridades – diz.
2012 teve recorde de mortes no país
Bucci identifica, especificamente no Brasil, um "ambiente de vulnerabilidade" para o jornalismo investigativo, atividade que, segundo ele, não é vista com bons olhos "pelo crime e pelo poder".
– As causas dessa situação são o crescimento do narcotráfico em todo o continente e da violência gerada pelo narcotráfico, o crescimento da criminalidade e da impunidade, a inoperância da polícia e da Justiça e a corrupção e a promiscuidade entre lei e crime – diz Bucci, que vê uma "falta de indignação das autoridades".
A Wan-Ifra coincide com a reflexão de Bucci: "Nossa consciência e vigilância deve se ajustar com voracidade similar".
No Brasil, o quadro preocupa especialmente quando a comparação é feita por períodos. Entre 1998 e 2012, nunca morreram tantos jornalistas. Em 2011, foram três mortes, um número expressivo – que havia sido registrado apenas em 2003, pelos dados da Wan-Ifra.
Pois tal teto foi ultrapassado em 2012, com cinco jornalistas mortos. Já em março e abril, o quadro provocou condenações do Alto Comissariado da Organização das Nações Unidas para Direitos Humanos e da Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da Comunidade Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), com o pedido de providências ao governo de Dilma Rousseff. Motivos: as mortes do jornalista e blogueiro Décio Sá, em São Luís (Maranhão), e de Rodrigo Neto de Faria e Walgney Assis Carvalho, ambos no interior de Minas Gerais.
Nos meses seguintes, a tendência crescente de mortes no país arrefeceu. Ainda assim, o número foi recorde.
Pressões atingem empresas e jornalistas
A relatora para Liberdade de Expressão da Organização dos Estados Americanos (OEA), Catalina Botero, manifesta preocupação com o fato de que governos latino-americanos têm limitado a atividade da imprensa. Embora, em entrevista, Catalina evite críticas pontuais, um documento da relatoria diz: "Em alguns Estados, houve aumento significativo no número de jornalistas processados penalmente após terem difundido informações ou opiniões sobre assuntos de claro interesse público. A relatoria especial assinala a necessidade de derrogar o delito de desacato e promover a modificação das leis sobre difamação a fim de eliminar a utilização de processos penais para proteger a honra e a reputação quando se difunda informações sobre assuntos de interesse público, sobre funcionários públicos ou sobre candidatos a exercer cargos públicos (...)".
Os representantes da entidade não citam países, mas a preocupação maior se dá com a atitude de Equador e Venezuela em relação aos órgãos de comunicação. A Argentina, que mantém disputa com o grupo Clarín e tenta aprovar legislação restritiva aos órgãos de imprensa, também preocupa.
Em reunião na cidade mexicana de Puebla, em março passado, a Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) divulgou relatório no qual afirma que a liberdade de imprensa na América Latina continua sob ameaça de governos "autoritários e intolerantes". Uma das denúncias é de que o governo argentino pressiona empresas para que retirem anúncios de meios de comunicação com os quais não simpatizam.
"Hoje, na Argentina, como havia ocorrido no Peru de (Alberto) Fujimori, importantes anunciantes retiraram por completo seus anúncios logo que o governo assim lhes ordenou e diante do temor de sofrer represálias tributárias ou de outra ordem", afirma a SIP.
Informar ou opinar pode virar crime
A SIP também critica o atraso na adoção de leis que favoreçam o acesso à informação pública e a promoção de leis de imprensa que "dificultarão o trabalho da imprensa crítica e que se imiscuirão nos conteúdos jornalísticos", especialmente no Equador, no Chile, em Honduras e na Costa Rica.
A entidade demonstrou preocupação com iniciativas dos governos do Equador e da Venezuela de condicionar apoio financeiro à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, à qual está vinculada a Relatoria para a Liberdade de Expressão. "Direitos humanos são direitos e não concessões dos governantes", afirma a declaração da SIP sobre o tema.
– Vemos em nosso continente uma quantidade preocupante de ataques à liberdade de expressão, manifestados de maneira disfarçada, por pressões políticas e econômicas, pelo uso inadequado do poder, por procedimentos legais equivocados e, às vezes, mal-intencionados – diz o presidente emérito do grupo RBS, Jayme Sirotsky, ex-presidente da Wan-Ifra. – Por isso, mesmo num regime democrático, a vigília tem que ser constante.
Com uma câmera e uma pistola, repórter filma em subúrbio de Mogadíscio, Somália
Foto: Stringer/ AFP