— Mãe! Me ajuda! Me ajuda! Me assaltaram!
— Filha! Mas aonde tu tá?
— Eu tô presa, amarrada, dentro do carro! Me pegaram!
— Faz o que eu te mandar e tu vai ter a tua filha viva, senão a gente mata ela.
O diálogo acima marcou o início de pelo menos cinco horas ininterruptas da tortura psicológica vivida na manhã de quinta-feira por uma família de classe média alta de Joinville. O golpe é antigo, o do falso sequestro, que costuma ser aplicado por criminosos de dentro das prisões pelo Brasil afora.
O risco está em o teatro de quem está do outro lado da linha envolver quem atende ao telefonema. O pânico leva a vítima a se submeter às ordens dos criminosos e ficar incomunicável, aumentando o prejuízo financeiro e prolongando a angústia.
Foi o que ocorreu com a médica que, por acreditar que uma de filhas teria sido sequestrada, depositou R$ 12 mil para os bandidos e acabou tão isolada que fez o restante da família crer que ela havia sido sequestrada.
Os mesmos criminosos que entraram em contato com a moradora da região central de Joinville ligaram para o marido dela, que só não foi lesado porque já estava sendo orientado por policiais militares. Veja nesta página o roteiro de ameaças em que a vítima se viu envolvida.
1 - Por volta das 7h45 de quinta-feira, a médica ainda estava no quarto se arrumando para ir ao consultório – o marido dela, também médico, havia saído instantes antes. O telefone da casa tocou e ela o atendeu, sem imaginar que, daquele momento em diante, ficaria refém de um desespero que a faria aceitar tudo para ter a filha mais velha de volta.
— Era uma voz igual à da minha filha. Aí um homem com sotaque carioca pegou o fone e perguntou quanto tinha de dinheiro em casa, quanto eu conseguiria levantar de dinheiro vivo —, conta ela, com o olhar cansado.
Ela se trocou, descrevendo cada peça de roupa que vestia. A partir daquele instante, teria de se dirigir ao bandido como filha e narrar tudo o que fizesse gesto. Na garagem, viu o carro da jovem e sentiu crescer a certeza de que ela fora sequestrada durante uma de suas caminhadas.
2 - Obedecendo ao criminoso, a médica foi à lotérica mais próxima, onde depositou R$ 4 mil – dinheiro que tinha em casa – divididos em quatro contas diferentes, todas no nome de mulheres. Retornou ao carro e leu comprovante por comprovante, antes de rasgar os documentos perto do celular, outra determinação do golpista.
De carro, ela foi a um hipermercado para comprar, em dinheiro, um aparelho da operadora indicada pelo bandido.
— Pega o celular antigo, desliga, joga a bateria fora. Agora, você só fala comigo nesse celular —, ouviu.
O criminoso mandou que ela fosse para um hotel para recarregar o aparelho recém-comprado. Após fazer o check-in, entrou no quarto e conectou o celular na tomada para carregar. Após dez minutos, recebeu a ordem para ir até o seu banco. Eles queriam mais dinheiro.
3 - Enquanto se dirigia a um banco em Pirabeiraba, a médica recebeu instruções de como convencer o gerente, conhecido da família, a liberar o dinheiro sem despertar suspeitas.
— Começa a treinar o sorriso porque você vai falar para ele que é para comprar um presente para sua filha. Se você não convencer, a tua filha morre —, disse o criminoso.
Mesmo obedecendo, a médica não conseguia conter a respiração ofegante.
— Se ele notava que minha respiração estava nervosa, dizia: ‘Respira fundo e te acalma’. Dizia tudo o que eu tinha que falar —, contou ela quinta-feira, aconchegada no ombro da filha.
No banco indicado pelo criminoso, tentou fazer os depósitos, sem sucesso – as contas não batiam. Ameaçada, ela foi a outra agência, onde depositou mais R$ 8 mil em duas vezes na conta, também no nome de uma mulher.
5 - No início da tarde, após ser coagida a entregar R$ 12 mil, a mulher pensou que teria a filha a salvo e se livraria da tortura psicológica. Mas os bandidos estavam agindo em outra ponta.
Por volta das 11h30, haviam ligado para o marido dela e forjado o sequestro da médica, que tinha faltado ao consultório e saiu de casa sem a bolsa. O marido e as filhas acreditaram que ela havia sido sequestrada. A filha mais velha do casal avisou uma tia, também médica no Samu. Assim, o caso chegou à Polícia Militar.
Enquanto isso, a vítima atendia a novas ordens: foi a uma loja do Shopping Mueller comprar crédito para celulares informados pelo golpista. Tentou recarregar R$ 100, com cartão, em sete números (todos com prefixo 21, do Rio). Mas o cartão já estava bloqueado. Ela alegou estar sem dinheiro e usou os R$ 50 que tinha na carteira.
Fim com ajudas do banco e da PM
O fim do drama da médica vítima do golpe do falso sequestro em Joinville ocorreu porque a família dela também se preocupou com o seu sumiço. Enquanto se dirigia ao quartel da PM no bairro Glória, para acompanhar a busca pela mulher, o marido da vítima recebeu o telefonema do mesmo golpista.
— Ele queria saber quanto eu conseguiria arrecadar da minha conta. O policial disse para eu fazer o jogo dele, aí falei R$ 10 mil —, conta o médico.
O rastreamento dos cartões bancários da vítima também ajudou a família a descobrir, com ajuda do banco e da polícia, onde ela estava.
Localizada no estacionamento do shopping center, a médica conta ter temido a aproximação dos policiais. Ela continuava envolvida no teatro dos criminosos.
— Eu disse (para o golpista) que tinha visto uma moça que achei que era a minha filha. Eles foram se aproximando e fiz um gesto para eles pararem, porque se ele percebesse que era a polícia, a mataria. Mas aí eles chegaram e disseram que eu podia desligar o telefone porque a minha filha estava em casa. Aí joguei o telefone fora —, conta a mulher, aliviada.
A família buscou ontem registrar o fato na Polícia Civil, na tentativa de resgatar parte do dinheiro perdido, mas desistiu por causa da demora no sistema de informática da DP do Norte da cidade. Será feita outra tentativa nesta sexta.
Segundo o delegado Luis Felipe Del Solar Fuentes, um dos que estão há mais tempo em atuação em Joinville, o sequestro tradicional – em que a vítima é mantida para cobrança de resgate – não é registrado na cidade há pelo menos cinco anos. Já o sequestro-relâmpago mais recente foi registrado em maio.
Para o tenente Humberto Porto Mapelli, da PM, também é preciso que a vítima do golpe mantenha a calma de forma a não facilitar o cenário de desespero forjado pelos bandidos.
